Dicionário e léxico do Português Brasileiro
Maria Tereza Camargo Biderman, UNESP
Autora de: Dicionário Didático de Português. S.Paulo, Editora Ática, 1998.
Teoria Lingüística. S.Paulo, Editora Martins Fontes, 2001.
e-mail: mtbider@attglobal.net
Léxico e dicionário
O léxico
O léxico de uma língua engloba o conjunto de signos lingüísticos por meio dos quais o homem não só se expressa, se comunica, mas também cria novos conhecimentos e/ou assimila conhecimentos que outros homens criaram, não só na sua civilização mas também em outras civilizações.
Nas civilizações mais avançadas tecnicamente o léxico da língua escrita constitui o veículo básico de armazenamento do conhecimento.
·
as línguas ágrafas possuem um léxico pobre·
léxico da língua escrita º veículo básico de armazenamento do conhecimentoo dicionário
O dicionário registra o
léxico de uma língua, isto é, o conjunto de palavras desse idioma. Através das palavras o léxico armazena todos os conceitos, sentidos e usos que podem ser expressos nesta língua com os vocábulos de que ela dispõe.Para o dicionarista Alan Rey, autor principal do
Dicionário Petit Robert do francês, o léxico vem a ser a medida de tudo, pois exprime e reflete o universo cultural da sociedade. Ora, o tesouro lexical do idioma constitui um conjunto cujas dimensões não é possível precisar. De fato, o número total de palavras de uma língua de civilização é indeterminado. E como diz ainda o mesmo Alan Rey o dicionário constitui a memória lexical de uma sociedade; contém o acervo e o registro das significações que nossa memória não é capaz de memorizar. (Petit Robert, Prefácio, XVII).E nas palavras de Luis Fernando Lara, autor de dois dicionários do espanhol mexicano:
" O dicionário representa a memória coletiva da sociedade e é uma de suas mais importantes instituições simbólicas."
Podemos ainda
definir um dicionário como uma organização sistemática do vocabulário, uma espécie de tentativa de descrição do léxico de uma língua.
2. A fixação do Português Brasileiro (PB) e os dicionários.
·
durante séculos o léxico do PB teve a língua falada como suporte·
a fixação do Português Brasileiro (PB) foi um processo lento que se estendeu por séculos·
1808 : criação da Impressão Régia Þ impressão de livros, de jornais sobre a realidade brasileira.·
século XIX: intelectuais e escritores brasileiros debatem a questão da identidade lingüístico-cultural brasileira : José de Alencar, Academia Brasileira de LetrasGrandes marcos (do século XVIII ao século XX)
·
as grandes obras lexicográficas do séc. XIX Þ retratavam o Português EuropeuRafael Bluteau:
Vocabulario portuguez e latino. 8 vols. Coimbra-Lisboa, 1712-1728Antonio Moraes e Silva:
Diccionario da lingua portugueza. 1ª ed. 1789; 2ª ed. 1813Frei Domingos Vieira:
Grande diccionario portuguez ou Thesouro da lingua portugueza. 5 vols.1871-1874Caldas Aulete:
Diccionario contemporaneo da lingua portugueza. 1888.·
a identidade do Português Brasileiro e do Português Europeu·
a norma brasileira: Macedo Soares; glossáriosMonteiro Lobato, Semana de Arte Moderna, Antenor Nascentes
Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa
: PDBLP (1ª ed.1938; 11ª e última ed. 1967)Dicionários gerais do século XX
Nascentes, A. (ABL)
Dicionário da língua portuguesa. 4vols. 1961-1967 (conclusão:1943)Ferreira, A.B.de H. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. (AURÉLIO)
(1ª ed.:1975; 2ª ed.: 1986; 3ª ed. 1999)
[138.000 verbetes?]
Michaelis Moderno Dicionário da Língua Portuguesa
. Melhoramentos (1999)[200.000 verbetes?]
Houais, A. & Villar, M. de S.
[220.000 verbetes?]
3. A língua escrita como modelo e ideal de linguagem.
·
variedade escrita = guardiã e depositária da herança cultural e literária do idioma e alicerce da língua em sua continuidade histórica·
numa sociedade letrada e com antiga tradição escrita, o dicionário constitui um tesouro vocabular que arquiva as palavras que nossa memória não consegue registrar·
dicionário = repositório desse patrimônio cultural coletivo·
dicionário registra a linguagem aceita e valorizada na comunidade dos falantes [= a norma social]
O que é a norma?
