[Prévia] [Próxima] [Prévia por assunto] [Próxima por assunto]
[Índice cronológico]
[Índice de assunto]
Será mesmo que foi engano?
- Subject: Será mesmo que foi engano?
- From: cpereira@ime.usp.br
- Date: Tue, 29 Nov 2011 07:48:27 -0200
Ler o Jabor é difícil, pois em um dia fala coisas interessantes e no
outro parece outra pessoa e não se aproveita nada.
Mas em diversas de suas crônicas parece que me olho no espelho
pensando em meu passado como o dele, que parte do tempo viveu no mesmo
ambiente que vivi: zona suo do Rio.
Hoje foi um desses dias, justamente depois de receber uma aula de meu
filho mais velho, quando me descreveu seu conceito de felicidade.
Achei que deveria registrar aqui em nossa rede para que meus
contemporâneos matem a saudade dos tempos idos e talvez para alertar
os jovens do que pode ser no futuro, as lembranças de cada um.
Bom dia!
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,desculpe-e-engano,804316,0.htm
Arnaldo Jabor - O Estado de S.Paulo
Há dez anos, eu estava em um hospital para ser operado, e, à espera da
faca, talvez por medo, escrevi um texto sobre minha mãe, no secreto
desejo de ela me proteger. Voltei esses dias ao hospital para exames
(nada grave, espero) e me lembrei de minha lembrança, da memória de
uma memória. E, em minha viagem de recordações, repito trechos desse
artigo sobre ela que foi, afinal, a personagem central de tudo que me
aconteceu.
Ando com vontade de telefonar para ela. Mas minha mãe já morreu. Mesmo
assim, quis ligar pois, talvez, no telefone, houvesse um milagre e ela
atendesse: 'Alô? 284858? Mamãe?'
Na época desse número remoto do Méier, sua voz era jovem e feliz.
Depois, foi enfraquecendo por outros números, até o tempo em que, já
velhinha, atendia triste e doente ao 478378: "E aí, meu filho... tudo
bem?" Como seria bom o telefone me salvar e alguém me chamar de "meu
filho". Seria bom ser teletransportado ao passado e fugir das dores do
país, do mundo e de mim mesmo. Confesso que, em alguns momentos de
desespero, eu já liguei escondido para números antigos de casas em que
morei. Ouvia a voz anônima e falava: "Desculpe, é engano...", com a
sensação de, por instantes, ter visitado minha velha casa. Minha mãe
era linda. Parecia a Greta Garbo. Um dia, meu avô bateu nuns
vagabundos que mexeram com ela, ainda mocinha, na base do "Tem garbo,
mas não tem greta" e outras sacanagens de época... Meu avô, malandro e
macho, pegou a bengala e cobriu-os de porrada. A vida de minha mãe foi
a tentativa de uma alegria. Sorria muito, trêmula, insegura e, nela,
eu vi a história de tantas mulheres de seu tempo buscando uma
felicidade sufocada pelas leis do casamento, pela loucura repressiva
dos maridos. Meu pai era um árabe alto, de bigode, pilotando aviões de
guerra; era um homem bom e amava-a, mas nunca conseguiu sair do
espírito autoritário da época e, inconscientemente, se enrolou numa
infelicidade que oprimia os dois. Na classe média carioca dos anos 50,
cercados de preconceitos, medos e ciúmes nas casas sombrias, os casais
estavam programados para tristezas indecifráveis. Eram cenários
estreitos para o amor: a casa do subúrbio, o apartamento micha de
Copacabana, onde vi minha mãe enlouquecer pouco a pouco, tentando
manter um sonho de família, tentando manter a cortina de veludo, a
poltrona coberta de plástico para não gastar, os quadros de rosas e
marinhas e a eterna desculpa para os raros visitantes: "Não reparem
que a casa não está pronta ainda..." (isso, com 50 anos de casada). A
casa nunca ficou pronta, como ela, Greta Garbo do subúrbio, sonhou - a
casa feliz, com bolos decorativos nas festas, seu orgulho, a única
coisa que ela sabia fazer: bolos em forma de avião, para homenagear
meu pai piloto, em forma de livro, para me fazer estudar, ou em forma
de piano para minha irmã tocar, naqueles aniversários em que os sofás
de cetim marrom e branco eram descobertos com vaidade. Na juventude,
minha mãe era infeliz e não sabia, pois todas as suas forças eram
convocadas para esquecer isso. Cantava foxes, para desgosto de meu
pai, e ria com medo - se bem que ninguém era muito feliz naquele
tempo. Não havia essa infelicidade esquizofrênica de hoje, mas era uma
infelicidade tristinha, com lâmpada fraca, uma infelicidade de novela
de rádio, de lágrimas furtivas, de incompreensões, de conceitos pobres
para a liberdade. Eu via as famílias; sempre havia uma ponta de
silêncio, olhos sem luz, depois dos casamentos esperançosos com buquês
arrojados para o futuro que ia morrendo aos poucos. Não era a tristeza
da pobreza; dava para viver, com o Ford 48 sendo consertado
permanentemente por meu pai sujo de graxa, aos domingos, com o rádio
narrando o futebol; dava para viver com uma empregadinha mal paga;
dava, mas a tristeza era quase uma "virtude" que as famílias
cultivavam, sem horizontes. Toda minha vida consistiu em fugir daquela
depressão e em tentar salvá-los. Eu queria dizer: "Saiam dessa, há
outras vidas, outras coisas!" - logo eu, que achava que ia descobrir
mundos luminosos feitos de revoluções e de prazeres, eu que achava que
viveria na vertigem do sexo que se libertava, na bossa nova, na arte,
ilusões que foram logo apagadas pelo golpe de 64 que, com apoio do meu
pai, restaurou a luz mortiça das famílias, das esposas conformadas em
seus cativeiros. Minha geração se achava o "sal da terra", tocada pela
luz da modernidade. Mal sabíamos do outro desamparo que viria; não a
melancolia do rádio aceso no escuro, não a televisão Tupi ainda
trêmula em preto e branco, não as esquinas cheias de mistério, não o
apito do guarda noturno, mas a nossa impotência diante do excesso de
acontecimentos. Hoje, vivemos essa liberdade desagregadora, vivemos o
medo das ruas, das balas perdidas, que não havia quando mamãe ia
visitar a médium de "linha branca" que lhe prometia felicidade com voz
grossa de "caboclo". Antes, minha mãe e meu pai tinham a ilusão de uma
"normalidade". Hoje, todos nos sentimos sem pai e sem mãe, perdidos no
espaço virtual, dos e-mails, dos contatos breves, da vida rasa sem
calma. O que vai nos acontecer neste mundo, neste país de crimes e de
riscos-Brasil, onde nada se soluciona, onde tudo é impasse e encrenca?
Será que nunca mais teremos sossego? Sinto imensa saudade da
linearidade, do princípio, do meio e do fim das vidas, e tenho medo de
ter morrido e de não perceber. Por isso, me dá essa vontade profunda
de pegar o telefone e discar, não num celular volúvel, mas num
aparelho preto, velho, de ebonite, discar, ouvir a voz de minha mãe e
voltar para a salinha de móveis "chippendale" e vê-la sempre querendo
ser feliz, mas com vergonha das visitas: "Não reparem que a casa não
está pronta..." Na verdade, tenho vontade de discar, mas é para saber
quem sou eu. E quando disserem: "Quem fala?" - pensarei: "É o que me
pergunto sempre..." Mas, sei que vou desligar, dizendo: "Desculpe, é
engano..."
Carlos Alberto de Braganca Pereira <cpereira@ime.usp.br>