[Prévia] [Próxima] [Prévia por assunto] [Próxima por assunto]
[Índice cronológico] [Índice de assunto]

Eu acuso....



(Eu acuso !)

(Tributo ao professor KÃssio VinÃcius Castro Gomes)

 Mon devoir est de parler, je ne veux pas Ãtre complice. (Ãmile Zola)
Meu dever à falar, nÃo quero ser cÃmplice. (...) (Ãmile Zola)

Foi uma tragÃdia fartamente anunciada. Em milhares de casos, desrespeito. Em outros tantos, escÃrnio. Em Belo Horizonte, um estudante processa a escola e o professor que lhe deu notas baixas, alegando que teve danos morais ao ter que virar noites estudando para a prova subsequente. (Notem bem: o alegado âdano moralâ do estudante foi ter que... estudar!).

A coisa nÃo fica apenas por aÃ. Pelo Brasil afora, ameaÃas constantes. Ainda neste ano, uma professora brutalmente espancada por um aluno. O Ãpice desta escalada macabra nÃo poderia ser outro.

O professor KÃssio VinÃcius Castro Gomes pagou com sua vida, com seu futuro, com o futuro de sua esposa e filhas, com as lÃgrimas eternas de sua mÃe, pela irresponsabilidade que hà muito vem tomando conta dos ambientes escolares.

Hà uma lÃgica perversa por trÃs dessa asquerosa escalada. A promoÃÃo do desrespeito aos valores, ao bom senso, Ãs regras de bem viver e à autoridade foi elevada a mÃtodo de ensino e imperativo de convivÃncia supostamente democrÃtica.

No inÃcio, foi o maio de 68, em Paris: gritava-se nas ruas que âera proibido proibirâ. Depois, a geraÃÃo do ânÃo bate, que traumatizaâ. A coisa continuou: âNÃo reprove, que atrapalhaâ. NÃo dà provas difÃceis, pois âtemos que respeitar o perfil dos nossos alunosâ. AliÃs, âprova nÃo prova nadaâ. Deixe o aluno âconstruir seu conhecimento.â NÃo vamos avaliar o aluno. Pensando bem, âà o aluno que vai avaliar o professorâ. Afinal de contas, ele està pagando...

E como a estupidez humana nÃo tem limite, a avacalhaÃÃo geral epidÃmica, travestida de ânovo paradigmaâ (Irc!), prosseguiu a todo vapor, em vÃrios setores: âo bandido à vÃtima da sociedadeâ, âtemos que mudar âtudo isso que està aÃâ; âmais importante que ter conhecimento à ser âcrÃticoâ.â

Claro que a intelectualidade rasa de pedagogos de panfleto e burocratas carreiristas ganhou um imenso impulso com a mercantilizaÃÃo desabrida do ensino: agora, o discurso anti-disciplina à anabolizado pela lÃgica doentia e desonesta da paparicaÃÃo ao aluno â cliente...

Estamos criando geraÃÃes em que uma parcela considerÃvel de nossos cidadÃos à composta de adultos mimados, despreparados para os problemas, decepÃÃes e desafios da vida, incapazes de lidar com conflitos e, pior, dotados de uma delirante certeza de que âo mundo lhes deve algoâ.

Um desses jovens, revoltado com suas notas baixas, cravou uma faca com dezoito centÃmetros de lÃmina, bem no coraÃÃo de um professor. Tirou-lhe tudo o que tinha e tudo o que poderia vir a ter, sentir, amar.

Ao assassino, corretamente , deverÃo ser concedidos todos os direitos que a lei prevÃ: o direito ao tratamento humano, o direito à ampla defesa, o direito de nÃo ser condenado em pena maior do que a prevista em lei. Tudo isso, e muito mais, farà parte do devido processo legal, que se iniciarà com a denÃncia, a ser apresentada pelo MinistÃrio PÃblico. A acusaÃÃo penal ao autor do homicÃdio covarde virà do promotor de justiÃa. Mas, com a licenÃa devida ao cÃlebre texto de Emile Zola, EU ACUSO tantos outros que estÃo por trÃs do cabo da faca:

EU ACUSO a pedagogia ideologizada, que pretende relativizar tudo e todos, equiparando certo ao errado e vice-versa;

EU ACUSO os pseudo-intelectuais de panfleto, que romantizam a ârevolta dos oprimidosâe justificam a violÃncia por parte daqueles que se sentem vÃtimas;

EU ACUSO os burocratas da educaÃÃo e suas cartilhas do politicamente correto, que impedem a escola de constar faltas graves no histÃrico escolar, mesmo de alunos criminosos, deixando-os livres para tumultuar e cometer crimes em outras escolas;

EU ACUSO a hipocrisia de exigir professores com mestrado e doutorado, muitos dos quais, no dia a dia, serÃo pressionados a dar provas bem tranqÃilas, provas de mentirinha, para âadequar a avaliaÃÃo ao perfil dos alunosâ;