·
toda palavra, expressão ou uso da língua geral no Brasil, de caráter urbano e com valor irradiador para o resto das regiões do país.·
vocabulário intelectualizado e rico Þ modelo de correção para todos os brasileiroso dicionário da língua tenta descrever o léxico do idioma na sua totalidade
A
escrita·
é conservadora·
evolui lentamente·
é socialmente valorizada
4. O problema da variação lingüística e o dicionário.
·
O dicionário fixa, congela uma realidade dinâmica.·
A variação lingüística no espaço: Português Europeu (PE) X Português Brasileiro (PB)PE |
PB |
pequeno-amoço |
café-da-manhã |
arrefecer |
esfriar |
comboio |
trem |
mondar |
podar |
sandes |
sanduíche |
talho |
açougue |
·
coexistência de variantes ® alguns usos ou signos preferidos numa ou noutra região para designar o mesmo referente.·
coexistência de variedades diversas conforme os diferentes grupos sociais·
dicionário = obra didática e pragmática ® assessora os falantes na sua prática lingüística
5. A norma e o dicionário.
·
O consulente e/ou falante da língua atribui ao dicionário um papel de autoridade lingüística.·
dicionário = registra uma norma em todos os sentidos:·
quanto à ortografia Þ uso do corretor ortográfico & do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesaexemplos da variação lingüística quanto à forma:
estrangeirismos
:·
balé (mais freqüente)/ ballé, balletcampus (mais freqüente)/ câmpus
pivô(mais freqüente)/ pivot
mousse/ musse(mais freqüente)
poster/pôster [freqüência mais ou menos semelhante)
rôtisserie/rotisserie/rotisseria [todas as três formas concorrem igualmente]
shampoo/xampu (mais freqüente)
souflé/suflê(mais freqüente)
stress (mais freqüente)/estresse
surf/surfe (mais freqüente)
·
habeas-corpus (mais freqüente)/habeas corpushigh-tech/ high tech (mais freqüente)
show-room(mais freqüente)/ showroom
shopping-center/ shopping center [ shopping/ shoppings]
·
neologismos vernáculos:·
terminologias técnicas e científicas® estrangeirismos, sobretudo anglicismos·
o(um) chip; o (um) backup; o (um) download; a internet; o (um) protocolo < protocol·
decalques como: a estação de trabalho < workstation; o (um) servidor < server·
anglicismos geram derivados no português: becapear [backup, grafado becap + -ear] derivado do inglês to backup; clicar < to click; deletar < to delete; escanear, escaneamento < to scan; zipar < to zip·
Vocabulário herdado das línguas indígenasformas variantes
mandi
/ mandí/ mandim/ mandii/ mandu <nome de um peixe>sucuri < um tipo de cobra > com as variantes: securi, socori, sucurí, sucury
sucupira < um tipo de árvore> sicupira, sipipira, sepepira, sapupira, sopopira, secupira, supopira, sipirá, sucupyra, sapupira
tapir ou tapira = anta (de origem árabe)
·
A normalização do vocabulário é um processo complexo.Não se trata apenas de um problema de
forma lingüística, mas também de um problema de natureza conceptual e taxionômica.
6. Fundamentação teórica
Alguns conceitos da
Teoria Lexical constituem base imprescindível para a confecção de um dicionário.
TRIÂNGULO DA SIGNIFICAÇÃO OU TRIÂNGULO SEMIÓTICO
Signo referente a um ser concreto :
tucano
Signo referente a uma entidade abstrata :
internet
internet
[ abreviatura do inglês internetwork] rede de computadores conectados pelo mundo afora que podem transferir e intercambiar dados entre si.
·
O modelo ideal de signo: o substantivo entre as classes de palavrascategoria do substantivo
® categoria nomeadora e designadora por excelência·
substantivo º cerca de 50% (ou mais) das palavras de qualquer língua· verbo designador de Þ · ação : comer ® O tucano come frutas.
·
processo : amadurecer ® As bananas já amadureceram.·
estado : estar ® As crianças estão felizes.O verbo representa cerca de 20% (ou menos) do vocabulário. Mas é o centro da oração (frase) e, portanto, é essencial para a comunicação, para o enunciado discursivo.
