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Os fantasmas de Heiner Müller
Ingrid Koudela
"Eu era Hamlet. Estava à beira-mar e falava, com a ressaca, na língua do blablablá. Atrás
de mim, as ruínas da Europa" (Heiner Müller).
"Um fantasma abandona a Europa" (1), escreve Heiner Müller no decorrer dos eventos que
marcaram a queda do muro de Berlim. O fantasma deixou atrás de si um escritor inútil? Hoje, que o
fantasma já pode ser nomeado abertamente, há ainda necessidade de usar máscaras para dialogar com os
mortos? É de se temer que, abandonando a Europa, o fantasma confira um valor premonitório ao "homem
no elevador" (2), na busca desesperada de sua missão? Estamos lidando com uma obra envelhecida
prematuramente pelo tempo, subitamente "fora dos eixos" (3)?
O passado, individual e coletivo, precisa mais do que nunca ser invocado, e muitos fantasmas,
mais antigos e mais recentes, hão de fazer a sua aparição. "É preciso aceitar a presença dos mortos
como parceiros de diálogo ou como destruidores somente o diálogo com os mortos engendra o futuro" (4).
"A partir de hoje e por muito tempo não haverá mais neste mundo vencedores mas apenas
vencidos", diz o Egoísta Fatzer (5). Brecht faz o comentário do fragmento: "[...] como antigamente
fantasmas vinham do passado assim também agora do futuro" (6). E Müller declara, em 1990: "[...] os
fantasmas não ameaçam apenas surgir do passado mas como motoristas loucos na via expressa do futuro"
(7). Brecht, adulado e rejeitado, caído no esquecimento?
Nascido em 1929, Heiner Müller iniciou sua carreira literária quando o socialismo estava em
construção, na antiga RDA. A obra de Müller, que está em confronto permanente com a teoria e prática
de Brecht, permite lançar um olhar novo sobre um autor que também virou um fantasma que assola o
teatro. Durante uma espécie de "exílio interior", Müller se deteve na obra do "escrevinhador de peças",
depois do qual "[...] muitas coisas não são mais possíveis ou só são possíveis diferentemente" (8). Após
uma tentativa de levar adiante o fragmento
"Viagens do Deus da Felicidade", Heiner Müller dirá mais
tarde que esta empreitada significou para ele uma iluminação sobre a "mudança de função da literatura
num período de transição" (9).
Müller tem uma experiência igualmente fecunda para a sua criação através do confronto com
o Lehrstück (Peça
Didática), em especial com o fragmento "Decadência do Egoísta Johann Fatzer",
um trabalho inacabado do jovem Brecht, que assume atualidade de singular valor na pós-modernidade .
Em O Teatro de Heiner
Müller, Ruth Röhl considera a pós-modernidade como uma continuação
da modernidade, enquanto macroperíodo. Lembrando Lyotard, para quem o prefixo "pós" conota
necessariamente a idéia de começo, devido à ruptura com a produção estético-cultural precedente, a
autora demonstra como mesmo o projeto cultural da modernidade não se mostra uniforme. Assim, a "crise
das representações", na pós-modernidade, parece trazer à tona a consciência da ruptura com a tradição,
que sempre marcou a modernidade.
O macroperíodo da modernidade está centrado em duas categorias, recorrentes na
representação moderna a intertextualidade e a desconstrução. Ruth Röhl descarta a possibilidade de uma
inovação radical em termos de categorias estéticas, na medida em que na pós-modernidade o acento recai na
forma de reconstrução e refuncionalização de material já existente.
Esse ethos da representação
pós-moderna permite investigar como a nova sensibilidade se comporta em relação à autoridade pretérita, não só em
termos de produção estético-poética, como também do ideário cultural.
"Eu comecei ali onde Brecht parou" (10). Nos diálogos com o filósofo Wolfgang Heise, Müller revela
sua adesão fundamental, como se a prática prolongada de acordo com a máxima "usar Brecht sem
criticá-lo é traição" (11) lhe tivesse permitido penetrar nos reais fundamentos dessa obra.
Ou como se a espiral de sua criação o tivesse conduzido ao coração da estética do teatro épico.
