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Redes técnicas/redes sociais:a pré-história da Internet no Brasil
Tamara Benakouche
O sucesso da rede eletrônica Internet aparece cada vez mais como um fato incontestável:
com efeito, além das suas já confirmadas possibilidades no campo da comunicação,
ampliam-se os usos dos serviços educativos,
comerciais e de lazer, dentre outros que oferece. O sucesso é tanto que não tem
sido possível determinar, com precisão, o número de seus usuários, tanto no Brasil, como no mundo.
No país, dependendo de quem fala, as estimativas variam de 450 mil a 1 milhão. Esta incerteza,
porém, não parece ser um problema; acredita-se que a constituição da clientela da rede também
chamada "comunidade virtual" está apenas começando e que, portanto, estes números só tendem a crescer
num ritmo cada vez mais rápido.
A rapidez tem sido justamente o traço mais evocado para caracterizar a expansão da Internet e,
por extensão, das transformações que seu uso vem causando nas práticas sociais contemporâneas. Esta,
no entanto, é uma visão que não resiste a uma análise mais cuidadosa da questão, e isso é o que se
pretende discutir aqui. Com base na reconstituição das ações que precederam a implantação da Internet
no Brasil, o artigo tem por objetivo demonstrar que, como em toda inovação tecnológica, sua
expansão/apropriação é o resultado de um processo mais longo do que transparece para o grande público.
Com efeito, o processo de expansão/apropriação de uma inovação envolve sempre uma
grande complexidade. Seu dinamismo não se deve a nenhuma pretensa "característica intrínseca" da
inovação em si, mas da combinação de variáveis econômicas, políticas, sociais e culturais além das
técnicas agindo no sentido de estabelecer compromissos constantemente renovados, na busca pela
realização dos variados interesses dos atores envolvidos nos acontecimentos. Recorrendo a uma expressão
bastante usada por Lévy (1993), entender esse processo supõe, sobretudo, apreender os
agenciamentos sociotécnicos que o atravessam.
A expansão do uso da Internet no Brasil só está sendo possível, inicialmente, graças à
implementação de uma série de medidas comandadas pelo poder público no setor das telecomunicações. Essas
medidas, contrariamente ao que se pode pensar, não são todas recentes; algumas delas datam, na
verdade, de pelo menos vinte anos. A intervenção estatal no setor, nessa época, além de visar superar o
enorme atraso em que se encontravam os serviços de telecomunicações nacionais em especial os serviços
de telefonia buscava atender ainda a duas grandes finalidades, cujos conteúdos contribuem para
explicar o caráter precoce de muitas das medidas então propostas. De um lado, estavam as finalidades de
ordem estratégico-militar; com efeito, num período em que as ações do governo se inspiravam na
ideologia da segurança nacional, na qual as considerações de ordem geopolíticas eram centrais, a
necessidade de implantar no país as então emergentes redes de transmissão de dados não passou despercebida.
De outro lado, estavam as motivações de ordem econômica, partilhadas sobretudo pela ala
nacionalista do governo, que sonhava com um "Brasil, Grande Potência"; seus representantes viam nas
inovações tecnológicas incorporadas àquelas redes oportunidades para o desenvolvimento da então
inexpressiva indústria local de telecomunicações e para a criação de uma estrutura nacional de Pesquisa e
Desenvolvimento (P&D) (1).
Os Primeiros Passos
Já em 1975, com a intensificação do uso de equipamentos de informática no país, o Ministério
das Comunicações (Minicom) começou a se ocupar com a questão da transmissão eletrônica de
dados, também chamada na época de teleinformática ou telemática.