Não vamos discutir nesta sessão as demais
classes de palavras embora elas sejam igualmente importantes para um dicionário de língua e para a comunicação.Conceito de unidade léxica (palavra)
Não há equivalência entre o conceito intuitivo de palavra e sua representação escrita. São causas desta discrepância :
Portanto, é preciso propor uma categoria não-ambígua para identificarmos os elementos do léxico: a
unidade lexical. Ela pode manifestar-se no discurso (texto) como:unidade simples
: tucano, internet, comer, dona, mãeunidade complexa
: tinha comido, está comendo; dona-de-casa, mãe-solteira, mãe-de-santounidade fraseológica
:1) expressões idiomáticas: bater as botas [ = morrer]; acabar em pizza;
2) unidades fraseológicas das linguagens especializadas:
unidade central de processamento; reconhecimento óptico de caracteres; rede mundial de computadores
As unidades complexas do léxico formam-se em função de algumas características da linguagem humana. Uma delas é a economia lingüística. Para não precisarmos criar sempre novas unidades lexicais para cada conceito novo que é inventado, reutilizamos os signos já existentes na língua. Assim, por exemplo,
mãe-solteira e mãe-de-santo formaram-se a partir de mãe. Por vezes, a nova palavra, o neologismo, baseia-se apenas na forma; às vezes, baseia-se em ambos, forma e significado, ou como dizemos em Lingüística - significante e significado. Geralmente os neologismos resultam do aparecimento de algo até então não-existente na sociedade - uma invenção, um objeto, um instrumento, um processo novo, etc. E podem ser criados pelos falantes, usuários da língua, a partir de sua própria língua, ou são emprestados de outras línguas e culturas em que esses signos surgiram primeiro. É o que se verifica freqüentemente na atualidade com os anglicismos que têm sido incorporados às demais línguas do globo, em virtude da hegemonia exercida pelos Estados Unidos sobretudo no domínio das tecnologias e das novas descobertas científicas.
A seleção das entradas de um dicionário (unidades lexicais) deve ser feita a partir de um corpus, composto de textos representativos da língua.
A elaboração da
macroestrutura de um dicionário de língua: lista das palavras-entrada que comporão a nomenclatura do dicionário.A microestrutura de um dicionário: o
verbete.Exemplo de como o dinamismo da língua, a criação humana e as mudanças sociais são elementos importantes no estabelecimento do lema e do tratamento do verbete:
Consideremos as palavras
dona e dona-de-casa.A 2ª edição do PDBLP (1939) assim define
dona:"Senhora de alguma coisa; proprietária; título e tratamento honorífico que precede o nome próprio das senhoras."
A 10ª do PDBLP (1960) repete a mesma definição e acrescenta ainda:
(Bras.) mulher, esposa.
Dona-de-casa
não existe em ambos os dicionários.Ora, se examinarmos a 1ª edição do AURÉLIO (1975) encontraremos duas entradas.
Dona
[do lat. domina] s.f. 1. Senhora de alguma coisa; proprietária. 2. Título de tratamento honorífico que antecede o nome próprio das mulheres pertencentes às famílias reais de Portugal e do Brasil. 3. Título que precede o nome próprio das senhoras. 4. Bras. Pop. Mulher; esposa. 5. Bras. Pop. Mulher, moça.Dona-de-casa
. s.f. Mulher que dirige e/ou administra o lar. [Pl: donas-de-casa].
Esta diversidade de tratamento destas palavras se deve não só ao fato de o AURÉLIO ser um dicionário mais bem elaborado que o PDBLP, mas também a uma significativa mudança social ocorrida na sociedade brasileira. A categoria social da
dona-de-casa não existia no final da década de 30 e quarenta. É uma categoria e um conceito típicos do Brasil moderno como decorrência do surgimento da sociedade de consumo entre outras causas. Por isso a entrada (lema) dona-de-casa, sendo um neologismo surgido talvez nas décadas de cinquenta/sessenta, só então passa a integrar o léxico do Português como está registrado já na 1ª edição do AURÉLIO.
Vamos encerrar examinando o verbete
surgir de três dicionários do Português que representam épocas diferentes da evolução histórica de nossa língua: O Bluteau (século XVII), o Moraes (séculos XVIII/início XIX) e o Houaiss (século XXI).ComentáriosVale a pena lembrar uma afirmação de Bluteau em seu "prólogo ao leitor": não temos outra prova da propriedade das palavras, que o uso dellas, & deste uso não há evidência mais certa, & permanente, que a que nos fica nas obras dos Autores, ou manuscritos ou impressos . Mostra assim, clara consciência da importância da documentação escrita para registrar os sentidos e usos das palavras. Bluteau considerou fundamental documentar os significados e usos das palavras com a abonação de autores, indicando detalhadamente a referência, o que é uma novidade para o século XVII/ início do século XVIII.
