No limiar do século 21, após um século de progresso tecnológico sem precedentes, grandes perplexidades cercam a questão da propriedade intelectual e provavelmente ela passará por novidades ainda difíceis de serem previstas. A maior parte destas perplexidades surgem em função do advento da era digital, representada, no caso, por computadores que se comunicam entre si através de redes de alcance mundial. Nesta seção procuramos abordar algumas destas perplexidades, advertimos, porém, que o quadro geral é muito denso, dinâmico e controvertido, o que impossibilita qualquer tentativa de um levantamento completo.
Iniciamos a apresentação com uma fotografia da situação atual. No que segue estaremos considerando as diversas formas usadas para restringir a feitura de cópias, através da lei dos direitos autorais (``copyright'') ou através de outros mecanismos, como, por exemplo, os contratos ``shrink-wrap'' ou ``click-through'', muito em moda atualmente. Não estaremos considerando outros mecanismos de incentivo e proteção da propriedade intelectual, como, por exemplo, as leis das patentes.
Existem grandes conglomerados econômicos que de uma forma ou de outra estão calcados na legislação dos direitos autorais. Mencionamos, em particular, as companhias publicadoras, a indústria de software e a indústria de entretenimento. Calculando-se as áreas correlatas e usando dados da Business Week de 10 de janeiro de 2000, provavelmente algo em torno de 10% da economia americana depende, em grau maior ou menor desta legislação. Alguns trilhões de dólares anuais deve ser o volume de produção mundial afetada. A perspectiva com o advento da ``Sociedade da Informação'' ou da ``Sociedade do Conhecimento'' [10] é de um aumento futuro significativo do percentual e dos valores absolutos mencionados. Embora este processo esteja ainda no seu início e embora a visibilidade social da Internet não ultrapasse cinco anos no momento, pode-se afirmar que atualmente todas as áreas da economia e da sociedade já estão na dependência da tecnologia digital [4,18].
Estamos no meio, portanto, de um processo de enorme impacto econômico que no momento está tomando de assalto toda a área do comércio. Globalmente, nesta dinâmica, a questão da propriedade intelectual ocupa um lugar de destaque. Daí a importância de debater e entender o tema da forma mais ampla possível. Vale a pena observar que o criador do bem de informação, embora tenha um papel essencial, figura neste processo entre os elementos de menor relevância econômica.
A era digital intensificou a guerra entre tecnologia e ``copyright'' a níveis anteriormente desconhecidos. A cópia eletrônica passou a ser parte integrante da tecnologia da Internet. A ``World Wide Web'', por exemplo, é intrinsicamente baseada na cópia de arquivos. Qual seria o sentido de impor restrições à cópia dentro da realidade do protocolo http da WWW? Toda a tecnologia da rede é baseada em intercâmbios de pequenos pedaços de informação enviados de um computador para outro. Tais pedaços passam por muitos computadores intermediários através de caminhos intrinsicamente imprevisíveis [5]. Inúmeras cópias dos pedaços de informação são feitas neste processo. Ademais, a tecnologia digital permite fazer cópias absolutamente fiéis de quaisquer dados, documentos, imagens, sons, filmes ou quaisquer combinações destas formas de informação, desde que as informações estejam representadas digitalmente. Mais ainda, o custo econômico de fazer e armazenar as cópias está rapidamente indo para zero. Assim, é viável fazer, a custos baixos, um número ilimitado de cópias sem nenhuma degradação de qualidade.
A rede Internet está protagonizando um fenômeno novo, sem precedentes na história da nossa civilização, cujas consequências consideramos potencialmente imprevisíveis no momento. Estamos nos referindo à criação cooperativa de bens de informação por centenas, às vezes milhares de autores que se comunicam através da Internet. Mencionamos duas instâncias deste fenômeno, ambas quase inteiramente contidas nos últimos dez anos: o advento do sistema operacional GNU/Linux e a construção do conteúdo coletivo da ``World Wide Web''. Estes processos talvez devam ser vistos como exemplos da construção de uma cultura e neste sentido não seriam novidades absolutas. A linguagem e o folclore seriam dois exemplos de criação cooperativa e amplamente compartilhada de bens de informação. A grande novidade reside na velocidade com que o processo se desenrola e na grande complexidade técnica dos objetos criados.
O nosso primeiro exemplo é o advento do sistema operacional GNU/Linux. Trata-se de um produto de tecnologia muito sofisticada, literalmente escrito a milhares de mãos. Surpreendentemente, em curto espaço de tempo o GNU/Linux tornou-se um fator econômico importante, ainda em pleno crescimento, mas que já não pode ser ignorado.