Essas novas denominações procuravam dar conta da convergência que estava ocorrendo,
nos países centrais, desde o início nos anos 60, entre as tecnologias de telecomunicação e a
informática. Com efeito, em face da necessidade de rentabilizar os custos então muito elevados dos
computadores, constatou-se a viabilidade de se ampliar o número de usuários de uma unidade central,
através da disseminação de terminais ligados a uma mesma unidade. Isso era possível graças à
utilização das redes de telefonia ou de telex, que passaram, assim, a também transmitir dados. A demanda por
esse tipo de serviço aumentou consideravelmente nos anos 70, devido, sobretudo, à emergência
e à difusão da microinformática. Diante das limitações das redes clássicas (telefonia,
principalmente) em garantir um serviço de qualidade, os órgãos responsáveis pela administração do setor de
telecomunicações, em vários países, viram-se obrigados a providenciar a instalação de novas
redes destinadas exclusivamente à transmissão de dados. No início, foram providenciadas ligações
chamadas especializadas para atender aos grandes usuários, mas, em seguida, foram
implantadas redes públicas, acessíveis a qualquer assinante do novo serviço.
No Brasil, desde 1970, a teleinformática era objeto de discussão e de estudos, mas somente em
abril da 1975, pelo decreto 301, a Empresa Brasileira de Telecomunicações (Embratel) recebeu a
incumbência de instalar e explorar uma rede nacional de transmissão de dados (2). Esse decreto, porém,
era bastante vago em vários aspectos, e não explicitava, por exemplo, o papel das empresas do
sistema Telebrás na operação do serviço, ou os meios que deveriam ser colocados à disposição da Embratel
para que pudesse cumprir suas novas tarefas. Em janeiro de 1979, o Ministério decidiu
explicitar melhor suas intenções a respeito da questão, recorrendo novamente à edição de um decreto
que reafirmou a concessão do serviço à Embratel e regulamentou seu funcio-namento (Hering, 1979).
Nessa época, a então toda-poderosa Secretaria Especial de Informática (SEI), considerando
a importância da informática na implantação da nova rede, resolveu intervir também na
questão. Assim, em julho de 1980, através da portaria 006, criou a Comissão Especial
no14/Teleinformática. Seu objetivo era o de examinar a situação da teleinformática nacional e orientar a SEI e o
Minicom no estabelecimento das grandes linhas de uma política global para o desenvolvimento do
serviço. Essa política deveria estar integrada no quadro mais geral da política nacional de informática.
Os trabalhos dessa comissão constituída por 13 membros, dos quais apenas dois pertenciam
ao Minicom desenvolveram-se entre julho e setembro de 1980 e foram concluídos com a redação
de um relatório publicado pela SEI em 1981. Esse relatório fazia uma síntese da situação da
teleinformática no país, insistindo particularmente no estado da oferta de serviços. Esse balanço revelou uma
situação decepcionante: constatava-se que o país encontrava-se ainda numa etapa muito inicial do
desenvolvimento da teleinformática, etapa talvez comparável àquela do final dos anos 60 nos países
desenvolvidos (Maciel, 1983). O relatório avançava também algumas hipóteses de caráter prospectivo a
partir de informações sobre a situação de outros países, mas sobretudo e esta foi a sua contribuição
mais importante fazia uma série de recomendações com vistas ao desenvolvimento do setor. Essas
recomendações, sempre precedidas por uma exposição de motivos, foram reunidas em 34 grupos e
diziam respeito seja à ação do governo, seja à ação dos fabricantes de equipamentos, dos fornecedores
de serviços e dos usuários.
Em conformidade com a orientação geral da SEI, essas recomendações foram marcadas
sobretudo pela preocupação de assegurar o controle permanente do Estado sobre o setor e de apoiar a
indústria nacional de microeletrônica. Com relação ao mercado, considerava-se especialmente a existência
de uma demanda potencial representada pelos grandes usuários, e foi justamente para atender às
necessidades dessa clientela que se dirigiram as primeiras ações governamentais no domínio da teleinformática.
