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Jogos eletrônicos: técnica ilusionista ou emancipadora?
Fátima Cabral
Apresentação
Este ensaio tem por objetivo traçar alguns caminhos possíveis de análise para se pensar os
impasses contemporâneos colocados no âmbito da cultura social.
Trata-se de um texto mais interrogativo do que conclusivo, parte de um estudo mais amplo (1)
em que se pretende verificar qual é a tendência cultural das atividades lúdicas em face da
tecnologia: emancipadora ou massificadora? Em outros termos, busca-se compreender o lugar e o papel da
cultura lúdica em um mundo cada vez mais automatizado, marcado pelo encurtamento da jornada de
trabalho e pelo aumento do tempo livre.
Na atualidade, grande parte de nossas ações e relações é mediada por objetos eletrônicos. O
desenvolvimento da indústria e a conseqüente divisão social do trabalho nos séculos XVII e XVIII
apenas marcam o início das transformações que, em nossos dias, ganham uma sofisticação técnica
inimaginável para aquele período.
Desde um simples transistor até o mais sofisticado
chip testemunha-se o empenho do homem, ao longo do tempo, no sentido de aprimorar as diversas formas de comunicação. A rede informacional
hoje potencialmente disponível coroa de êxito esse esforço.
A mecanização e a robótica, através dos seus mecanismos "inteligentes", tornaram algumas
máquinas aptas a exercer diferentes funções e a realizar complexas tarefas a partir de um simples
gesto humano. O homem pode, assim, poupar muito de seu tempo, de sua força e de sua energia física
pois em ambos os processos sua relação com o mundo objetivado tem-se reduzido principalmente
às extremidades do seu corpo: pé, mão, olho.
Também o ritmo imposto pelo desenvolvimento tecnológico (2) mais rápido, mais fugaz
tem alterado o uso dos sentidos, exigindo outros movimentos de corpos, de gestos, de linguagem. Esse
é um processo que atinge não só os adultos, mas também as crianças que, em nossos dias, estão
tendo que aprender a encurtar sua fase
infans. De modo especial, elas se iniciam nessa aventura
tecnológica via jogos eletrônicos.
Esses jogos representam, para a cultura lúdica infantil mas não só , o que há de mais moderno
e inovador em matéria de diversão eletrônica. Também aparentam ser a expressão cultural do processo
de mundialização que, em última instância, "co-habita e se alimenta" das culturas e dos imaginários
locais e regionais (cf. Ortiz, 1994).
Tomados a partir desse duplo aspecto símbolo de modernidade e expressão da cultura global
, os jogos eletrônicos representam, em nosso estudo, uma
estratégia de análise privilegiada.
Expressão mais bem acabada da cultura lúdica na modernidade, os jogos eletrônicos são
mediadores entre a criança e os valores socioculturais que, sob determinado ponto de vista, se pretendem
"globais". Enquanto globais, porém, os valores devem ser abstratos, desterritorializados, desenra-izados, a fim
de que possam ser alienáveis em todas as esferas da sociedade.
Na esfera da cultura lúdica, esses jogos parecem ser os que melhor sintetizam os valores universais.
Nesse sentido, nosso objeto de estudo não se fecha nos jogos eletrônicos. Antes, abre-se com eles
para tentar reconhecer, no âmbito da assim chamada pós-modernidade, as estratégias que
possivelmente reforçam, ou que garantem, para as novas gerações, a absorção dos ideários fundantes da
subjetividade social globalizada.
Trata-se, pois, de um estudo teórico sobre as possibilidades de realização, no âmbito da cultura,
das bases ontológicas de um novo ser social que deverá buscar, para além do consumo padrão, a
expressão omnilateral de si.
Trabalho e Lazer
Diferente do que acontece às crianças, o adulto, quando joga ou brinca, realiza uma "fuga
da realidade", uma fuga dos dias estafantes. Nesse sentido, as atividades lúdicas são apreendidas
como uma resposta à necessidade básica que toda pessoa tem de relaxamento e distensão. Tais
atividades tanto podem corresponder a um conceito psicológico de catarse, como a uma práxis habitual da
sociedade moderna, onde o tempo é individualmente percebido como tempo de trabalho e tempo de lazer.
