Entrevista: Eunice
Durham
Fábrica de maus professores
Uma das maiores especialistas
em ensino superior
brasileiro, a antropóloga não tem dúvida:
os cursos
de pedagogia perpetuam o péssimo ensino nas escolas
Monica Weinberg
Edu Lopes |
"Os
cursos de pedagogia desprezam a prática da sala
de aula e supervalorizam teorias supostamente mais nobres.
Os alunos saem de lá sem saber ensinar"
|
Hoje há poucos estudiosos empenhados em produzir pesquisa de bom nível sobre a universidade brasileira. Entre eles, a antropóloga Eunice Durham, 75 anos, vinte dos quais dedicados ao tema, tem o mérito de tratar do assunto com rara objetividade. Seu trabalho representa um avanço, também, porque mostra, com clareza, como as universidades têm relação direta com a má qualidade do ensino oferecido nas escolas do país. Ela diz: "Os cursos de pedagogia são incapazes de formar bons professores". Ex-secretária de política educacional do Ministério da Educação (MEC) no governo Fernando Henrique, Eunice é do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas, da Universidade de São Paulo – onde ingressou como professora há cinqüenta anos.
Sua pesquisa
mostra que as faculdades de pedagogia estão na raiz
do mau ensino nas escolas brasileiras. Como?
As faculdades de pedagogia formam professores incapazes
de fazer o básico, entrar na sala de aula e ensinar
a matéria. Mais grave ainda, muitos desses profissionais
revelam limitações elementares: não conseguem
escrever sem cometer erros de ortografia simples nem expor
conceitos científicos de média complexidade.
Chegam aos cursos de pedagogia com deficiências pedestres
e saem de lá sem ter se livrado delas. Minha pesquisa
aponta as causas. A primeira, sem dúvida, é
a mentalidade da universidade, que supervaloriza a teoria
e menospreza a prática. Segundo essa corrente acadêmica
em vigor, o trabalho concreto em sala de aula é inferior
a reflexões supostamente mais nobres.
Essa filosofia
é assumida abertamente pelas faculdades de pedagogia?
O objetivo declarado dos cursos é ensinar os candidatos
a professor a aplicar conhecimentos filosóficos, antropológicos,
históricos e econômicos à educação.
Pretensão alheia às necessidades reais das escolas
– e absurda diante de estudantes universitários
tão pouco escolarizados.
O que, exatamente,
se ensina aos futuros professores?
Fiz uma análise detalhada das diretrizes oficiais
para os cursos de pedagogia. Ali é possível
constatar, com números, o que já se observa
na prática. Entre catorze artigos, catorze parágrafos
e 38 incisos, apenas dois itens se referem ao trabalho do
professor em sala de aula. Esse parece um assunto secundário,
menos relevante do que a ideologia atrasada que domina as
faculdades de pedagogia.
Como essa ideologia
se manifesta?
Por exemplo, na bibliografia adotada nesses cursos, circunscrita
a autores da esquerda pedagógica. Eles confundem pensamento
crítico com falar mal do governo ou do capitalismo.
Não passam de manuais com uma visão simplificada,
e por vezes preconceituosa, do mundo. O mesmo tom aparece
nos programas dos cursos, que eu ajudo a analisar no Conselho
Nacional de Educação. Perdi as contas de quantas
vezes estive diante da palavra dialética, que, não
há dúvida, a maioria das pessoas inclui sem
saber do que se trata. Em vez de aprenderem a dar aula, os
aspirantes a professor são expostos a uma coleção
de jargões. Tudo precisa ser democrático, participativo,
dialógico e, naturalmente, decidido em assembléia.
Quais os efeitos
disso na escola?
Quando chegam às escolas para ensinar, muitos
dos novatos apenas repetem esses bordões. Eles não
sabem nem como começar a executar suas tarefas mais
básicas. A situação se agrava com o fato
de os professores, de modo geral, não admitirem o óbvio:
o ensino no Brasil é ainda tão ruim, em parte,
porque eles próprios não estão preparados
para desempenhar a função.
Por que os professores
são tão pouco autocríticos?
