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Veículos de duas rodas: crônica de mortes anunciadas
- Subject: Veículos de duas rodas: crônica de mortes anunciadas
- From: cpereira@ime.usp.br
- Date: Sun, 11 Mar 2012 14:19:40 -0300
Meu amigo Alexandre Aguiar costuma escrever crônicas interessantes em
sua página.
Hoje escreveu sobre algo que já vem me incomodando faz tempo.
Creio que muito importante para nós estatísticos que lemos notícias
que nos indignam sem que pensemos em suas causas.
Boa leitura
Carlinhos
Veículos de duas rodas: crônica de mortes anunciadas
O que é interessante em toda história das mortes de ciclistas nos
últimos dias é que todos cobram a lição de casa do outro sem ter feito
a sua própria. O único estudo sistemático feito no Brasil concluiu que
menos de 1% dos ciclistas usavam os acessórios e práticas recomendados
para segurança.
Esta semana eu ouvi uma entrevista do cara que faz os relatórios para
a ONU sobre mortes de trânsito no Brasil. Os relatórios são
distribuídos no portal da ONU. Tem havido um crescimento vertiginoso
das mortes tanto de ciclistas como de motociclistas. Uma epidemia, ora!
Na minha análise, a epidemia tem seis fatores causais. Todos bem documentados.
Primeiro, a nossa população tem se concentrado nas cidades que crescem
de forma desorganizada. Embora a desorganização seja crônica, muito
mais antiga, a concentração rápida da população a torna mais evidente.
Hoje, 81% da população vive em cidades.
Segundo, tem havido uma oferta elevada de crédito e um certo
enriquecimento da população e as vendas de bens de consumo duráveis
dispararam nos últimos 10 anos. As vendas de motos tiveram crescimento
de cerca de três vezes a média nacional durante praticamente todos os
dez anos que o pesquisador mencionou. Não consegui dados sobre
bicicletas mas devem ter vendido muito também, especialmente depois da
entrada das bicicletas chinesas, muito baratas, no mercado.
Terceiro, nossa população não é muito dada a regras. Brasileiro só faz
o que quer, raramente o que deve.
Quarto, a legislação obriga o ciclista a ficar restrito a regiões do
leito carroçável (bonito isso...) que com frequência são usadas como
vias exclusivas para veículos de transporte público, de grande porte.
Quinto, por diversos motivos, as pessoas querem usar mais a bicicleta
e a moto como meio de transporte e a moto, também, como instrumento de
trabalho.
Sexto, o uso de veículos de duas rodas tem seu risco inerente elevado
em relação a outros meios de transporte.
Uma perspectiva interessante foi apresentada por um jornalista chamado
Milton Yung (não sei se a ideia é dele): aumento da disputa de espaço
nas cidades. Acho isso interessante mas muito poético e não descreve
os fatores que geram a epidemia de mortes de usuários de duas rodas.
Gosto mais da noção de risco porque obriga o raciocínio dos mecanismos
que geram risco. O brasileiro tem comportamentos de risco (desprezo
pelas regras) e nega o risco inerente ao uso de veículos de duas rodas.
Por que inerente? O ciclismo é o esporte que mais mata no mundo. E
exatamente os lugares do mundo em que ele é mais praticado têm
populações consideradas disciplinadas: Europa e China. O risco é tão
grande que muitas seguradoras incluem cláusulas que as isentam de
obrigações caso o sinistro ocorra durante prática de ciclismo (além
das usuais: alpinismo, montanhismo, paraquedismo, voos livres,
automobilismo, etc.).
Como desprezamos riscos, é quase certo que ninguém vai estudar os
riscos envolvidos no uso de bicicletas antes de montar numa e se
aventurar no trânsito. E sai por aí fazendo o que quer convicto de que
os outros é que tem que fazer "o que é certo". Só pode funcionar mal.
Como deploramos a realidade, procura-se sempre um culpado para expiar
pelos pecados de todos (conheço uma história famosa que é assim...) e
proporcionar uma catarse redentora em manchetes espalhafatosas nas
mídias. As tensões se dissiparão e poderemos continuar a ignorar a
realidade sossegada, como se nada tivesse acontecido. Para que não
sejam considerados sacrificados em vão, geralmente conferimos aos
mortos certo ar de mártires. Redimidos, poderemos esquecer o assunto
sem responsabilidade pessoal por qualquer morte em duas ou três
semanas junto com todos os outros assuntos porque "assuntos" só
despertam interesse durante esse período.
Isso é bem mais fácil do que adotar disciplinas. Tem que estudar e
ficar se doutrinando e se fiscalizando. Da muito trabalho.
Adicionar: March 11th 2012
Revisor: Alexandre Aguiar
Pontos:
Cliques: 34
Idioma: brazilian
Carlos Alberto de Braganca Pereira <cpereira@ime.usp.br>