No âmbito da sociedade moderna, como assinalado por Marx nos
Manuscritos de 1844, há um movimento contínuo de decomposição do processo produtivo, cuja conseqüência imediata é a
formação de trabalhadores decompostos, desefetivados, na medida em que seu saber, antes objetivado
na "matéria natural" pela sua ação concreta, teleológica, degradou-se ao se transformar, pela lógica
do capital, em trabalho abstrato.
Dessa transformação de trabalho concreto para trabalho abstrato também resulta que as
oportunidades de realização do homem no e pelo trabalho estão corrompidas pois aquele não mais
se reconhece enquanto ser social, produtor de bens sociais, mas vê-se apenas como ser individual que
se relaciona, de forma exteriorizada e fragmentária, com outros homens e com o produto dessa
relação: o mundo das coisas estranhas e úteis. A esse fenômeno Marx chamou "estranhamento".
Assim, sob a divisão social do trabalho e sua forma mais acabada, a alienação do trabalhador
na esfera produtiva, a possibilidade de realização omnilateral do indivíduo enquanto ser social, ou
seja, a possibilidade de experimentar uma "vida plena de sentido", parece ter-se transferido,
privilegiadamente, para a esfera do não-trabalho, esfera de um tempo tido como secundário. A ética do
trabalho transformou-se, pois, em ética do consumo. E é nesse âmbito que em um primeiro momento
parece localizar-se, para o sujeito estranhado, a possibilidade de experimentação de uma atividade
humanamente mais satisfatória.
Desse modo, para se contrapor ao mundo do trabalho, ao mundo das atividades mais graves,
as atividades lúdicas, particularmente as infantis, permanecem envolvidas em uma espécie de "aura
de inocência" e de desinteresse para o mundo adulto sugerindo, ainda, uma evasão, um intervalo na
vida real.
Acontece que a vida cotidiana, como bem analisa Agnes Heller (1992), é heterogênea e no
seu interior não podemos manter em reflexão, simultaneamente, todas as nossas capacidades ou
atividades. Quanto mais profundamente nos entregamos a uma atividade seja ela qual for: jogo,
trabalho, o aprendizado de uma nova língua, etc. , esse mergulho significa a "suspensão" das demais
sem, contudo, perder o caráter orgânico com a vida ordinária.
A necessidade e a motivação é que determinarão a rotatividade de cada atividade
hierarquicamente organizada no dia-a-dia. Em outros termos, a necessidade e a motivação determinarão qual ou
quais atividades ficarão "suspensas", "desaparecerão", e qual ou quais receberão de nós toda a
concentração. Como se vê, essa faculdade de nos "transportar" para além do imediato é uma característica
que encontramos não só no jogo, mas em toda e qualquer atividade à qual nos dedicamos com
certo abandono, seja ela lúdica ou não.
Como brincar ou jogar são atividades costumeiramente atribuídas às crianças, aquelas que, por
um privilégio de classe, não necessitam dividir hierarquicamente esse tempo lúdico com o tempo
de trabalho produtivo, parecem permanentemente envoltas em um
círculo mágico, à mercê do seu
encanto e ilusão. Todavia, antes mesmo de se constituir em entretenimento, o jogo ou a brincadeira têm,
para qualquer criança, um valor cultural (ainda que disso ela não tenha consciência) construído a partir
do mundo que a rodeia e do qual retira o conteúdo dessas atividades. Assim compreendidos, o brincar
e o jogar infantil não podem ser considerados como um simples passatempo. Representam, antes,
uma atitude lúdica criadora e
socializante, pois transportam as crianças para diversas experiências,
abrindo-lhes as portas para o entendimento da realidade e ajudando-as a construir suas próprias
categorias axiológicas.