Eles são corporativistas ao extremo. Podem até
estar cientes do baixo nível do ensino no país,
mas costumam atribuir o fiasco a fatores externos, como o
fato de o governo não lhes prover a formação
necessária e de eles ganharem pouco. É um cenário
preocupante. Os professores se eximem da culpa pelo mau ensino
– e, conseqüentemente, da responsabilidade. Nos
sindicatos, todo esse corporativismo se exacerba.
Como os sindicatos
prejudicam a sala de aula?
Está suficientemente claro que a ação
fundamental desses movimentos é garantir direitos corporativos,
e não o bom ensino. Entenda-se por isso: lutar por
greves, aumentos de salário e faltas ao trabalho sem
nenhuma espécie de punição. O absenteísmo
dos professores é, afinal, uma das pragas da escola
pública brasileira. O índice de ausências
é escandaloso. Um professor falta, em média,
um mês de trabalho por ano e, o pior, não perde
um centavo por isso. Cenário de atraso num país
em que é urgente fazer a educação avançar.
Combater o corporativismo dos professores e aprimorar os cursos
de pedagogia, portanto, são duas medidas essenciais
à melhora dos indicadores de ensino.
A senhora estende
suas críticas ao restante da universidade pública?
Há dois fenômenos distintos nas instituições
públicas. O primeiro é o dos cursos de pós-graduação
nas áreas de ciências exatas, que, embora ainda
atrás daqueles oferecidos em países desenvolvidos,
estão sendo capazes de fazer o que é esperado
deles: absorver novos conhecimentos, conseguir aplicá-los
e contribuir para sua evolução. Nessas áreas,
começa a surgir uma relação mais estreita
entre as universidades e o mercado de trabalho. Algo que,
segundo já foi suficientemente mensurado, é
necessário ao avanço de qualquer país.
A outra realidade da universidade pública a que me
refiro é a das ciências humanas. Área
que hoje, no Brasil, está prejudicada pela ideologia
e pelo excesso de críticas vazias. Nada disso contribui
para elevar o nível da pesquisa acadêmica.
Um estudo da
OCDE (organização que reúne os países
mais industrializados) mostra que o custo de um universitário
no Brasil está entre os mais altos do mundo –
e o país responde por apenas 2% das citações
nas melhores revistas científicas. Como a senhora explica
essa ineficiência?
Sem dúvida, poderíamos fazer o mesmo, ou
mais, sem consumir tanto dinheiro do governo. O problema é
que as universidades públicas brasileiras são
pessimamente administradas. Sua versão de democracia,
profundamente assembleísta, só ajuda a aumentar
a burocracia e os gastos públicos. Essa é uma
situação que piorou, sobretudo, no período
de abertura política, na década de 80, quando,
na universidade, democratização se tornou sinônimo
de formação de conselhos e multiplicação
de instâncias. Na prática, tantas são
as alçadas e as exigências burocráticas
que, parece inverossímil, um pesquisador com uma boa
quantia de dinheiro na mão passa mais tempo envolvido
com prestação de contas do que com sua investigação
científica. Para agravar a situação,
os maus profissionais não podem ser demitidos. Defino
a universidade pública como a antítese de uma
empresa bem montada.
Muita gente defende
a expansão das universidades públicas. E a senhora?
Sou contra. Nos países onde o ensino superior
funciona, apenas um grupo reduzido de instituições
concentra a maior parte da pesquisa acadêmica, e as
demais miram, basicamente, os cursos de graduação.
O Brasil, ao contrário, sempre volta à idéia
de expandir esse modelo de universidade. É um erro.
Estou convicta de que já temos faculdades públicas
em número suficiente para atender aqueles alunos que
podem de fato vir a se tornar Ph.Ds. ou profissionais altamente
qualificados. Estes são, naturalmente, uma minoria.
Isso não tem nada a ver com o fato de o Brasil ser
uma nação em desenvolvimento. É exatamente
assim nos outros países.
As faculdades
particulares são uma boa opção para os
outros estudantes?