As Primeiras Redes Técnicas: Transdata e Renpac
Antes da intervenção estatal no setor, as instituições que já precisavam utilizar-se da
teleinformática seja em função da natureza das suas atividades, seja em função de sua ligações com o exterior
eram obrigadas a recorrer a soluções próprias, usando as redes telefônica e de telex. Era o caso, por
exemplo, dos bancos, das companhias de aviação, de muitas empresas multinacionais e de alguns órgãos
do governo federal (3). Por outro lado, a possibilidade de comercializar informações era quase
impensável e, nesse sentido, serviços com essa finalidade eram praticamente inexistentes. Os poucos bancos
de dados que se haviam constituído pertenciam a instituições governamentais (IBGE, Prodasen,
Prodesp, etc.) e só podiam ser acessados por um público interno.
Com o objetivo de corrigir essas insuficiências, o governo brasileiro colocou inicialmente à
disposição dos grandes demandantes de serviços de transmissão de dados a rede Transdata.
Criada oficialmente pelo decreto 104 de maio de 1980, essa rede era constituída por circuitos privados do tipo
ponto-a-ponto (não comutados, portanto), alugados pela Embratel a preços fixos, calculados com
base na distância que separava os correspondentes e na velocidade da transmissão (medida em bites
por segundo/bts).
No final de 1985, havia 33 centros de transmissão em funcionamento e 9.854 circuitos
estavam alugados; em 1987, esse número já se elevava a 16.169, o que representava um crescimento de
65,3% no período. De fato, a Embratel recebia em média, na época, 300 pedidos mensais de aluguel de
novos circuitos. Uma parte desse sucesso devia-se certamente ao índice de confiabilidade do serviço,
situado em torno de 98% (Embratel, 1987).
No que diz respeito às comunicações com o exterior, a Embratel passou a oferecer os serviços
das redes Interdata e Findata (esta em acordo com a agência Reuters), de caráter público, e das redes
Airdata (usada pelas companhias de aviação) e Interbank (associada à rede Swift), de caráter
privado.
Paralelamente a essas medidas, os órgãos gestores da política nacional de telecomunicação e
de informática também voltaram a sua atenção para o mercado constituído pelo chamado "grande
público". Visando atendê-lo é que foi implantada, ainda em 1985, a primeira rede pública de
transmissão de dados brasileira, chamada rede Renpac.
Na verdade, a Embratel dava-se conta do aumento do número de microcomputadores
comercializados no país (além dos que entravam irregularmente), bem como da subutilização dos bancos de
dados organizados por instituições governamentais e privadas, e apostava na possibilidade de
interligá-los, tal como já se começava a fazer nos países centrais.
Os microcomputadores instalados em empresas, mesmo as médias e pequenas, tinham usos
bem definidos: destinavam-se sobretudo a facilitar as tarefas de rotina ligadas à gestão do pessoal,
ao controle dos estoque, à listagem de clientes, dentre outras. Já os microcomputadores instalados
nas residências ainda não tinham finalidades muito claras. Os responsáveis por sua comercialização,
tendo em vista a carência de
softwares voltados para essa clientela, referiam-se de modo um tanto vago
às suas possibilidades educativas e lúdicas, às suas facilidades no controle do orçamento familiar,
no armazenamento de informações importantes para a família, etc. Em ambas as situações, o
tratamento de dados fazia-se localmente e a demanda por acesso a informações era quase nula. Com a
implantação da rede Renpac, a Embratel vai procurar criar essa demanda.
Utilizando uma tecnologia de ponta desenvolvida na França a chamada comutação "por
pacotes" a rede Renpac dispunha, em 1985, quando de sua entrada em operação comercial, de 13 centros
de comutação e 13 centros de concentração bem distribuídos pelo território nacional. A preocupação
dos militares com questões de ordem geopolítica garantia uma estratégia no sentido de se buscar
um equilíbrio regional na implantação dos equipamentos (Benakouche, 1995).
Havia dois tipos de acesso à rede: o acesso dedicado e o acesso comutado. O primeiro dava-se
por meio de circuitos urbanos e interurbanos de utilização exclusiva; o segundo fazia-se através das
redes públicas de telefonia e de telex. Em ambos os casos, o usuário deveria providenciar, além do
seu equipamento (microcomputador, modem,
software de acesso, etc.), sua assinatura junto à
Embratel. O assinante dispunha de uma gama variada de alternativas em termos de velocidade de
transmissão, que ele deveria escolher em função das suas necessidades e das características de seu
equipamento informático.