A partir desse ponto de vista sociocultural é possível perceber que, longe do aspecto que
poderia caracterizar inocência, desinteresse, os jogos, assim como alguns elementos que lhes servem de suporte
e algumas brincadeiras, têm um sentido claro de
preparação para a vida adulta.
No caso mais específico do objeto deste estudo os jogos eletrônicos , busca-se analisar até
que ponto eles cumprem esse papel ao ajudar as crianças a se adaptarem às mudanças tecnológicas.
Todavia, até que ponto adaptar-se à tecnologia, em si, significa tornar-se mais apto ao futuro?
Não restam dúvidas quanto ao fato de as inovações tecnológicas exigirem um certo saber
especializado, bem como o desenvolvimento de determinadas capacidades intelectivas e mesmo motoras.
O que não é tão evidente, porém, é se esse desenvolvimento técnico far-se-á ou não acompanhar de
um "desenvolvimento da personalidade humana" (3).
Em um universo cada vez mais automatizado, onde
em tese desaparece o homo faber para dar
lugar ao homo communicans, onde estão reduzidas as noções de transformação, de processo, de
mudança, de criação e, no que diz respeito aos saberes, a qualificação do indivíduo, quais as "novas" virtudes
e habilidades requeridas por um mercado cada vez mais ajustado pela técnica e gerador de uma
mais rígida segmentação e dessencialização do trabalhador?
Por outro lado, com o emprego cada vez maior da tecnologia em todos os setores, o homem
terá mais tempo livre para a elaboração e a fruição da cultura. Não obstante, é preciso indagar:
1o) de que tipo de cultura estamos falando ou deveremos falar;
2o) o que significa a "simplificação" trazida
pela técnica a todos os processos da vida coletiva (4), e se esta simplificação, juntamente com a
cultura de massa, a cultura do espetáculo, poderá obstaculizar e corromper ainda mais a "virtude
intelectual" dos indivíduos, dificultando-lhes a possibilidade de, nesse tempo livre, desenvolver uma
condição crítica para além do consumo padrão.
Dumazedier, considerado o pioneiro da sociologia do lazer, reconhece que "a passagem do
tempo livre ao tempo de lazer não é só uma questão de números de horas livres, mas supõe, sobretudo,
um espírito novo, em que o sujeito deverá usar o tempo livre para a realização de si e para a
parti-cipação social" (5). Nesse sentido, nossas indagações anteriores podem também ser colocadas de outro
modo: por estarem os sujeitos expostos desde a infância ao simulacro, eles terão melhores condições
para buscar, nesse tempo livre, envolver-se em um processo de autoformação, tornando-se sujeitos
mais livres, independentes das influências condicionantes? Enfim, tornar-se-ão sujeitos que,
conhecendo bem a "arte ilusionista", compreenderão melhor as diferenças entre arte e técnicas audiovisuais,
entre ciência, pseudociência e mídia, entre o real concreto e a realidade virtual, entre o imaginário do
jogo e o imaginário social?
Se, como dissemos anteriormente, na sociedade moderna a possibilidade de realização do
indivíduo foi transferida ao menos aparentemente para fora do processo produtivo, faz-se necessário
uma investigação na esfera do não-trabalho para verificar as reais oportunidades de auto-realização e
de emancipação humana no tempo-de-não-trabalho, no tempo-livre.
Retirar a "aura de inocência" que protege a esfera do lazer adulto e as atividade lúdicas
infantis representa, pois, desnudar os mecanismos ideológicos que obstaculizam a possibilidade de
eman-cipação do ser social para além da esfera produtiva. Contudo, tomar como dialética a relação
entre tempo de trabalho e tempo de lazer significa analisar os mecanismos ideológicos e de
estranhamento a que estão submetidos os indivíduos em todas as esferas da vida social sob a égide do capital. E
tal exercício impõe uma outra indagação ainda mais fundamental, síntese das anteriores: qual ou quais
as oportunidades de se conquistar um "novo espírito" em uma sociedade que não promoveu, ainda,
uma ruptura estrutural suficientemente capaz de permitir o desenvolvimento de uma nova ontologia?
