Entrevista: Inaicyra Falcão dos Santos
Lirismo,
ancestralidade e arte. Essas
três vertentes são as especialidades da baiana Inaicyra
Falcão dos
Santos, professora
do Departamento de Artes Corporais da Universidade de Campinas–SP
(UNICAMP) e representante da sexta geração da
família que chama Axipá, essa herança, do
Ilê Axé Opô Afonjá (sede em Salvador-BA).
Em
entrevista concedida a EPARREI, durante o
Seminário Nacional de Educação e
Cultura Afro-Brasileira, promovido pela Casa de Cultura da
Mulher Negra, Santos-SP, de 10 a 13 de junho de 2004, a educadora
falou sobre sua paixão pela dança e as descobertas na
busca pelos antepassados.
Eparrei: No show que
abriu nosso Seminário, as pessoas já tinham uma certa
informação a respeito do que a senhora está
colocando com sua música. Em outras
platéias, como esse tipo de música é aceita? Estaria classificada como cânticos?
Inaicyra: São
cânticos sacros da tradição Iorubá,
inspirados nos elementos da natureza, que na tradição
Iorubá, estão ligados aos Orixás.
Falo da água; reverencio o fogo; estou
reverenciando o universo. E isso é
universal; isso está para todo mundo.
Eparrei: Como chegou
à produção do CD Okan Awa - Cânticos da
Tradição Iorubá? É
o primeiro?
Inaicyra: É o primeiro CD. É uma história.
A Roseli Fichman me convidou, sugerindo que eu deveria
cantar alguma coisa referente à tradição dos
ancestrais, em Iorubá, que, por sinal, homenageia Marcelina da
Silva -- essa senhora de quem nós herdamos.
Pelo lado materno é minha avó, mãe do
meu pai. E eu represento a sexta
geração dessa família que se chama Axipá,
essa herança.
Eparrei: É o
canto que homenageia Marcelina da Silva?
Inaicyra: Esse canto está
alicerçado nos terreiros antigos de Salvador.
Quando criança, eu ouvia e me identificava com esse
cântico. Ao saber da
ligação com minha ancestralidade, ele se tornou o meu
cartão de visitas.
E eu cantei. E logo foi uma
receptividade muito grande. A partir dali,
fiquei me apresentando nos congressos ligados à questão
de identidade cultural, de diversidade humana, tanto na Faculdade de
Educação da USP, quanto na Sociedade de Estudos da
Cultura Negra no Brasil - SECNEB, que também é uma
instituição em Salvador, que procura estudar os valores
da cultura negra em suas várias faces: na arte, na literatura. E, com isso, fui cantando sempre a capela.
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Eparrei: E a respeito da sua família:
Mestre Didi, Mãe Senhora...
Inaicyra: Nasci em Salvador. O que nós sabemos é que quem
veio como escrava para o Brasil foi Marcelina da Silva, e que, depois
de alforriada, retornou para África. Nossa
família provém de uma cidade chamada Cociku.
Na divisão do reinado, ficou a metade do Keto1
na Nigéria e outra metade na República do Benin. Atualmente nossa família é da
República do Benin. De concreto,
temos um testamento onde se fala da filha de Marcelina, que era Maria
Madalena, que é mãe de Claudiana. Claudiana
é mãe de Maria Bibiana e Maria Bibiana é
mãe de Delcio E. M. dos Santos, que é meu pai, o Mestre
Didi. As gerações que
vão seguindo mostram que tínhamos essa família
real, uma das famílias fundadoras do reinado de Keto. E o Oríkì2, vai sendo
passado de geração para geração. E é por isso que se detecta. Meu pai teve a oportunidade de chegar em Keto,
com sua esposa, Joana Elbein dos Santos, e nesse reinado lá, com
o Rei, conversa vai conversa vem, ele recitou esse Oríkì. Alguém havia pedido para que falasse
alguma coisa e, quando ele recitou esse Oríkì, eles
puderam verificar que também tinham pessoas que vinham daquele
mesmo Oríkì. Lá
naquela cidade, que era a cidade de Cociku, a partir daí se
detectou toda essa história. Por
causa desse Oríkì e por causa da religião. Por isso, os terreiros funcionavam muito como
pólo de resistência, de irradiação de uma
cultura que não é só uma religião, mas um
modo de ser, de ver, uma maneira filosófica, quer dizer, muito
mais profundo do que a redução à questão
exclusiva da religião, como vem acontecendo ao longo dos anos.
Pude constatar, quando morei seis anos na Nigéria
entres os Iorubás, que tudo o que eu via no terreiro via
naquelas cidades. É uma maneira de
ser, de agir, de falar, dos gestos, das comidas e tudo mais. Hoje, percebo que esses negros que para aqui
vieram tiveram de encontrar uma forma de se juntar.