Apesar de sua destinação para o "grande público", no final de 1987 a rede Renpac contava
com somente 110 assinantes... (Embratel, 1987). Apenas a disponibilização da rede-suporte, ou seja,
da rede técnica, não havia sido capaz de atrair clientes. Era preciso criar também uma rede-serviço
capaz de proporcionar à Renpac um uso efetivo.
Ciranda, Cirandão: as primeiras redes de serviços
De certo modo, os dirigentes da Embratel já esperavam por dificuldades com relação à difusão
do uso doméstico da sua rede pública de transmissão de dados, isto é, a Renpac. Assim, paralelamente
a sua implantação, resolveram criar um serviço de oferta de informações, que contribuiria para
viabilizar a mesma rede. O projeto recebeu o nome Cirandão; havia nessa escolha uma clara intenção de
passar uma idéia de jogo compartilhado, de união.
Na verdade, o Cirandão era a ampliação de um projeto anterior desenvolvido também pela
Embratel, junto a seus funcionários, chamado projeto Ciranda. Esse projeto havia sido implantado em 1982,
com o objetivo de capacitar o corpo técnico da empresa no uso de computadores, na medida em que
a introdução de técnicas digitais nas redes de telecomunicações exigia do profissional da área
novas competências. Assim, a Embratel facilitou a compra e a instalação de microcomputadores e
modems para os funcionários interessados em participar da experiência e criou um banco de dados, de
acesso gratuito, com uma gama variada de informações voltadas para os interesses da clientela-alvo: lista
de benefícios fornecidos pela empresa, convênios, agenda de aniversários, jogos, guias de
compras, catálogos, etc., e ainda um correio eletrônico. Aqueles sem condições de comprar um
microcomputador podiam utilizar, inclusive em fins de semana, unidades instaladas nas sedes regionais da empresa.
O projeto foi bem aceito, pois a ele aderiram cerca de 2.100 funcionários distribuídos por 104
cidades. Na verdade, esse grupo constituiu-se na primeira comunidade teleinformatizada do país.
Diante disso, quando a Embratel come-çou a considerar alternativas para ampliar o número
de usuários da rede Renpac, a solução escolhida foi abrir o projeto Ciranda para o público em geral,
seu banco de dados (4) devendo ser enriquecido através da integração de outros fornecedores de
informações.
Assim, em 1985 foi criado o projeto Cirandão, oficialmente definido como "um serviço
de teleinformática, oferecido pela Embratel de forma complementar e integrada com os serviços
de telecomunicações" (Embratel, s/d).
Em maio 1987, o projeto Cirandão registrava 2.256 assinantes, sendo 1.439 (63,8%)
residenciais e 817 (36,2%) não-residenciais (5). Tratava-se certamente de uma clientela muito reduzida face
às expectativas da Embratel. No entanto, a situação era ainda mais decepcionante quando se
verificava o número de assinantes que haviam efetivamente utilizado o serviço durante o mesmo mês: apenas
604, ou seja, 26,7% do total.
O principal fator que explicava esse desinteresse era, sem dúvida, a reduzida oferta de
alternativas aos assinantes. As opções limitavam-se ao correio eletrônico, que era o serviço mais acessado; a
um serviço de pequenos anúncios, chamado "quadro de avisos"; a algumas listas de discussões,
chamadas "teleconferências"; e, finalmente, ao acesso a um número muito restrito de bancos de dados e a
alguns poucos jogos destinados às crianças. No geral, todas as alternativas disponíveis eram pouco
atualizadas. Diante de tal penúria, fica fácil compreender por que as taxas de utilização do Cirandão
permaneciam tão baixas.