A Cultura do Espetáculo
Acreditando que é especialmente pelo estudo das transformações históricas que se pode
entender a diversidade, a variação e o papel dos jogos, assim como o conceito de tempo nas diferentes
culturas, investigaremos a contribuição histórico-cultural dos jogos, particularmente na atualidade movida
pela eletrônica, para tentar desvendar o que há de realmente "novo" e de "moderno" em comparação
aos jogos chamados "tradicionais".
Os jogos eletrônicos aparentemente pairam acima das tradições culturais locais, na medida em
que buscam uma padronização definida em escala global que parece pôr fim às antigas formas lúdicas de
representação social e cultural; conservam independência em relação à realidade possível, ou seja,
é o lugar por excelência da virtuosidade técnica, do fantástico, onde espaço e tempo (reais) são
categorias inessenciais. Traduzem, portanto, a desterritorialização das culturas lúdicas através de um processo
que já conhecemos como fetichização.
Tudo isso representa, indubitavelmente, novidade que encanta e fascina. Todavia, essa
novidade pode ser também considerada moderna? Segundo Octavio Paz (1974) a novidade, para ser
moderna, precisa de duas cargas explosivas: ser negação do passado e ser afirmação de algo diferente,
entendido esse como aquilo que se opõe aos gostos tradicionais estranheza polêmica, oposição ativa.
O conteúdo de alguns jogos eletrônicos, por sua vez, não parece sugerir nenhum
estranhamento, negação, crítica, nada de inesperado: cinderelas, torres, dragões e cavaleiros que se arriscam para
salvar a princesa ou a sua própria honra; às vezes é necessário astúcia para desvendar enigmas ou, pura
e simplesmente, indica regras de conduta e de comportamento. Tal conteúdo sugere, talvez, um
testemunho histórico, só que este vem destituído do peso da tradição e do mistério. Através da
combinação entre conteúdo (aparentemente tradicional) e forma (moderna), é possível, porém, observar
a "reprodutibilidade técnica" dos temas tradicionais, irreverentemente atualizados (Benjamin).
Na verdade, tais jogos parecem oferecer àqueles que os manipulam a possibilidade de se
inserirem em uma "realidade" mais rica de emoção do que aquela que poderiam encontrar em suas
próprias experiências, particularmente quando estas não correspondem às suas potencialidades criadoras.
Enquanto a realidade é muitas vezes tomada como ilegítima, no jogo o que importa é a fantasia
vivida eletronicamente. Assim sendo, os videojogos, principalmente os que sugerem violência,
possivelmente funcionam como uma espécie de catarse para a angústia, o sonho, e também para a inclinação
que jovens e crianças têm pelo perigo, pelo desafio competitivo, pela experiência.
E, nesse sentido, os videojogos parecem possibilitar uma inserção cultural, ainda que virtual,
não muito diferente das experiências vividas com os jogos "tradicionais" e com as antigas competições,
que em nosso estudo estarão incluídas na mesma categoria do jogo.
Na maioria das vezes, as competições aconteciam exatamente para demonstrar a superioridade
dos homens, de grupos, de comunidades ou de países. Impulsionados pelo imperativo da honra, da
fidelidade ou justa causa, sua relação com a cultura era objetiva e seu resultado notadamente
importante para o grupo.
Todavia, ainda que os jogos eletrônicos repitam temas épicos em uma sociedade que decretou
a morte da epopéia , o imperativo a que se obedece ao manipulá-los é o da exaltação do ego. Sua
relação com a cultura, porém, não deixa de ser também objetiva, na medida em que é esse o sintoma
encorajado pela cultura narcísica onde se movem esses sujeitos.