EU ACUSO os Ãltimos tantos Ministros da EducaÃÃo, que em nome de estatÃsticas hipÃcritas e interesses privados, permitiram a proliferaÃÃo de cursos superiores completamente sem condiÃÃes, freqÃentados por alunos igualmente sem condiÃÃes de ali estar;

EU ACUSO a mercantilizaÃÃo cretina do ensino, a venda de diplomas e tÃtulos sem o mÃnimo de interesse e de responsabilidade com o conteÃdo e formaÃÃo dos alunos, bem como de suas futuras missÃes na sociedade;

EU ACUSO a lÃgica doentia e hipÃcrita do aluno-cliente, cada vez menos exigido e cada vez mais paparicado e enganado, o qual, finge que nÃo sabe que, para a escola que lhe paparica, seu boleto hoje vale muito mais do que seu sucesso e sua felicidade amanhÃ;

EU ACUSO a hipocrisia das escolas que jamais reprovam seus alunos, as quais formam analfabetos funcionais sà para maquiar estatÃsticas do IDH e dizer ao mundo que o nÃmero de alunos com segundo grau completo cresceu âtantos por centoâ;

EU ACUSO os que aplaudem tais escolas e ainda trabalham pela massificaÃÃo do ensino superior, sem entender que o aluno que ali chega deve ter o mÃnimo de preparo civilizacional, intelectual e moral, pois estamos chegando ao tempo no qual o aluno âterà direitoâ de se tornar mÃdico ou advogado sem sequer saber escrever, tudo para o desespero de seus futuros clientes-cobaia;

EU ACUSO os que agora falam em promover um ânovo paradigmaâ, uma â nova cultura de pazâ, pois o que se deve promover à a boa e VELHA cultura da âvergonha na caraâ, do respeito Ãs normas, à autoridade e do respeito ao ambiente universitÃrio como um ambiente de busca do conhecimento;

EU ACUSO os âcabeÃa â boaâ que acham e ensinam que disciplina à âcaretaâ, que respeito Ãs normas à coisa de velho decrÃpito,

EU ACUSO os mÃtodos de avaliaÃÃo de professores, que se tornaram templos de vendilhÃes, nos quais votos sÃo comprados e vendidos em troca de piadinhas, sorrisos e notas fÃceis;

EU ACUSO os alunos que protestam contra a impunidade dos polÃticos, mas gabam-se de colar nas provas, assim como ACUSO os professores que, vendo tais alunos colarem, nÃo tÃm coragem de aplicar a devida puniÃÃo.

EU VEEMENTEMENTE ACUSO os diretores e coordenadores que impedem os professores de punir os alunos que colam, ou pretendem que os professores sejam âpromotersâ de seus cursos;

EU ACUSO os diretores e coordenadores que toleram condutas desrespeitosas de alunos contra professores e funcionÃrios, pois sua omissÃo quanto aos pequenos incidentes à diretamente responsÃvel pela ocorrÃncia dos incidentes maiores;

Uma multidÃo de filhos tiranos que se tornam alunos -clientes, serÃo despejados na vida como adultos eternamente infantilizados e totalmente despreparados, tanto tecnicamente para o exercÃcio da profissÃo, quanto pessoalmente para os conflitos, desafios e decepÃÃes do dia a dia.

Ensimesmados em seus delÃrios de perseguiÃÃo ou de grandeza, estes jovens mostram cada vez menos preparo na delicada e essencial arte que à lidar com aquele ser complexo e imprevisÃvel que podemos chamar de âo outroâ.

A infantilizaÃÃo eterna cria a seguinte e horrenda lÃgica, hoje na cabeÃa de muitas crianÃas em corpo de adulto: âSe eu tiro nota baixa, a culpa à do professor. Se nÃo tenho dinheiro, a culpa à do patrÃo. Se me drogo, a culpa à dos meus pais. Se furto, roubo, mato, a culpa à do sistema. Eu, sou apenas uma vÃtima. Uma eterna vÃtima. O opressor à vocÃ, que trabalha, paga suas contas em dia e vive sua vida. Minhas coisas nÃo saÃram como eu queria. Estou com muita raiva. Quando eu era crianÃa, eu batia os pÃs no chÃo. Mas agora, fisicamente, eu cresci. Portanto, vocà pode ser o prÃximo.â

Qualquer um de nÃs pode ser o prÃximo, por qualquer motivo. Em qualquer lugar, dentro ou fora das escolas. A facada ignÃbil no professor KÃssio dÃi no peito de todos nÃs. Que a sua morte nÃo seja em vÃo. à hora de repensarmos a educaÃÃo brasileira e abrirmos mÃo dos modismos e invencionices. A melhor ânova cultura de pazâ que podemos adotar nas escolas e universidades à fazermos as pazes com os bons e velhos conceitos de seriedade, responsabilidade, disciplina e estudo de verdade.

Igor Pantuzza Wildmann

Advogado â Doutor em Direito. Professor universitÃrio

Â