O acesso a bancos de dados, que poderia ser um serviço dinamizador, apresentava muitos
problemas. Como a venda de informações não era uma prática corrente, a idéia inicial da Embratel de
integrar os bancos de dados já disponíveis no Brasil encontrou uma forte resistência por parte das
instituições responsáveis pelos mesmos. Diante disso, os dirigentes do projeto procuraram desenvolver uma
outra estratégia. No caso, a empresa resolveu estabelecer parcerias com algumas associações
profissionais, visando motivá-las a participar do projeto, colocando na rede informações de interesse para
seus associados. Para tanto, a Embratel propunha-se a fornecer gratuitamente todo o equipamento
necessário à constituição de um banco de dados, disponibilizar espaço no seu computador e capacitar
pessoal técnico para desenvolver as atividades previstas. Em contrapartida, as associações deveriam
atualizar constantemente suas informações, além de divulgar o serviço junto a seus associados.
As instituições que se mostraram mais receptivas, inicialmente, foram aquelas ligadas ao
meio médico. Em maio de 1986, dentre os doze bancos de dados mais consultados, seis eram de
informações médicas, no caso, os bancos da Fiocruz, da Mudes, da Nimed, da AMB-THM, da L. Renal e da
Bireme. O primeiro lugar, porém, em termos de taxas de consulta, coube ao banco da Rodobens, destinado
a revendedores de caminhões da Mercedes-Benz (tratava-se, na verdade, de uma primeira
experiência do Cirandão com um serviço de tipo fechado, ou seja, acessível somente àqueles que dispusessem
de um código privado); em segundo lugar, vinha o banco da Embratel, aquele que originalmente
pertencia ao projeto Ciranda; e, em terceiro lugar, estava o banco da Fiocruz.
Um ano depois, ou seja, em maio de 1987, muitos desses bancos desapareceram da lista dos
mais acessados, enquanto outros viram despencar suas taxas de acesso. Essa mobilidade tem várias
razões, mas provavelmente a mais importante foi mais uma vez a falta de atualização das informações. Em
contrapartida, novos colaboradores se destacaram. Assim, por exemplo, aproveitando o
momento histórico nacional, representado pela elaboração de uma nova Constituição, a Fundação
Pró-Memória propôs um serviço que podia ser consultado gratuitamente a partir de vários pontos do país,
informando o desenrolar dos trabalhos parlamentares e permitindo a manifestação das pessoas a respeito de
pontos polêmicos. A idéia foi bem aceita e logo o serviço tornou-se o mais consultado. Outro fornecedor
que logo disparou nas estatísticas foi a Bolsa de Valores do Rio de Janeiro.
Mesmo com todas essas alternativas, o número de acessos ainda continuou baixo: em maio de
1986, o Cirandão registrou apenas 1.212 acessos, número que passou para 1.542 em maio do ano
seguinte; isso representava em média, respectivamente, 39 e 50 acessos por dia. Considerando, porém, que
a Embratel partia do nada, a avaliação feita pela empresa não era totalmente negativa: verificava-se
que apesar de tudo uma clientela estava-se constituindo. Mas, quem eram esses primeiros clientes?
Uma elite como primeira
clientela
Já foi referido acima que a clientela do Cirandão se dividia em dois grandes grupos: o
residencial e o não-residencial, este último sendo mais importante. Lamentavelmente, porém, não existem
estatísticas para o período aqui em consideração (1986-87), que permitam uma caracterização
socioeconômica precisa desses usuários.
Uma das poucas indicações diz respeito a suas profissões; nesse
caso, predominavam os engenheiros: estes correspondiam a 42,4% do total de usuários, em 1986, e
a 38,7%, em 1987. Seguiam-se os médicos, os comerciantes e os analistas de sistemas (que
foram porém suplantados pelos advogados, em 1987).
A formação mais "técnica" dos engenheiros é provavelmente o fator que explica o maior
interesse desta categoria profissional pela novidade. Já o peso dos médicos deve-se, como já se assinalou
acima, à oferta significativa de informações na área da saúde.