· · ·
Como acentuado no início consideramos que jogos, brinquedos e brincadeiras de uma maneira
geral atuam como educadores de atitudes. Pretendemos ressaltar, com isso, que o mundo dos jogos e
das brincadeiras não está situado apenas no mundo do fantástico, do ilusório. O brincar ou o jogar são,
antes, facetas de uma atividade arbitrária e objetiva; representam um mergulho na cotidianidade vivida
mais do que um divertimento evasivo ou desinteressado. Assim, longe de constituírem um objeto
menor para a análise sociológica, os jogos podem ser elementos reveladores da degeneração ou da
emancipação da cultura em determinado momento histórico. Isso significa que tomamos os jogos
como substância da sociedade, a ponto de, direta ou indiretamente, influírem no destino das culturas.
No que diz respeito aos jogos na era da eletrônica marca indelével da sociedade
contemporânea , é possível ver também ali mais uma vez representada a contradição própria do mundo moderno:
a esclerose do saber frente à sofisticação tecnológica.
Em trabalho anterior (6) procuramos chamar a atenção sobre o papel e a importância dos jogos,
dos brinquedos e das brincadeiras no processo de socialização infantil. Analisando trinta relatos sobre
a experiência lúdica de pessoas que viveram a infância entre 1930 e 1980, pudemos perceber uma
certa diluição, ao longo do período, das brincadeiras livres, em função especialmente do
desaparecimento de espaços adequados à sua prática (tais como quintais e terrenos baldios), bem como a substituição
de determinados brinquedos que antes eram criados e confeccionados pelas próprias crianças
por brinquedos industrializados que representam, não raro, uma réplica perfeita, miniaturada, de
objetos do mundo adulto (7).
A cada subespaço tratado rural, urbano, quintal, rua corresponde um tempo diferente. No
espaço rural passado mais remoto detectamos uma relação determinante de vizinhança e
consangüinidade. Esse espaço era, pois, um lugar de iguais. Quanto à cidade, pelo menos até a década de l960,
aproximadamente, é também possível, nessa pesquisa, concebê-la como um espaço mais ou menos
homogêneo, onde o quintal e a rua eram quase que uma extensão da casa. As transformações urbanas,
entretanto, diferenciaram cada vez mais esses subespaços, assinalando fortemente os limites entre o
público e o privado quando, então, a discussão sobre o ordinário da vida passa por outros determinantes
relações impessoais e espaços diferenciados, por exemplo.
Assim, até aproximadamente a década de 1960, a conceitualização de tempo e espaço
estava determinada mais pelo aspecto qualitativo das relações sociais e de produção em uma espécie
de aliança entre homem e natureza, aliança essa marcada, legitimada pelo trabalho agrícola. Nesse
período, o ritmo da vida é mais lento, a privacidade é pouca e o brincar não é uma atividade para
acontecer somente nas horas de folga.
As crianças que tinham tarefas a seu encargo, misturadas aos adultos, aprendiam um pouco
mais sobre o mundo que as rodeava: cuidar da horta e da criação, observar como era feita a lingüiça, o
sabão, como arrear o cavalo... tudo isso, na verdade, sugere muito mais deleite do que trabalho. Também
a aproximação entre adultos e crianças no processo de trabalho indica, entre outras coisas, que a
socialização acontece sempre através de uma dinâmica tensa, de um processo de reciprocidade em
que socializante e socializado trocam continuamente de papéis, influenciando-se uns aos outros.
Com a urbanização, porém, "no mundo espacializado pelo trabalho, a intenção do trabalhador,
sua vida moral enquanto pessoa, sua afetividade importam pouco; para a sociedade ele só conta
enquanto engrenagem destinada a realizar um gesto particular" (Matos, s/d).
A crescente produtividade nas cidades mina, pouco a pouco, aquela estrutura mais homogênea. O espaço passa a ser um
espaço de desigualdades, de independência, provocando um processo de "desenraizamento"
(Bosi, 1987) em que a tradição cultural, incluíndo aí o brincar, transforma-se cada vez mais em
atividade-consumo (pelo tipo e quantidade de brinquedos). Com a industrialização, o
brinquedo escapa "do controle da família, tornando-se cada vez mais estranho não só às crianças,
como também aos pais" (Benjamin, 1985, p. 246).