Uma das principais causas do sucesso do GNU/Linux é uma estabilidade extraordinária, uma característica altamente desejável e muito elusiva em sistemas operacionais. Não está suficientemente esclarecido ainda como e porque esta estabilidade foi conseguida, mas é muito provável que o modelo encontrado por Linus Torvalds para o seu desenvolvimento, chamado de método bazar por Raymond [26], seja pelo menos parcialmente responsável por esta característica. A prática irrestrita e fortemente incentivada da cópia do software, inclusive da sua fonte, é parte essencial deste método e portanto a questão tem a máxima relevância para o nosso trabalho.
É importante observar ainda que o GNU/Linux foi elaborado e inicialmente disseminado sem a intervenção de qualquer capital financeiro. Apesar disto, tudo funciona como se houvesse uma poderosa empresa por trás de um produto de grande relevância econômica. O inusitado está no fato de que esta empresa imaginária não tem nem capital nem diretoria. Para efeito de comparação vale a pena mencionar que recentemente o custo de desenvolvimento do Windows 2000, um sistema operacional concorrente com o GNU/Linux, foi anunciado como sendo de um bilhão de dólares.
Não temos condições de entrar em maiores detalhes nem sobre o produto nem sobre a sua elaboração aqui, remetemos o leitor interessado a artigos e trabalhos específicos [8,26,14]. É impossível, no entanto, deixar de mencionar dois aspectos do movimento de software livre. O primeiro é que a motivação original do movimento foi a visão de Richard Stallman de que o software de uso geral deveria estar associado à prática de ampla liberdade. Liberdade de expressão, liberdade de cooperação, liberdade de compartilhamento, liberdade de distribuição, liberdade de experimentação, liberdade de uso, liberdade de trocas de experiências, liberdade de evolução. Liberdade ampla, geral e irrestrita, enfim. Para expressar, impor e garantir a manutenção da liberdade visada a Free Software Foundation elaborou, sob a liderança do próprio Richard Stallman, uma licença, a ``General Public License'' (GPL). Julgamos que esta licença tem um papel preponderante no sucesso do empreendimento, ademais, ela oferece uma alternativa muito original para a conceituação da propriedade intelectual. Por isto, vamos fazer uma pausa para analisá-la com um pouco mais de detalhe.
A ``General Public License'' foi elaborada em 1989. Para maiores informações o leitor é remetido para o sítio da Free Software Foundation [12] e para os artigos de Graham [13] e Moglen [21]. A essência da licença GPL é valer-se da Lei de Direitos Autorais para impor alguns valores ortogonais aos tradicionalmente associados ao ``copyright''. Valendo-se de um trocadilho intencional a GPL, também chamado de ``copyleft'', visa assegurar que um programa de software possa ser livremente copiado, distribuído e alterado. A licença visa também impor restrições para garantir que esta cadeia não possa ser interrompida. Tais objetivos só podem ser conseguidos com a total disponibilidade do chamado programa fonte. A licença inclui a cláusula de que o programa fonte original ou os programas fonte de quaisquer alterações que nele se originaram não podem ser ocultos. Ou seja, esta licença estabelece uma filosofia de programação de computadores baseada na livre disponibilidade do programa fonte. Como já mencionamos, esta prática tem implicações importantes sobre as características técnicas do produto, entre as quais aspectos de estabilidade e de segurança são muito relevantes, mas este não é o nosso tema aqui.
A prática irrestrita e incentivada da cópia e a disponibilidade do programa fonte estavam em contradição frontal com os interesses e a prática das indústrias de software na época da primeira formulação da GPL. A situação mudou bastante nos doze anos que se passaram e hoje em dia uma parte substancial das indústrias apoiam o sistema operacional GNU/Linux e cada vez mais se baseiam nele. É certamente impossível prever como esta questão vai evoluir no futuro, mas é possível que ela tenha consequências que influam na percepção da propriedade intelectual na importante área de produtos de software.
O segundo exemplo do fenômeno da criação cooperativa em grande escala é a emergência do conteúdo coletivo da ``World Wide Web''. Todos que participaram desta aventura sabem da conveniência de navegar por sítios na teia e imediatamente poder descobrir e copiar a tecnologia usada para a sua elaboração. O conteúdo da teia foi construído através da propagação de exemplos, isto com certeza contribuiu para a sua explosão. Contribuiu também para a rápida emergência de padrões de apresentação que são fáceis de produzir, efetivos para a comunicação e bem aceitos pelo público.
Visto deste ângulo, estamos diante de uma criação cooperativa, totalmente espontânea, sem nenhuma coordenação centralizada. A pouca coordenação existente está silenciosamente embutida dentro das características da tecnologia escolhida pelos idealizadores do protocolo http (``hypertext transfer protocol''). Lesk [15, pg. 15] sugere que o conteúdo da teia é a concretização do sonho de Vannevar Bush sobre a criação cooperativa de uma enciclopédia do conhecimento universal. Estas idéias de Bush foram apresentadas num artigo célebre em 1945 [3] e sobre elas Lesk afirma: ``The rise of the Web is a social victory for the ideas of Vannevar Bush''.