O dicionarista Moraes constitui um exemplo de probidade intelectual
- não se considerava autor da 1a edição de seu Dicionário
(a de 1789) - pois nele afirma que apenas extraiu do Bluteau, o vocabulário
português. Assim, não se atribuiu a autoria da obra. Somente
na 2a edição, a de 1.813, intitulou-se autor do Dicionário.
Moraes se baseou numa base de dados de 203 autores dos séculos XV
a XVIII como fonte de referência. Podemos considerar o Moraes
como um dicionário de língua, registrando o vocabulário
mais usual na língua escrita e oral da época. A obra de Moraes
(1813) tem sido considerada como uma referência básica da
Lexicografia Portuguesa, um modelo para os demais dicionários produzidos
em língua portuguesa.
No verbete do dicionário, ao lado da entrada,ele indicou
a classe gramatical a que pertencia a palavra. Seguem-se: a definição
com exemplos tirados de autores, com indicação da referência:
obra, capítulo, tomo, página etc. Infelizmente faltam algumas
referências, sendo o caso mais notório o das obras de Gil
Vicente. Embora Moraes tenha usado essas obras como abonação,
não as registra para evitar embargo da Inquisição,
já que o dramaturgo tinha sido posto no índice de autores
proibidos. Os verbetes do Moraes são mais bem estruturados e mais
claros do que os de Bluteau. Além disso, o Moraes registra também
os diferentes níveis de linguagem, isto é, se a palavra é
vulgar, familiar, obscena, gíria, regional, etc. O registro de termos
científicos, conforme a ciência da época, é
outro aspecto importante do Dicionário de Moraes. Assim, quando
pertinente, são indicados os domínios do conhecimento: astronomia,
anatomia, botânica, aritmética, arquitetura, farmácia,
física, geografia, geometria, medicina, matemática, música,
náutica, etc.
Vejamos agora exemplos da Lexicografia de Bluteau e de Moraes. É
preciso esclarecer que, embora se tenha buscado transcrever os textos respeitando
o original, ao máximo [por exemplo com relação à
ortografia], fizemos uma editoração dos mesmos para facilitar
a compreensão dos comentários, como o uso de negritos e cores.
BLUTEAU
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SURGIR (Termo Nautico) Tomar Porto.
Apportar. Querem alguns, que se derive do verbo Latino, Surgere.
Surgere naves
videntur, (diz certo etymologico.) quodammodo ex alto mari
ad terram accedentes. Vid. Aportar. Elles vem surgindo.
Terrae applicant naves.Tit.Liv.Cesar diz Ad terram applicant
naves, Hircio, & Justino dizem, Ad littus, ou ad
terram applicare. (subentendendo naves, ou navim.) (Surgio
na parte mais Oriental. Portugal Restaur. part. I. pag. 3.) (Surgirão
diante da povoação. Barros, I. Dec. fol. 67. col.3.) (Surgirão
no Porto de Palma Idem, tom. I. fol. 22.col.2.)
SURGIR. (No sentido metaforico.) Subir,
levantarse, tirarse. Surgir da pobreza. Emergere ex mendicitate.
Cic. Surgir a
grandes riquezas. Ad summas opes emergere. Lucan. (Da miseria
da extrema pobreza Surgirão subitamente à opulencia de
ricos. Vieyra, Tom. 6. pag.509)
Como se vê pelo exemplo do verbete surgir, o Bluteau é
um dicionário focado no latim, mas já direcionado para a
língua vernácula - o português do seu tempo, isto é,
séculos XVI e XVII sobretudo. Ele se apoia na autoridade dos escritores
clássicos latinos aí citados - Tito Lívio, César,
Hircio, Justino, Cícero e Lucano; e também na autoridade
lingüística de alguns dos clássicos vernáculos
como o cronista português João de Barros de que cita o Iº
volume da obra Décadas (1552), bem como a obra Portugal
Restaurado (1679) de D. Luís de Menezes(Conde da Ericeira),
e ainda a obra do Padre Vieira.. O que nos interessa aqui é registrar
que a prática dicionarística deste pai da Lexicografia Portuguesa
se fundamenta na autoridade de escritores, portanto da língua escrita,
para documentar o sentido e o uso das palavras. Considera, porém,
o significado do termo em latim como básico. Por outro lado, notamos
que Bluteau divide o verbete em dois, separando o sentido técnico
- termo náutico - do sentido metafórico. Este testemunho
de Bluteau nos leva a admitir que o primeiro uso de surgir
no Português seria na linguagem náutica. De qualquer forma,
ambos os sentidos não têm muita afinidade com o significado
que esta palavra assumiu no Português contemporâneo.
