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Contra a recusa de nosso olhar



Caros Redistas:

Gostaria de enviar uma mensagem otimista neste dia de natal. Contar sobre realizações, falar sobre a chegada de um neto, um artigo que terminamos etc. Há sim coisas boas de se contar! Então abri o estadão de hoje no caderno Aliás e ali encontrei nosso companheiro José de Souza Martins com um artigo para todos emocionar e sensibilizar. O título é ?A guernica solitária de Zarella?. Zarella é o fotógrafo que ilustrou o editorial com fotos da Cracolândia do centro de São Paulo. Este trabalho vem nas duas páginas centrais do caderno Aliás deste dia de natal.

Reproduzo, pois não consegui o link do estadão para vocês, as palavras de Zarella e alguns parágrafos do Martins.


Contra a Recusa de Nosso Olhar por Zarella Neto.

Vendo e vivendo um pouco da dor e do descaso que a sociedade impõe aos seus filhos doentes, achei que com uma câmera fotográfica e uma dose diária de convivência poderia emprestar um olhar que todos perderam ou fingem não ver.

Não tenho ou tive qualquer tipo de intenção com o que registrei. Eu vivi o drama. Um abismo profundo está sendo imposto aos desamparados que adoecem com o crack. A falta de perspectiva da ajuda real é latente e confirmada por mim neste documento social fotográfico, em sua realidade e tristeza.

Percebo que as moléstias do passado estão de alguma maneira convivendo conosco na contemporaneidade do preconceito e da ignorância. Nossos antepassados separavam os leprosos da sociedade; nós, hoje fazemos o mesmo com os enfermos das ruas.

Onde nos perdemos? Nos pontos e redutos de consumo de crack o tempo parou. Parou sentou, fumou uma pedra e por lá ficou... Olho a loucura fúnebre dessa massa perdida, da mesma maneira que vejo a não comoção da sociedade perante tamanho problema. Eu vejo com tristeza e curiosidade.

Percebo que só com conscientização e mobilização social resolveremos nossos problemas. Manobras de massa, descaso público, repulsa, falta de conhecimento da sociedade ou menosprezo de um povo egoísta?

Eu, Zarella Neto, divido com vocês estas fotos, cujo conteúdo é de angústia e desolação. Ocupar, tomar por direito o que é nosso. Comecemos por nossos filhos doentes.


Martins ao final da exposição das fotos escreveu o artigo ?A guernica solitária de Zaretta? em referência a famosa obra do mestre Picasso. Tanto Zarella quanto o Martins estiveram lá olhando a degradação do ser humano em loco.

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A busca de Zarella é a do fotógrafo que quer ir além da imagem. A beleza de sua fotografia é a de quem saiu à procura da alma perdida dos que se extraviaram pelas ruas da cidade imensa, dos que nessas travessas já não sabem o que é travessia, a vida, sem dúvida, como passagem, mas também como destino. Ali, destino é o final, a derradeira estação. O amigo que me levou até l, para no estúdio de Zarella Netto, visitar as tocantes e belas fotografias e ficou no carro, a minha espera, comentou depois: ?Todos nós vamos morrer. Mas esses ai já estão chegando lá?. As fotos do sombrio, do promíscuo gregarismo dos solitários, uns caídos aqui, outros sentados no chão li, bocas sem voz, olhos sem luz, são fotos densas, pungentes, recado para quem vê e não enxerga. .... Mais além, uma cachorro fiel não abandona o dono, na lealdade que os humanos não têm. Deita ao seu lado e espera, na infinita e canina paciência dos verdadeiros amigos. ....

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Enquanto meu amigo me esperava no carro, meu amigo viu uma mulher chegar em prantos à procura do filho. Encontrou-o, adolescente bem vestido, de uns 16 anos, sentado nomeio daquela humanidade residual. Implorou-lhe para que voltasse para casa. Ele fazia com os braços gestos de recusa e impaciência. A mãe órfã de filho retirou-se chorando. Um PM pediu a um velho drogado que fizesse o rapaz voltar para casa. O velho garantiu: ?Fique sossegado. Não vamos permitir que ele fique aqui?.

Cristo pródigo na gruta de Belém da cracolândia, Maria esperará em vão, a manjedoura estará vazia, a palha não aquecerá o menino que não veio, a vida que não nasceu, o sonho que não se fez vida. O Espírito fecundou em vão.
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Tive a grata satisfação de conhecer Martins nas reuniões de meu mestre Flávio Rodrigues e acompanhá-lo em discussões com a OIT sobre algum método de amostragem para descobrir onde estariam as fazendas com trabalho escravo nas zonas rurais brasileiras. Claro que não vingou, pois quem escraviza são nossos promissores políticos.



Carlos Alberto de Braganca Pereira <cpereira@ime.usp.br>