Ali, eles fizeram como se fosse um país dentro do
espaço do Axé, onde a religião é um dos
aspectos da cultura, mas envolve também uma maneira de fazer e
de ser e de ver; uma filosofia muito profunda desse povo que a gente
precisa conhecer. E com o tempo, de um
modo geral, as pessoas vão se apegando à questão
religiosa e isso impede que possamos ir a fundo, inclusive considerando
as pessoas de fora, de fora da religião. É
importante que se conheça mais a respeito dessa cultura,
principalmente sendo ela alvo de tanto preconceito, que vem de anos e
anos.
Temos trabalhado de um lado e não estamos vendo os
outros lados. Mas, aqui,
nesse Seminário... Para
mim, esse Seminário está sendo de uma grande riqueza, que
nem posso acreditar! Quando você
chega aqui, você pensa: "gente é impossível!”...;
“mas é isso mesmo que está acontecendo.”
Quer dizer, é uma força tão grande! E a gente vê a complexidade que é
a questão de poder, também. O
sentimento de ameaça que toma conta do “outro”...
E se a gente toma muita consciência, eles pensam
“daqui a pouco eles vão tomar o espaço”...
Essas são questões que existem e que
precisam ser consideradas em sua complexidade. Já
minha avó tinha uma visão. Eu
tinha uma ligação muito grande com ela; e isso era
recíproco. Então a
relação com a religião e esse outro espaço
se dá de uma forma amorosa, de forma total.
Sou um produto do dia-a-dia, do cotidiano, dos gestos. Desde criança, costumava ficar
observando, nas festas, as pessoas prepararem as comidas, os gestos do
corpo, a forma que ralava na pedra, as danças, as
histórias que contavam. E é
esse imaginário, esse universo, que vai permeando toda a minha
memória e a maneira de me inspirar nas ações, de
forma intuitiva, uma forma lúdica. Chegava
em casa e imitava tudo o que havia visto. Fazia
tudo de um modo inconsciente. Além
disso, em casa, eu tinha meu pai também, ele fazia esculturas...
Eparrei: Admiráveis...
Inaicyra: É...
Eu ajudava, desde pequena, a enfiar as continhas. Aprendi
com ele a cortar búzios, a serrar os búzios.
Ficava ali ao lado escutando o que falava, os contos,
enquanto escrevia os livros de história. Ele
estudava iorubá, na época, e tinha muitos livros e discos
dessa cultura. Eu dançava muito,
inclusive uma música “Juju”. Depois,
mais tarde, quando cheguei na Nigéria, cantarolava mais ou menos
a melodia e as pessoas reconheciam, sabiam qual era o canto. Mas isso é música social que se
chama de estilo “Juju”. E tudo isso era
muito interessante, porque eu não tinha esse referencial rico
fora da minha família. Quando ia
à escola, eu via uma outra história.
Nem se mencionava essa questão da cultura
afro-brasileira, como até hoje a escola não menciona.
Isso que estamos discutindo, aqui no Seminário,
é o que eu ouvia em casa, desde criança.
E hoje, foi preciso criar uma Lei para que esse assunto
seja levado para as escolas. Tenho um
privilégio que faz uma grande diferença.
Eu ouvia umas coisas na escola, coisas que eu tinha de
“aprender” e, quando chegava em casa, via que não era nada
daquilo! E, desde cedo, fui aprendendo a
ter essa ginga, de estar lá e cá, vivendo esses dois
universos. E, isso, trago, na medida do
possível, nas minhas ações e escolhas. Quando fiz o vestibular e entrei na escola de
dança, percebi que não havia técnicas que pudessem
mostrar a história da dança do Brasil.
Então, aprendo outras técnicas, de outras
danças, inclusive folclóricas, européias,
tarantela... havia uma dança russa, que se dança batendo
com as botas... mas quando chegava a hora de estudar a nossa cultura, o
conteúdo vinha sempre no sentido de folclore; muita teoria e
nada de prática. Era um monte de
teoria sobre folclore. Aí
fazíamos pesquisa folclórica, nada que pudesse ser
criativo, de ação. As
danças dos orixás era a única
manifestação que eles colocavam em prática. Mas eu já havia aprendido, em casa, que
as manifestações dos orixás não é
dança folclórica! Mas,
naquele meio acadêmico, eu não questionava, ficava atenta
procurando entender. Bem, depois me formei
e participei durante um tempo do grupo de dança da Universidade
Federal da Bahia.
1 - O
Keto chegou com os povos Nagôs, que falam a língua
Iorubá, saídos da região que hoje correspondem ao
Sudão, Nigéria e Benin
2 - Oríkì
- Conjunto de narrativas e cantos que proclamam a mística dos
orixás e dos ancestrais.
integra da
entrevista: http://geocities.yahoo.com.br/ccmnegra_santos/Entrevista_Inaicyra.doc
Mais sobre Inaicyra, seu livro,
sua música e voz: http://www.inaicyra.hpg.ig.com.br/okanawa.htm
boletim
EPARREI online
Produção: Casa de Cultura da
Mulher Negra
Colaboraram nesta edição
Ana Felippe - Dayane Santos – Janaína
Barros - Janaína Cândida Santos
Tainá Garcia (Salvador-BA) - Uriwani Rodrigues de Carvalho