MORAES (ed. de 1813)
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SURGIR, v.n. Aportar, lançar
ferro no porto. Barros. "surgirão diante da povoação."
Cast. 2. f. 161. «logo surgirão, porque
a nau não surdia» e 3. f. 66. §. Couto, 4. 1. c 4.
e 6. §. v.at. Surgir 2, ou 3 amarras; i.e., dar fundo
com 2, ou 3 ancoras.
Albuq. 4 P. c. 2. Couto, 4. 2. c 3. §. Surgir, n.
Levantar-se, crescer em altura. «surgem as sombras (que erão
rasteiras.) e
engrossão.» Alfen. Cynth. Poes. fig. elevar-se,
alçar-se. «da summa pobreza surgirão á
opulencia.» Vieira. Surgir das
ondas, lançar-se fora; v.g.
os Tritões, e mostrar-se; assim
surgir a Aurora das ondas, do horisonte, etc. surgir á mente,
á
fantazia, subir: it nascer nella,
ou levantar-se: fig. «surgem-me horridas
brutas feridades.» (a Medea contra Jasão) a Lingua
Portugueza que até agora esteve encouchada sem poder
surgir.
Eufr. Prol.
Vê-se no dicionário de Moraes que o principal sentido deste verbo nos séculos XVI, XVII e XVIII era o uso náutico (na marinha), um uso técnico portanto. Logo, continuava a perdurar o significado do tempo de Bluteau. Além disso, vemos que os sentidos de surgir na época de Moraes, registrados em vermelho, não coincidem com os significados atuais desse verbo: aparecer, manifestar-se, emergir, originar-se, proceder. Os autores citados por Moraes são: Antonio de Castilho, Comentário do Cerco de Goa (1570); P. Antonio Vieira (1608/1697), os Sermões; Jorge Ferreira de Vasconcelos, Eufrosina (1542/43, ed. 1616) ilustram os usos de surgir.
Por conseguinte, temos aqui um caso de grandes mudanças na evolução do significado de uma palavra. Este exemplo mostra também como o léxico testemunha os usos de uma sociedade ao longo de sua história. E ainda: que o léxico registrado nos dicionários acumula o conhecimento das gerações sucessivas de um povo e de uma cultura.Mas também que as palavras mudam no eixo da história.
A comparação dos verbetes do Bluteau e do Moraes com o
texto do verbete surgir no Dicionário da Língua Portuguesa
de HOUAISS (2001) evidencia falhas deste último. Na introdução
desse dicionário, HOUAISS, é explicada a forma como foi elaborada
a obra, como se deve consultá-la e que tipo de informações
oferece. Entretanto, o autor desta introdução - Mauro Villar
- não afirma que a obra seja um dicionário histórico
do Português. Informa que o dicionário indicará a primeira
datação do uso da palavra, bem como outras datações.
Mas o dicionário não é caracterizado como um dicionário
que descreva a língua portuguesa em sua evolução histórica.
Daí resulta que a forma de apresentar os sentidos, as acepções,
do verbo surgir parecem-me inadequadas. Registra-se como primeira
datação - século XV (seguindo informação
do Dicionário Etimológico de A.G. da Cunha, 1982)
o sentido < lançar âncora ou amarra
no porto e dar fundo com elas; ferrear, ancorar, fundear >,
que é o sentido registrado por Moraes. E o HOUAISS prossegue com
sentidos não mais vigentes no português contemporâneo
< 2. chegar por via marítima; aportar
>, < 5. ficar bom (de doença); restabelecer-se,
curar-se >, < 6.
voltar ao estado consciente;
acordar, despertar, ressurgir >. O fato é que, só
na oitava acepção, o dicionarista registra o significado
mais corrente nos dias atuais <
aparecer de repente;
romper, irromper >. Para um dicionário do Português
Contemporâneo, essa deveria constar como primeira acepção.
É igualmente estranho que o dicionário apresente exemplos
de frases com esses sentidos não mais correntes nos nossos dias.
E não se trata de documentação de autores do passado,
mas de frases construídas pelo dicionarista, o que não faz
sentido. Portanto, parece-me que o Dicionário de HOUAISS, que foi
anunciado como a melhor obra lexicográfica dos nossos dias para
o Português, está longe de representar tal padrão de
qualidade, evidenciando critérios difusos na elaboração
dos verbetes. De fato, é praticamente impossível que um dicionário
seja simultaneamente uma obra histórica, que espelhe a evolução
do vocabulário da língua, e um dicionário de usos
contemporâneos para os consulentes de hoje.