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Reflexões sobre o futuro da propriedade intelectual

As perplexidades levantadas na seção anterior naturalmente levam a indagações sobre o futuro da propriedade intelectual na era digital. Tratando-se de uma questão tão complexa como esta, com tantos atores e tantos interesses envolvidos, certamente não é possível dar uma resposta simples e definitiva. Os rumos futuros estão na dependência das experiências em curso e de (muitas) outras que ainda devem vir. Inegavelmente, os rumos estão também na dependência das ações legislativas sobre o tema. Acreditamos, porém, que o fator de maior importância na determinação dos rumos futuros será a reação da sociedade às novas realidades. Esta reação será expressa através das formas que ela encontrará ou não para absorver e para usar as novidades que lhe serão apresentadas.

Em qualquer tentativa de análise do futuro da propriedade intelectual é preciso levar em conta as motivações originais da instituição deste conceito e que continuam tão válidas como antigamente. A questão é saber se as práticas usadas durante séculos continuam válidas para a obtenção das finalidades pretendidas. Devemos lembrar que estas práticas foram inicialmente estabelecidas em função das propriedades físicas da publicação impressa em papel. Mais tarde elas foram influenciadas pelas propriedades da difusão por ondas eletromagnéticas. Caso estas práticas continuem válidas, são ainda as mais indicadas? A resposta com quase toda a certeza é não.

Em particular, a restrição ao direito de cópia pode estar obsoleta diante da realidade da Internet. A cópia é uma operação extremamente importante e poderosa no mundo digital. A natureza preserva a vida há um bilhão de anos através da operação da cópia digital! Usando a cópia de símbolos como operação principal uma máquina de Turing é capaz de implementar qualquer procedimento algorítmico! Esta mesma idéia foi aproveitada pelo computador IBM 1620, do início dos anos 60. Neste computador até mesmo a soma e a multiplicação eram realizadas pelo uso engenhoso da cópia da informação. Aristóteles já havia enunciado que o homem é o maior mímico de todos os animais. De fato, a cópia é um mecanismo essencial para a nossa existência social, para a nossa aprendizagem e para a nossa evolução. Já vimos também que a cópia no contexto da Internet pode levar a resultados significativos e até mesmo surpreendentes. Será que restringir a cópia é ainda o melhor mecanismo de incentivar a produção intelectual?

Gostaríamos de indicar algumas fontes importantes de reflexão nesta direção. A primeira é um estudo profundo que está para ser lançado pela ``The National Academies'' dos EUA [6]. O estudo foi financiado pela National Science Foundation a encomendado pela National Research Council. Uma comissão formada por alguns dos mais renomados especialistas americanos no assunto examinou a questão do futuro da propriedade intelectual na era da informação. O resultado do estudo é altamente inconclusivo. Diante do potencial e da prática da cópia na era digital a comissão recomenda (aos órgãos legislativos americanos) muita cautela, muita experiência e muita observação antes de qualquer tomada de decisões legislativas sobre as direções a serem seguidas.

Infelizmente, as notícias sobre o andamento de iniciativas legislativas americanas como a UCITA (antigo UCC 2-B) mostram que os responsáveis pelas mesmas não parecem dar ouvidos a tais recomendações, apesar dos alertas constantes e insistentes dos meios acadêmicos [30]. Somos de opinião de que estas leis prematuras podem facilmente cair num vazio, ocasionando estragos maiores do que se poderia imaginar.

Um outro estudo está num artigo interessante de Philippe Quéau, diretor da Divisão de Informação e Informática da UNESCO onde ele aborda a questão da propriedade intelectual [25]. Os livros de Lessig [16] e de Lesk [15] contém também idéias e reflexões valiosas sobre o tema.

Na verdade, estamos diante de uma opção que deverá ser feita pela sociedade como um todo. A questão em tela é qual o uso que queremos fazer da informação e do conhecimento na era digital. Ou qual é o uso a que podemos nos permitir. Preferimos um mundo com uma disponibilidade liberal e circulação intensa de informações ou um com uma realidade informacional mais restrita, mais controlada e talvez até mais tranquila? Acreditamos que uma civilização baseada na livre circulação da informação poderia galgar níveis de conhecimento muito além dos que conseguimos até hoje. A Internet está aí para servir de ferramenta tecnológica para ajudar nesta empreitada, caso a sociedade decida por este curso. No outro extremo teríamos uma civilização onde o fluxo da informação estaria sujeito a severas restrições. Entre os dois extremos existem inúmeras alternativas para a implantação de freios mais ou menos efetivos sobre o fluxo da informação que seriam legitimizados e permitidos pela sociedade, tendo em vista um equilíbrio adequado aos diversos atores e seus interesses específicos. Provavelmente prevalecerá alguma alternativa intermediária, cujo ponto de equilíbrio mais adequado será encontrado através da prática de tentativas sucessivas, sujeitas a ajustes frequentes.

Cabe também a importante questão se está realmente em poder da sociedade fazer tal opção. Acreditamos que sim. A própria Internet, através da sua grande flexibilidade e através da sua ubiquidade parece ser um meio suficientemente poderoso para fortemente influir numa tal decisão, pelo menos no sentido de garantir a propagação da voz aos que querem ser ouvidos. Acreditamos que a opção acima é uma ``ambiguidade latente'' no sentido de Lessig [16], ou seja, é uma questão essencialmente nova para cuja resposta não podemos nos basear principalmente no nosso passado pois no passado nem podíamos contemplar as diversas possibilidades diante das quais temos que optar. Apenas a prática por amplas camadas da sociedade poderá apontar as respostas viáveis à questão. Estas práticas são pré-requisitos essenciais para embasar qualquer tentativa de opção propriamente dita.

Estamos numa época de nos acostumarmos com a era digital e com a Internet em particular. É uma época de experiências, antes de tudo. Quanto mais experiências, melhor. Quanto mais diversas forem as experiências, maiores serão as chances de acharmos o melhor rumo para o futuro. Nesta direção é muito importante que a sociedade, através dos seus poderes regulamentadores e legislativos, acolha e incentive a maior diversidade de experiências sem optar por nenhuma delas, por enquanto. Apenas os valores éticos devem limitar a diversidade destas experiências. A opção propriamente dita deve ser deixada para os mecanismos naturais da evolução.

Uma coisa parece ser patente: estas questões são fundamentais para o futuro da nossa civilização. No entanto, parece que amplos segmentos da sociedade ainda não se aperceberam das questões que estão em jogo, muito menos da sua importância. Urge, então, discutí-las da forma mais ampla possível!


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Imre Simon
2000-02-29