Podemos, então, perceber que não é só através da divisão do processo de trabalho que se
rompe a integração do homem com a natureza e com suas raízes. A reformulação do espaço social
em função também da tecnologia e seguindo, pois, os mesmos mecanismos do processo produtivo
se encarrega de apagar os vestígios, os signos que encontrariam eco em nossa memória.
Portanto, o "desenraizamento" do sujeito nada mais é do que a destruição de todas as marcas, dos
símbolos materiais ou rituais que constituem, com ele, o passado.
Através das brincadeiras tradicionais, as crianças aprendiam, quando misturadas às
tintas, areia, ossos, palhas, madeira, etc., que a todo processo de construção está ligada a idéia
de desconstrução, de transformação, de mudança destrutiva (8).
Já com os jogos eletrônicos as crianças parecem alienar-se em sua atividade lúdica e
passam a empregar cada vez menos os seus sentidos (9) exceto particularmente a visão: observam
efeitos mirabolantes na tela, sem perceber que tais efeitos são o resultado de combinações
numéricas matematicamente organizadas por um adulto (o programador). A interação da criança com o
meio é mínima. E, logo após descobrir a seqüência lógica daquelas combinações, nada mais a
surpreende, nem mesmo perceber que todos os seus conhecimentos estão reduzidos a um gesto:
apertar o botão certo no espaço de tempo previamente programado (10).
Paradoxalmente, junto à infinidade de objetos e estímulos produzidos para consumo, da
crescente liberdade de comunicação, verifica-se a diminuição das experiências cambiáveis e de
conteúdos comunicáveis (11). A fruição dos objetos é cada vez mais alienada e esta alienação, por
seu lado, vicia cada vez mais as faculdades humanas.
Frente a esse impasse, coloca-se a hipótese de que a tendência dos jogos eletrônicos é
atuar, particularmente entre as crianças, como legitimador da lógica burguesa, na medida em que através
deles consegue-se "educar" as pessoas, acostumando-as a interagir com a ordem, além de
buscar uma melhor qualificação para o capital. Ou seja, o sistema de representação e de valores
sociais atinge cada vez mais e o mais cedo possível o maior número de pessoas, podendo até
torná-las aptas a decifrá-lo, mas quase nunca a questioná-lo.
Se houve um momento em que o apelo ao mercado consumidor da cultura de massa
dirigia-se a uma faixa etária que variava mais ou menos dos 14 aos 60 anos, atualmente esse limite
ampliou-se (12). Alcança a criança acelerando sua autonomia (13) em detrimento da infância, ao
mesmo tempo em que infantiliza o adulto que passa a disputar com a criança a posse do videogame
ou particularmente do computador que, desse modo, ora é instrumento de trabalho, ora é objeto
de entretenimento.
Nesse sentido o computador, por um lado, aprofunda o recolhimento trazido pela televisão
e, por outro, prenuncia aquilo que acontece de forma mais ampla na sociedade: o
desaparecimento da divisão por faixa etária.
Essa ampla "geração eletrônica" tem, pois, que aprender a decifrar os códigos e sinais que lhe
são apresentados pela "comunidade global", ao mesmo tempo em que é freqüentemente submetida
a "testes de inteligência" para medir-lhe a rapidez de raciocínio. Esses testes de múltipla
escolha servem para "medir" o conhecimento e a capacidade que o indivíduo tem de dar respostas
imediatas, cronometradas, em que a elaboração do pensamento, a meditação, a ponderação, dão lugar,
mais comumente, à indução. Exige-se, pois, nem tanto maturidade existencial, mas rapidez mental (14).
