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Contra a recusa de nosso olhar
- Subject: Contra a recusa de nosso olhar
- From: cpereira@ime.usp.br
- Date: Sun, 25 Dec 2011 09:00:08 -0200
Caros Redistas:
Gostaria de enviar uma mensagem otimista neste dia de natal. Contar
sobre realizações, falar sobre a chegada de um neto, um artigo que
terminamos etc. Há sim coisas boas de se contar! Então abri o estadão
de hoje no caderno Aliás e ali encontrei nosso companheiro José de
Souza Martins com um artigo para todos emocionar e sensibilizar. O
título é ?A guernica solitária de Zarella?. Zarella é o fotógrafo que
ilustrou o editorial com fotos da Cracolândia do centro de São Paulo.
Este trabalho vem nas duas páginas centrais do caderno Aliás deste dia
de natal.
Reproduzo, pois não consegui o link do estadão para vocês, as palavras
de Zarella e alguns parágrafos do Martins.
Contra a Recusa de Nosso Olhar por Zarella Neto.
Vendo e vivendo um pouco da dor e do descaso que a sociedade impõe aos
seus filhos doentes, achei que com uma câmera fotográfica e uma dose
diária de convivência poderia emprestar um olhar que todos perderam ou
fingem não ver.
Não tenho ou tive qualquer tipo de intenção com o que registrei. Eu
vivi o drama. Um abismo profundo está sendo imposto aos desamparados
que adoecem com o crack. A falta de perspectiva da ajuda real é
latente e confirmada por mim neste documento social fotográfico, em
sua realidade e tristeza.
Percebo que as moléstias do passado estão de alguma maneira convivendo
conosco na contemporaneidade do preconceito e da ignorância. Nossos
antepassados separavam os leprosos da sociedade; nós, hoje fazemos o
mesmo com os enfermos das ruas.
Onde nos perdemos? Nos pontos e redutos de consumo de crack o tempo
parou. Parou sentou, fumou uma pedra e por lá ficou... Olho a loucura
fúnebre dessa massa perdida, da mesma maneira que vejo a não comoção
da sociedade perante tamanho problema. Eu vejo com tristeza e
curiosidade.
Percebo que só com conscientização e mobilização social resolveremos
nossos problemas. Manobras de massa, descaso público, repulsa, falta
de conhecimento da sociedade ou menosprezo de um povo egoísta?
Eu, Zarella Neto, divido com vocês estas fotos, cujo conteúdo é de
angústia e desolação. Ocupar, tomar por direito o que é nosso.
Comecemos por nossos filhos doentes.
Martins ao final da exposição das fotos escreveu o artigo ?A guernica
solitária de Zaretta? em referência a famosa obra do mestre Picasso.
Tanto Zarella quanto o Martins estiveram lá olhando a degradação do
ser humano em loco.
.....
A busca de Zarella é a do fotógrafo que quer ir além da imagem. A
beleza de sua fotografia é a de quem saiu à procura da alma perdida
dos que se extraviaram pelas ruas da cidade imensa, dos que nessas
travessas já não sabem o que é travessia, a vida, sem dúvida, como
passagem, mas também como destino. Ali, destino é o final, a
derradeira estação. O amigo que me levou até l, para no estúdio de
Zarella Netto, visitar as tocantes e belas fotografias e ficou no
carro, a minha espera, comentou depois: ?Todos nós vamos morrer. Mas
esses ai já estão chegando lá?. As fotos do sombrio, do promíscuo
gregarismo dos solitários, uns caídos aqui, outros sentados no chão
li, bocas sem voz, olhos sem luz, são fotos densas, pungentes, recado
para quem vê e não enxerga.
.... Mais além, uma cachorro fiel não abandona o dono, na lealdade que
os humanos não têm. Deita ao seu lado e espera, na infinita e canina
paciência dos verdadeiros amigos. ....
..........
Enquanto meu amigo me esperava no carro, meu amigo viu uma mulher
chegar em prantos à procura do filho. Encontrou-o, adolescente bem
vestido, de uns 16 anos, sentado nomeio daquela humanidade residual.
Implorou-lhe para que voltasse para casa. Ele fazia com os braços
gestos de recusa e impaciência. A mãe órfã de filho retirou-se
chorando. Um PM pediu a um velho drogado que fizesse o rapaz voltar
para casa. O velho garantiu: ?Fique sossegado. Não vamos permitir
que ele fique aqui?.
Cristo pródigo na gruta de Belém da cracolândia, Maria esperará em
vão, a manjedoura estará vazia, a palha não aquecerá o menino que não
veio, a vida que não nasceu, o sonho que não se fez vida. O Espírito
fecundou em vão.
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Tive a grata satisfação de conhecer Martins nas reuniões de meu mestre
Flávio Rodrigues e acompanhá-lo em discussões com a OIT sobre algum
método de amostragem para descobrir onde estariam as fazendas com
trabalho escravo nas zonas rurais brasileiras. Claro que não vingou,
pois quem escraviza são nossos promissores políticos.
Carlos Alberto de Braganca Pereira <cpereira@ime.usp.br>