Numa perspectiva mais geral, porém, esta composição do mercado se explica sobretudo pelo
poder de compra mais elevado dessas categorias profissionais. Considerando-se as exigências mínimas
para que se pudesse assinar o serviço, ou seja, dispor ao menos de uma linha telefônica e de
um microcomputador mais caros e dispondo de menos facilidades de pagamento do que hoje em dia
, não resta dúvida de que só os mais abonados podiam fazê-lo.
Os custos da assinatura, no entanto, não eram muito elevados, sobretudo se comparados aos
valores médios pagos atualmente aos provedores de acesso à Internet (6). A rigor, uma comparação precisa
é difícil de ser feita, mas a título de ilustração vale lembrar que uma assinatura residencial custava
em junho de 1987 a quantia de Crz$ 198,45, o que equivalia a 10,1% do salário mínimo da época.
Além dessa tarifa, havia ainda os custos pela utilização dos serviços, os quais variavam em função do
volume de informações transmitidas (medido em octetos), do tempo de conexão (medido em minutos) e ainda
do tempo de armazenamento de informações na memória do computador da Embratel (procedimento
necessário para a guarda temporária das mensagens, dos "quadros de avisos" e das "teleconferências").
Um aspecto que chama a atenção quando se procura reconstituir os fatos desse período
aspecto que parece bastante contraditório face a uma evidente determinação dos responsáveis pelo setor
de telecomunicações do país de implantar as novas tecnologias disponíveis no mercado diz respeito
à timidez, para não dizer a quase ausência, de marketing em torno do Cirandão (que hoje não existe
mais). Na verdade, há para isso uma explicação bastante precisa: limites de ordem técnica, especialmente
da rede telefônica, que conectava os usuários à Renpac. Subdimensionada para atender até mesmo
às finalidades a que se destinava ou seja, a transmissão de voz , essa rede entraria em colapso
definitivo caso passasse a ser mais intensamente utilizada para a transmissão de dados.
Considerações Finais
Assim, não foram poucos os problemas de todas as ordens que tiveram de ser resolvidos
para que, juntamente com a novela Explode
Coração, veiculada pela Rede Globo em 1995, explodisse
no Brasil o uso da Internet (7).
Apesar de todo o avanço registrado, porém, observa-se que nem todos os que possuem um
computador e uma linha telefônica estão dispostos a usar a rede, e dentre os usuários desta,
nem todos consomem todos os serviços disponíveis. Assim, por exemplo, nem todos os
contribuintes conectados optaram por fazer suas declarações de renda através do
site criado pela Receita Federal para este fim; nem todos os consumidores sentem-se à vontade de fornecer o número do seu
cartão de crédito a um serviço de televendas na rede; nem todos os correntistas usam o
home banking. Por que essas restrições, essas resistências? E por que elas não se aplicam sempre? O que está
na origem dessas disposições? Numa perspectiva mais geral, o que leva uma pessoa a ser
uma entusiasta da inovação tecnológica, a querer se apropriar das novas técnicas, usá-las,
incorporá-las no seu cotidiano? Em contraste, o que faz com que outra pessoa rejeite essas mesmas
técnicas, recuse-se a usá-las?
Deixando de lado as restrições de ordem econômica (que sem dúvida atingem a grande
maioria da população brasileira, mas não é esse o tipo de exclusão de que se trata aqui) e para além
de algumas respostas já relativamente difundidas em geral, mulheres e pessoas mais velhas
teriam mais dificuldades para se apropriar das técnicas, inclusive por razões biológicas pode-se
estabelecer aqui algumas hipóteses. É possível que a aceitação bem como a rejeição ao uso das
novas tecnologias estejam relacionadas à percepção dos riscos passíveis de serem causados pelas
mesmas. Essa percepção é variável, sendo ainda socialmente construída. No caso, a percepção do
risco e também o seu contrário, o estabelecimento da confiança, constroem-se com base numa
combinação heterogênea de sentimentos inspirados em experiências pessoais anteriores que
configuram um imaginário dado e de informações qualificadas, obtidas junto a especialistas.
