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Enem, TRI e Serra



Vejam abaixo colegas o artigo de nosso ex gov/pref Zé Serra. Saiu no estadão de hoje.
José Serra, ex-prefeito e ex-governador de São Paulo - O Estado de S.Paulo

O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) foi criado pelo ex-ministro da Educação Paulo Renato de Souza, em 1998, como parte de um esforço para melhorar a qualidade das escolas desse ciclo educacional. Para isso precisava de um instrumento de avaliação do aproveitamento dos alunos ao fim do terceiro ano para subsidiar reformas no sistema. Iniciativas desse tipo também foram adotadas para o ensino fundamental e o universitário. Nada mais adequado que conhecer melhor o seu produto para adotar as terapias adequadas. O principal benefício para o estudante era avaliar o próprio conhecimento.
O Enem é uma prova voluntária e de caráter nacional. As questões são  
as mesmas em todo o Brasil. Sua expansão foi rápida: até 2002, cerca  
de 3,5 milhões de alunos já tinham sido avaliados. Note-se que Paulo  
Renato chegou a incentivar as universidades a levarem em conta o  
resultado do Enem em seus respectivos processos seletivos. Em 2002,  
340 instituições já faziam isso.
Ainda que o PT e seus sindicatos tivessem combatido o Enem, o governo  
Lula manteve-o sem nenhuma modificação até 2008, quando o Ministério  
da Educação (MEC) anunciou, pomposamente, que ele seria usado como  
exame de seleção para as universidades federais, o que "acabaria com a  
angústia" de milhões de estudantes ao pôr fim aos vestibulares  
tradicionais. A partir dessa data, dados os erros metodológicos, a  
inépcia da gestão e o estilo publicitário (e só!) de governar,  
armou-se uma grande confusão: enganos, desperdício de recursos,  
injustiças e, finalmente, a desmoralização de um exame nacional.
O Enem, criado para avaliar o desempenho dos alunos e instruir a  
intervenção dos governos em favor da qualidade, transformou-se em  
porta de acesso - ou peneira - para selecionar estudantes  
universitários. Uma estupenda contradição! Lançaram-se numa empreitada  
para "extinguir os vestibulares" e acabaram criando o maior vestibular  
da Terra, dificílimo de administrar. A angústia de milhões de  
candidatos, ao contrário do que anunciou o então ministro Fernando  
Haddad, cresceu, em vez de diminuir. E por quê? Porque a um engano  
grave se juntou à inépcia.
Vamos ao engano. Em 2009 o Enem passou a usar a chamada Teoria da  
Resposta ao Item (TRI) para definir a pontuação dos alunos, tornados  
"vestibulandos". Mas se recorreu à boa ciência para fazer política  
pública ruim. A TRI mede a proficiência dos alunos e é empregada no  
Sistema de Avaliação da Educação Básica (Sabe) desde 1995, prova que  
não seleciona candidatos - pretende mostrar o nível em que se encontra  
a educação, comparar as escolas e acompanhar sua evolução, para  
orientar as políticas educacionais.
Como o Enem virou prova classificatória, o uso da TRI, que não confere  
pontos aos alunos segundo o número de acertos (Teoria Clássica dos  
Testes), renovou a "angústia". O "candidato" não tem ideia de que  
pontuação lhe vão atribuir porque desconhece os critérios do  
examinador. Uma coisa é empregar a TRI para avaliar o nível dos  
jovens; outra, diferente, é fazer dela um mistério que decide seu  
destino. Na verdade, o "novo" Enem passou a usar a TRI para,  
simultaneamente, selecionar alunos, avaliar o desempenho das escolas,  
criar rankings, certificar jovens e adultos que não completaram o  
ensino médio e orientar o currículo desse ciclo. Não há exame no mundo  
com tantas finalidade discrepantes.
A Teoria Clássica dos Testes não distingue o acerto derivado do  
"chute" do decorrente da sabedoria. A TRI pode ser mais apropriada  
como forma de avaliar o nível da educação, mas como critério de  
seleção vira um enigma para os candidatos. Os vestibulares  
"tradicionais", como a Fuvest, costumam fazer sua seleção em duas  
etapas: uma primeira rodada com testes e uma segunda com respostas  
dissertativas - que não comportam o chute.
O Enem-vestibular do PT concentrou, ainda, na prova de redação a  
demonstração da capacidade argumentativa do aluno. Além de as  
propostas virarem, muitas vezes, uma peneira ideológica, assistimos a  
um espetáculo de falta de método, incompetência e arbítrio. O País  
inteiro soube de um aluno, em São Paulo, que recorreu à Justiça e sua  
nota, de "anulada", passou para 880 pontos - o máximo é mil. Outro, ao  
receber uma explicação de seus pontos, constatou um erro de soma que  
lhe roubava 20 pontos. Outros 127 estudantes conseguiram ter suas  
notas corrigidas. Atentem para a barbeiragem técnica: nos testes,  
recorre-se à TRI para que o "chute" não tenha o mesmo peso do acerto  
consciente, mas o candidato fica à mercê de uma correção marcada pelo  
subjetivismo e pelo arbítrio.
É conhecida também a sucessão de outros problemas e trapalhadas:  
quebra do sigilo em 2009, provas defeituosas em 2010 e nova quebra de  
sigilo em 2011. Além disso, os estudantes que, via Justiça, cobram os  
critérios de correção das redações costumam receber mensagens com  
erros grotescos de português. Todos nós podemos escorregar aqui e ali  
no emprego da norma culta. Quando, porém, um candidato questiona a sua  
nota de redação e recebe do próprio examinador um texto cheio de  
erros, algo de muito errado está em curso.
Se o MEC queria acabar com os vestibulares, não poderia ter criado "o"  
vestibular. Se o Enem deve ser também uma prova de acesso à  
universidade, não pode ser realizado apenas uma vez por ano -  
prometem-se duas jornadas só a partir de 2013. A verdade é que o  
governo não criou as condições técnicas necessárias para que a prova  
tivesse esse caráter. A quebra de sigilo em 2011 se deu porque  
questões usadas como pré-testes foram parar na prova oficial. O banco  
de questões do Enem não suporta a demanda. O PT esqueceu-se de cuidar  
desse particular no afã de "mostrar serviço" - um péssimo serviço!
O ex-ministro Haddad, antes de deixar o cargo, fingiu confundir a  
crítica que fizeram a seu desempenho com críticas ao próprio Enem, o  
que é falso. Talvez seu papel fosse mesmo investir na confusão para  
tentar apagar as pegadas que deixou. O nosso papel é investir no  
esclarecimento.


Carlos Alberto de Braganca Pereira <cpereira@ime.usp.br>