Em ambas estas instâncias de criação cooperativa de bens de informação, a possibilidade de poder fazer cópias irrestritamente foi um dos mecanismos imprescindíveis para a concretização do fenômeno. Ademais, ambas esvaziam qualquer tentativa de definir a quem pertencem que direitos pela cópia, devido ao grande número de autores e contribuintes envolvidos no resultado final. Apesar desta autoria coletiva (ou talvez em parte por causa disto) os produtos resultantes já tiveram grande impacto econômico, cultural e social. Deve-se observar, também, que o uso intenso da Internet foi determinante e imprescindível em ambos os casos.
Gostaríamos de mencionar mais uma perplexidade que envolve a Internet, os direitos autorais e a disseminação de bens de informação. O livro de Shapiro e Varian [28] analisa a questão de que bens de informação são bens de experiência. Experimentá-los é fundamental até mesmo para criar a sua necessidade. Por outro lado, frequentemente estes bens perdem pelo menos parte do seu valor após a sua experimentação. Esta situação paradoxal coloca uma questão de solução difícil, principalmente para quem está preocupado em restringir e controlar a disseminação do seu bem de informação. De certa forma, esta situação é responsável por uma anomalia que presenciamos na Internet diariamente. Parece que ninguém sabe com firmeza que parte da informação liberar para ser livremente distribuída e que parte reservar para fornecimento exclusivo em troca de alguma compensação monetária.
Testemunhas desta anomalia são os sítios na teia de empresas jornalísticas que quase sempre disponibilizam alguma parte do seu conteúdo gratuitamente ou em troca apenas da possibilidade de fazer propaganda própria ou de terceiros. São testemunhas também as grandes quantidades de programas de computador disponíveis para ``download'' gratuito, oferecidos por empresas que visam o lucro. As empresas escolhem qual parte do produto pode ser obtido gratuitamente e qual deve ser comprada. Todos estão experimentando com as novas tecnologias, frequentemente abrindo mão de seus direitos, tentando achar uma fórmula que melhor atenda aos seus interesses.
Outro fenômeno muito recente é o aparecimento de livros editados comercialmente que são disponibilizados para consulta pela Internet e que às vezes podem ser copiados. Em alguns casos concede-se até mesmo o direito à distribuição comercial, quase sem restrições. O movimento OpenContent [23] lançou uma licença de publicação muito liberal, tendo em vista estes parâmetros. Esta licença já foi utilizada por grandes editoras. A editora O'Reilly, por exemplo, está fazendo diversas experiências na direção de liberalizar o ``copyright'' [19,11], mas existem outras editoras também adotando práticas similares [20,24,9].
É interessante notar que pelo menos um destes livros [11] tornou-se rapidamente um ``best-seller'', ocasionando amplo retorno financeiro para a sua editora e para seus autores, apesar da liberalidade da licença e da livre disponibilidade do livro na Internet. Cabe a pergunta: até que ponto a severidade de restrição à cópia aumenta os ganhos financeiros? Qual é a estratégia mais compensadora em termos financeiros: uma política restrita de cópias ou uma política liberal de cópias? Acreditamos que ninguém no momento detém a resposta para estas perguntas. Todos estão experimentando, na busca de alguma fórmula que seja eficiente tanto para atrair a atenção dos leitores quanto para maximizar o retorno financeiro.
Estas questões são particularmente complexas na área de publicações acadêmicas onde os interesses econômicos envolvidos são muito menores e onde a comunidade de produtores e consumidores da informação é relativamente pequena, bem identificada e muito bem articulada. Esta comunidade é fortemente dependente do registro, da disponibilidade e da troca efetiva e eficiente da informação. Ademais, a comunidade tem uma longa tradição de intercâmbio generoso e intenso da informação. Vale a pena registrar que tais hábitos desta comunidade muito influenciaram a arquitetura e o estabelecimento dos principais serviços e protocolos da Internet.
A área de publicações acadêmicas provavelmente será uma das primeiras onde mudanças substanciais referentes à propriedade intelectual ocorrerão. Já mencionamos o trabalho de Lyman sobre o tema [17], um outro estudo profundo foi feito por Odlyzko [22]. Vale a pena registrar uma experiência recente da Springer-Verlag. Esta empresa modificou os termos da cessão do ``copyright'' pelo autor, pelo menos no caso da coletânea ``Lecture Notes of Computer Science''. O autor retêm o importante direito de publicar o trabalho na teia, na sua página pessoal, onde o mesmo pode ser livremente consultado e copiado, caso o autor assim deseje [29]. Mais um passo na direção de adequar as práticas de propriedade intelectual aos tempos da Internet.