[Prévia] [Próxima] [Prévia por assunto] [Próxima por assunto]
[Índice cronológico]
[Índice de assunto]
Filosofia Africana - deu na folha
- Subject: Filosofia Africana - deu na folha
- From: cpereira@ime.usp.br
- Date: Fri, 16 Mar 2012 08:11:43 -0300
O Arcebispo Desmond Mpilo Tutu em uma das suas brilhantes entrevistas
nos disse que a Africa não irá mudar enquanto os africanos não pararem
de culpar àqueles espíritos ruins e os olhos grandes por todas as
infelicidades pessoais. Isto é, tudo de ruim que acontece na vida de
cada um a culpa é sempre dos entes invisíveis que dominam suas mentes.
A folha de hoje apresenta um daqueles nossos alunos que passam pelas
nossas escolas fazendo aquilo que abominamos. O pior, virou um herói
em uma imprensa como a nossa. Novamente a culpa dos males do cara é a
nossa escola e não o fato de o malandro não estudar e não fazer o que
deve para poder se preparar para lutar por uma vida melhor.
Somos como os africanos e culpamos nossos males à sociedade ou às
nossas instituições: nunca aos nosso erros e equívocos. O jornalista
que publicou tal matéria deve ter passado por sua escola da mesma
forma: com colas e malandragens.
Saudações
Carlinhos
Jotagá Crema
Como desisti da Escola Politécnica
------------------- Texto gancho -----------------------
Na Poli, as várias técnicas de cola eram uma instituição, trapacear
era natural; os alunos acabavam a prova e as fórmulas, de origem
misteriosa, já eram esquecidas
-----------------Fim do texto gancho ------------
Em 2002, comecei a cursar engenharia na Escola Politécnica da
Universidade de São Paulo. Tinha passado os últimos dois anos do
colegial obcecado por notas e vestibular.
O colégio onde fiz o ensino médio, o Agostiniano Mendel, estimulava os
alunos a estudarem para as provas através de rankings de
classificação, que serviam para definir em qual sala cada um ficaria.
Entrei completamente no jogo. Raramente conversava com amigos fora do
colégio, saía pouco, dificilmente pesquisava assuntos não relacionados
ao vestibular -sentia culpa por estar perdendo um tempo precioso. Fiz
uma lista de livros e filmes que poderia ler e assistir quando
finalmente passasse no vestibular.
Não sabia qual curso escolher. Meu melhor amigo tinha um primo
engenheiro com um belo emprego corporativo. Como eu era bom em exatas,
por que não garantiria uma carreira promissora?
Apaixonei-me pelo campus da USP. Fui a festas. Tive alguns amores
uspianos. Até remo pratiquei.
Na Poli, as semanas de prova guiavam as vidas dos alunos. Todos
entravam no ciclo básico e, de acordo com a sua classificação,
escolhiam as especialidades. Ou seja, a competitividade do colegial
seguia. Eu nunca tinha tirado uma nota vermelha na vida até a primeira
prova de álgebra linear. Percebi que jamais seria um dos primeiros do
ranking e me sentia cada vez mais desmotivado.
As coletâneas de provas de anos anteriores, vendidas no xerox do
grêmio, eram muito disseminadas. Estudávamos através delas, muitas
vezes sem saber de onde surgiam fórmulas e técnicas. O objetivo era
passar nas provas, não aprender. Era tão grande a pressão por notas, e
as disciplinas tão desconexas, que trapacear era algo natural.
Colas: escritas sutilmente nas antigas carteiras de madeira, com uma
leve passada de borracha para disfarçar. Em papeizinhos escondidos no
estojo, na caneta, no bolso. Escritas no braço ou nas sofisticadas
calculadoras HP, nas quais armazenávamos páginas de fórmulas. Papéis
que passavam de um estudante para o outro. E o bom e velho cochichar.
Tínhamos uma ética própria na arte da cola: jamais dedávamos alguém em
nossa tática de guerrilha contra um sistema de avaliação maluco. E
bastava terminar a prova para que todas aquelas fórmulas e técnicas
vazias abandonassem a mente.
Em 2005, estava no quarto ano, em engenharia mecatrônica. Estagiava há
dois meses em um banco. Ia para a Poli de tarde com uma roupa social
que me dava um ar sério.
Ao dar uma aula-trote na semana de recepção dos calouros, percebi o
quanto tinha me afastado do amor que eu tinha pela ciência e como o
meu conhecimento era superficial -fiquei em silêncio e, estarrecido,
abandonei a sala.
O tédio imperava no estágio. Fazia com indiferença os cursos do banco:
trabalho em equipe, influência, negociação... No computador de
trabalho, escrevia textos de ficção. Na Poli, fazia as provas e tirava
as notas suficientes de sempre.
Até que, um dia, fui pego colando em uma prova de eletrônica digital.
"É, João. A vida não é fácil", disse o professor. "Mas não é
impossível", pensei. Fiquei profundamente feliz por ser pego, tive
certeza de que ali não era meu lugar.
Abandonar a Poli foi difícil. Outro aluno também foi pego passando a
resolução de um exercício. O professor decidiu nos vincular: um só
passaria se o outro também passasse. Mesmo tendo desistido, fiz as
aulas e as provas. Fui aprovado com 5,0.
Saí com a consciência tranquila e passei em último lugar no curso de
audiovisual da USP. Estou formado há um ano e creio que, apesar do
difícil mercado de trabalho, estou na área certa. Sinto maior
liberdade para pensar e me expressar. Uma escolha errada não precisa
acabar com uma vida inteira.
Preparo-me para fazer mestrado. Quero ser professor. E tenho certeza
de uma coisa: se um dia tiver de aplicar provas, elas terão consulta.
JOÃO HENRIQUE AURICHIO CREMA, o Jotagá Crema, 28, é formado em
audiovisual pela USP. É um dos diretores da série "Três por Cento"
(facebook.com/3porcento)
Carlos Alberto de Braganca Pereira <cpereira@ime.usp.br>