As novas tecnologias e as conseqüentes transformações socioestruturais, emocionais, de
linguagem e de comportamento que elas impõem já às crianças e aos jovens parecem, pois,
deslocar o conhecimento empírico em direção a um conhecimento mais abstrato e harmonioso, dando
uma idéia de sociedade que pode ser ordenada por ajustes técnicos e pela manipulação de botões:
basta encontrar a combinação adequada e tudo se ajusta na medida exata.
Atualmente, paralelo às possibilidades de desenvolvimento das habilidades motoras
e intelectivas, esses jogos ajudam o indivíduo a interagir mais rapidamente com o
establishment cultural e social. Basta lembrarmos que o conteúdo dos jogos eletrônicos é tecnicamente
controlado e que as "respostas", as "saídas", devem ser buscadas por meio do processo de indução,
ou seja, pela tentativa de erro e acerto, experimentando apenas
as possibilidades que o jogo oferece. Parece, pois, tratar-se de uma versão nova, e mais eficaz no que diz respeito à razão utilitária,
do modelo de jogo idealizado por Platão (15). Trata-se, na verdade, de um jogo que lembra a
todo momento a ineficácia de se buscar saídas alternativas para além do "possível", pois no seu
âmago triunfa a regularidade, a identidade, a norma.
Não obstante, a superação dessa
racionalidade adequada ao capital deve ainda ser buscada
na cultura mas de sentido completamente diferente da cultura de massa e na estética
enquanto projeto cultural que desmascara a superficialidade da espetacular cultura pós-moderna, e
entabula a relação dos homens com o futuro.
NOTAS
(1) Referimo-nos à pesquisa que desenvolvemos como tese de doutoramento na USP.
(2) "O homem de hoje não cultiva o que não pode ser abreviado" (Valéry, apud Benjamin, 1985,
p. 206).
(3) Ver Antunes (1995), particularmente "Trabalho e Estra-nhamento", pp. 121-34.
(4) Como afirmam os apologistas da técnica Bill Gates em particular , todo processo
tecnológico e informacional objetiva simplificar e humanizar a relação homem/máquina. A respeito da estrada
do futuro, B. G. promete: "Ela vai permitir capacidades que parecem mágicas quando descritas, mas
que representam a tecnologia em
ação, para fazer nossas vidas mais fáceis e melhores. [...] A estrada da
informação vai dar a sensação de que todas as máquinas intermediárias entre você e o objeto de
seu interesse foram removidas. Você indica o que quer e pronto! Na hora!" (Gates, 1995, pp. 90-1,
grifos nossos). Sobre a "tendência humana" a antropomorfizar as coisas ele tranqüiliza: "Algumas
pessoas, ao ouvir falar de software e interface social, acham horripilante a idéia de um computador
humanizado. Mas acredito que mesmo essas pessoas vão acabar gostando dele, quando experimentarem. [...]
Em programas como o Bob, da Microsoft, eles [pesquisadores] demonstraram que as pessoas tratarão
os agentes mecânicos que têm personalidade com um grau surpreendente de consideração" (idem,
pp. 113-4).
(5) Joffre Dumazedier, em entrevista publicada na
revista Sciences Humaines,
no 44, novembro de 1994, pp. 36-9. Ver, do mesmo autor,
A Revolução Social do Tempo
Livre. Sobre o mesmo assunto, ver, ainda, Gorz (1982), Offe (1989) e particularmente Antunes (1995).
(6) Trata-se de nossa dissertação de mestrado "O Lúdico no Interior Paulista: Processos de
Mutação e seus Significados", defendida na Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, campus de
Araraquara, em 1992.
(7) A semelhança dos brinquedos com os objetos do mundo adulto chega a tal ponto que muitas
pessoas já foram assaltadas sob a mira de um revólver de brinquedo!
(8) "Não uma destruição qualquer, da negação do todo, indistintamente, mas uma destruição
consciente, planejada, pensada, na qual se escolhe o que se pretende preservar, a que se pretende chegar
e, por conseqüência, o que se pretende acabar.