Freqüentemente, não. Aqui vale a pena chamar
a atenção para um ponto: os cursos técnicos
de ensino superior, ainda desconhecidos da maioria dos brasileiros,
formam gente mais capacitada para o mercado de trabalho do
que uma faculdade particular de ensino ruim. Esses cursos
são mais curtos e menos pretensiosos, mas conseguem
algo que muita universidade não faz: preparar para
o mercado de trabalho. É estranho como, no meio acadêmico,
uma formação voltada para as necessidades das
empresas ainda soa como pecado. As universidades dizem, sem
nenhum constrangimento, preferir "formar cidadãos".
Cabe perguntar: o que o cidadão vai fazer da vida se
ele não puder se inserir no mercado de trabalho?
Nos Estados Unidos,
cerca de 60% dos alunos freqüentam essas escolas técnicas.
No Brasil, são apenas 9%. Por quê?
Sempre houve preconceito no Brasil em relação
a qualquer coisa que lembrasse o trabalho manual, caso desses
cursos. Vejo, no entanto, uma melhora no conceito que se tem
das escolas técnicas, o que se manifesta no aumento
da procura. O fato concreto é que elas têm conseguido
se adaptar às demandas reais da economia. Daí
95% das pessoas, em média, saírem formadas com
emprego garantido. O mercado, afinal, não precisa apenas
de pessoas pós-graduadas em letras que sejam peritas
em crítica literária ou de estatísticos
aptos a desenvolver grandes sistemas. É simples, mas
só o Brasil, vítima de certa arrogância,
parece ainda não ter entendido a lição.
Faculdades particulares
de baixa qualidade são, então, pura perda de
tempo?
Essas faculdades têm o foco nos estudantes menos
escolarizados – daí serem tão ineficientes.
O objetivo número 1 é manter o aluno pagante.
Que ninguém espere entrar numa faculdade de mau ensino
e concorrer a um bom emprego, porque o mercado brasileiro
já sabe discernir as coisas. É notório
que tais instituições formam os piores estudantes
para se prestar às ocupações mais medíocres.
Mas cabe observar que, mesmo mal formados, esses jovens levam
vantagem sobre os outros que jamais pisaram numa universidade,
ainda que tenham aprendido muito pouco em sala de aula. A
lógica é típica de países em desenvolvimento,
como o Brasil.
Por que num país
em desenvolvimento o diploma universitário, mesmo sendo
de um curso ruim, tem tanto valor?
No Brasil, ao contrário do que ocorre em nações
mais ricas, o diploma de ensino superior possui um valor independente
da qualidade. Quem tem vale mais no mercado. É a realidade
de um país onde a maioria dos jovens está ainda
fora da universidade e o diploma ganha peso pela raridade.
Numa seleção de emprego, entre dois candidatos
parecidos, uma empresa vai dar preferência, naturalmente,
ao que conseguiu chegar ao ensino superior. Mas é preciso
que se repita: eles servirão a uma classe de empregos
bem medíocres – jamais estarão na disputa
pelas melhores vagas ofertadas no mercado de trabalho.
A tendência
é que o mercado se encarregue de eliminar as faculdades
ruins?
A experiência mostra que, conforme a população
se torna mais escolarizada e o mercado de trabalho mais exigente,
as faculdades ruins passam a ser menos procuradas e uma parte
delas acaba desaparecendo do mapa. Isso já foi comprovado
num levantamento feito com base no antigo Provão. Ao
jogar luz nas instituições que haviam acumulado
notas vermelhas, o exame contribuiu decisivamente para o seu
fracasso. O fato de o MEC intervir num curso que, testado
mais de uma vez, não apresente sinais de melhora também
é uma medida sensata. O mau ensino, afinal, é
um grande desserviço.
A senhora fecharia
as faculdades de pedagogia se pudesse?
Acho que elas precisam ser inteiramente reformuladas.
Repensadas do zero mesmo. Não é preciso ir tão
longe para entender por quê. Basta consultar os rankings
internacionais de ensino. Neles, o Brasil chama atenção
por uma razão para lá de negativa. Está
sempre entre os piores países do mundo em educação.