No que diz respeito à Internet, o grande risco percebido, em princípio, é a invasão da
privacidade pelos chamados "piratas cibernéticos", seguida (ou não) da destruição ou alteração
de arquivos pessoais. No mais, há pessoas com medo de assumir sua real identidade, em
certas circunstâncias; há pais receosos da exposição de seus filhos a imagens violentas ou
pornográficas, sem contar o excesso de tempo dedicado ao meio em si; há quem pense na saúde,
temendo problemas causados por posturas incorretas ou movimentos repetitivos, dentre outras
restrições. Não será o caso de avaliar aqui a pertinência ou não desses riscos, mas de considerar até
que ponto a percepção dos mesmo inibem o uso da rede, atitude que certamente se choca com
os discursos entusiastas, ou mesmo temerosos, a respeito do rápido, inevitável e iminente
domínio dos ciberespaço. Na verdade, ainda restam muitos agenciamentos sociotécnicos a serem
efetivados a esse respeito.
Notas
(1) Ilustram essa afirmação medidas do Ministério das Comunicações (criado em 1967), tais como
as Portarias 661/75 e 622/78 que dentre outras questões definiam o que era indústria nacional e
estabeleciam mecanismos de transferência tecnológica mais favoráveis ao país do que os até então
existentes bem como a criação do grupo Executivo Interministerial de Componentes e Materiais
(Geicom), em 1975, e do Centro de Pesquisa (CPqD) da Telebrás, em 1976.
(2) Uma das idéias que surgiram na fase inicial de discussão do problema foi criar uma nova
empresa associada à Telebrás a Teletel que seria encarregada de explorar este novo tipo de serviço.
Essa idéia, porém, não vingou. Cf. Maculan (1981, p. 86) e Embratel (1983, p. 89).
(3) O Serpro, por exemplo, ligado à Receita Federal, montou um serviço pioneiro de consulta a
bases de dados, chamado Aruanda.
(4) Esta expressão, "banco de dados", corresponde ao que hoje se denomina
sites.
(5) Todos os dados sobre o Cirandão foram obtidos nos Relatórios Mensais do Serviço
Cirandão, produzidos pela Embratel.
(6) Estes variam em torno de R$ 30,00 para um acesso mensal de 70 a 120 horas, sendo de R$
120,00 o valor do salário mínimo nacional.
(7) Nessa novela, o par amoroso principal conheceu-se através da Internet. Foi certamente a partir
desse momento que o grande público brasileiro tomou conhecimento desta rede.
BENAKOUCHE, Tamara. "Redes de Comunicação Eletrônica e Desigualdades Regionais", in
Maria Flora Gonçalves (org.). O Novo Brasil
Urbano. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1995, pp. 227-37.
Embratel. 18 Anos. Rio de Janeiro, 1983.
. Relatório 1987. Rio de Janeiro, 1987.
. Relatórios Mensais do Serviço
Cirandão. Rio de Janeiro, 1987.
. Serviço Cirandão
Mensagem. Rio de Janeiro, s/d.
HERING, R. M. "Evolução do Serviço de Transmissão de Dados na Embratel",
in Anais do Painel Telebrasil, agosto de 1979.
LÉVY, Pierre. As Tecnologias da Inteligência. O Futuro do Pensamento na Era da
Informática. Rio de Janeiro, Ed. 34, 1993.
MACIEL, R. "Bases para uma Política Nacional em Telemática", in
Cadernos de Teleinformática,
no 11, 1983, pp. 155-75.
MACULAN, Anne-Marie. Processo Decisório no Setor de
Telecomunicações. Dissertação de
mestrado, IUPERJ, Rio de Janeiro, 1981, mimeo.
SEI. Relatório da Comissão Especial de
Teleinformática. Brasília, 1981.
TAMARA BENAKOUCHE é professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia
Política da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
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