Não há construção nova sem esse tipo de
destruição: rompe-se a pedra e constrói-se o dique; tira-se o barro, faz-se o tijolo; corta-se a lã e o tecido,
monta-se a roupa; tritura-se o trigo, faz-se o pão" (Lima, 1989, pp. 80-1).
(9) Em nossa época, paralelo à esclerose de determinados saberes, assiste-se ao ocaso daquilo que
é "obra da inteira história universal: a educação dos cinco sentidos". K. Marx,
Manuscritos
Econômico-Filosóficos.
(10) Talvez seja oportuno retomar aqui o alerta de A. Smith ao analisar os efeitos da
industrialização e da conseqüente mecanização no século XVIII: "A uniformidade de sua vida estacionária
corrompe naturalmente também a coragem de sua mente. [...] Ela destrói mesmo a energia de seu corpo e
o incapacita a empregar suas forças com vigor e perseverança, a não ser na operação parcial para a
qual foi adestrado. Sua habilidade em seu ofício particular parece assim ter sido adquirida à custa de
suas virtudes intelectuais, sociais e guerreiras" (A. Smith, apud Marx "Divisão do Trabalho e
Manufatura", p. 284).
(11) Nossa pesquisa de mestrado também aponta, no que diz respeito aos jogos eletrônicos, que
estes parecem marcar, de forma inequívoca, o fim de um tempo em que se podia detectar, em cidades
grandes e médias, uma cultura regional, um estilo de vida local, especialmente no que tange à troca de
experiências, aos gestos significativos, ao contato dos corpos nos momentos épicos da infância: "as
experiências estão deixando de ser comunicáveis" e "o valor de certas afinidades singulares entre a
alma, o olho e a mão" não mais transparece nas relações. O saber contido na tradição se desvanece: não
há o que ser cambiado, ensinado (Benjamin, p. 1985). O sistema de informação
(computadorizado, tecnificado), eixo central no processo de
"mun-dialização da
cultura", parece, pois, exacerbar o que
já previra o pensador: estamos cada vez "mais pobres em histórias surpreendentes" pois "tudo está
a serviço da informação" e em "evitar explicações". Ilustrativo, nesse sentido, é o filme
Denise Está Chamando.
(12) Em função do aumento da expectativa de vida dá-se mais atenção hoje à chamada
3a idade, principalmente sob o ponto de vista do consumo. Todavia, não é nossa intenção abordar essa faixa etária.
(13) Para a criança, manipular objetos que fazem parte do "mundo adulto" é algo muito
significativo. Primeiro porque ela está sempre aberta para experimentar algo novo, diferente; a criança tem
pressa de se tornar adulto para poder fazer coisas que são vetadas ao "seu" mundo. Segundo: por ter um
senso de desafio que supera o medo, a criança aprende, não raro, com muito mais rapidez e eficiência do
que alguns adultos, a mexer em instrumentos eletrônicos, particularmente em computadores. Isso
significa, sem dúvida, alcançar
status e uma certa autonomia no seu mundo ainda infantil.
(14) Vale a pena recorrer novamente a A. Smith: "A inteligência da maior parte dos homens, diz
A. Smith, desenvolve-se necessariamente a partir e por meio de suas ocupações diárias. Um homem
que despende toda a sua vida na execução de algumas operações simples [...] não tem nenhuma
oportunidade de exercitar sua inteligência. [...] Ele torna-se geralmente tão estúpido e ignorante quanto
é possível a uma criatura humana" (apud Marx, idem, ibidem).
(15) Platão só admitia liberdade plena das regras dos jogos para as crianças de até seis anos. A
partir dessa idade as regras deveriam permanecer fixas e inalteradas, pois caso se habituassem às
mudanças nas leis do jogo, os jovens desejariam experimentar mudanças também nas leis da cidade, o
que, segundo ele, seria muito perigoso para a democracia ("Les Lois", VII).
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FÁTIMA CABRAL é professora do Departamento de Sociologia e Antropologia da Unesp
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