O estudo da obra de Heiner Müller permite constatar que ali onde ele parece o mais distante
está na realidade mais próximo de Brecht. A cadeia de
experimentos O Horácio e Mauser
é testemunho de sua preocupação com a teoria e a prática da tipologia dramatúrgica do
Lehrstück, criada por Brecht, que a diferencia do
Episches Schaustück, a Peça Épica de
Espetáculo. Durante a fase de
experimentação dos Versuche (12), Brecht não concebeu suas peças como obras isoladas, mas desde o seu
ponto de partida, como elos de uma cadeia. Cada
Versuch (experimento) vale por si mesmo, mas a ele se
opõe um Gegenstück (contrapeça), uma negação, que poderá ser superada através de uma terceira peça.
Na cadeia de experimentos com a Peça
Didática, escrita antes da emigração, esse procedimento
dialético pode ser claramente identificado. Ao mesmo tempo, cada tentativa isolada também é modificada
e melhorada em si mesma, de forma que, dentro da grande cadeia, formam-se cadeias menores.
Se entendermos os textos das Peças
Didáticas como dispositivos para experimentos, então eles devem
ser suscetíveis de modificações, quando novas questões ou pontos de vista são gerados.
Heiner Müller realiza, através de um conteúdo totalmente novo, de forma exemplar, o modelo
do Lehrstück. O gênero dramático inaugurado por Brecht traz assim uma nova contribuição, não
apenas na área da teoria do drama e da nova práxis teatral, através da qual representa também uma
alternativa séria para a pedagogia, como também inaugura uma nova tipologia de dramaturgia que se
diferencia da dramaturgia tradicional. Em uma sociedade na qual o próprio teatro se tornou uma indústria e
a literatura, sua matéria-prima, permanece a proposta da
Peça Didática como um modelo de
educação político-estético e experimentação teatral que procura gerar novos meios de produção "entre a
espada e a palavra". Para transformar a sociedade pelos meios do teatro, é indispensável modificar as
estruturas do teatro, que são um reflexo das estruturas da sociedade. Heiner Müller resume sua
concepção do teatro ao falar do fragmento
Fatzer que ele considera como uma utopia política. "Brecht
expressou isso certa vez assim: o teatro épico só existirá quando cessar a perversidade de transformar um
luxo em profissão. Trata-se naturalmente de uma utopia política e 'Fatzer' é um teatro da utopia" (13).
A obra de Heiner Müller mostra um autor cujo traço é marcado pela reescritura de literatura.
O "diálogo com os mortos" se faz como numa via de mão dupla, na medida em que, participando
na história da recepção de literatura, o texto convive também com a posteridade. Para Ruth Röhl,
a intertextualidade, ainda que presente como procedimento sistemático e intencional em grande
parte dos autores contemporâneos, projeta-se na escrita de Müller através da visão crítica da realidade.
Nesse sentido, tanto Hamletmaschine como
Macbeth são "reescrituras materialistas" a construção
de significação através dos intertextos provoca o ato crítico, que instaura o processo de transformação
de consciência histórica. A intenção desse olhar, voltado para a história, tem contudo em mira o
futuro, embora o autor não ofereça soluções
Notas
(1) Heiner Müller, Ein Gespenst verlässt
Europa, Photographien von Sibylle Bergemann,
Kiepenhauer & Witsch, 1990.
(2) Idem, "A Missão. Lembrança de uma Revolução", in Fernando Peixoto (org.),
Teatro de Heiner Müller, São Paulo, Hucitec/Associação Cultural Bertolt Brecht, 1987.
(3) Idem, ibidem.
(4) TransAtlantik, 1990-94, p. 15.
(5) Bertolt Brecht, "Decadência do Egoísta Johann Fatzer", in
Teatro Completo de Bertolt Brecht, vol.
12, tradução de Ingrid Koudela, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996.
(6) Idem, ibidem
(7) Sinn und Form, 1991-92, p. 415.
(8) Heiner Müller, Gesammelte Irrtümer. Interviews und
Gespräche, Frankfurt, Verlag der Autoren, 1986.
(9) Idem, ibidem.
(10) Wolfgang Heise, in Wolfgang Storch
(ed.), Explosion of a Memory Heiner Müller DDR.
Ein Arbeitsbuch, Berlim, Edition Hentrich, 1988.
(11) Idem, ibidem.
(12) Bertolt Brecht,
Versuche, Berlim, 1930.
(13) Heiner Müller, Gesammelte Irrtümer. Interviews und Gespräche,
op. cit.
Ingrid Koudela é professora da ECA-USP e autora, entre outros, de
Texto e Jogo: uma Didática Brechtiana
(Perspectiva/Fapesp).
O Teatro de Heiner Müller: Modernidade e
Pós-Modernidade, de Ruth Cerqueira de Oliveira Röhl,
São Paulo, Perspectiva, 1997.
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