SICI ADRIANA ROSA
A se crer no que rezam os intelectuais, que vêem no
computador a tábua de salvação da precária
educação pública no país, a inclusão
digital é a mais nova primeira necessidade do brasileiro.
Enquanto forjam um processo que pretende “democratizar”
a informática, pode estar surgindo daí um novo
grupo de excluídos: os brasileiros que, apesar das
precárias condições de vida que enfrentam
cotidianamente, são colocados agora diante de uma nova
necessidade, a de dominar o computador para sobreviver.
Desde que começaram a ser instalados computadores nas
escolas públicas de ensino fundamental, em 1997, uma
seara de autores referenda a crença do governo, mesclada
a teorias construtivistas, de que a informatização
da educação é essencial para o desenvolvimento
do aprendizado e a integração dos alunos com
o mundo.
Várias medidas têm sido adotadas para a implantação
da chamada “democratização da informática”,
e o governo federal conta, inclusive, com um Programa Brasileiro
de Inclusão Digital. Neste programa estão previstos
projetos como o PC Conectado, que pretende levar o computador
à casa de famílias carentes, e o Casa Brasil,
que vai criar centros multimídia para o acesso das
classes D e E à informática. É neste
cenário que todas as vozes parecem ecoar em uníssono.
Menos uma. A de Valdemar W. Setzer.
O bardo anti-revolução das máquinas é,
inusitadamente, um engenheiro eletrônico formado no
ITA. Já escreveu livros sobre linguagens de programação,
teoria e construção de compiladores, bancos
de dados, computadores na educação e o uso da
Internet, e tem, ainda, um currículo admirável:
doutor pela Escola Politécnica da USP e livre-docente
do Instituto de Matemática e Estatística, ele
foi professor assistente na Universidade do Texas, nos Estados
Unidos, e professor visitante da Universidade de Stuttgart,
na Alemanha. Aposentou-se como professor titular do Departamento
de Ciência da Computação da USP, mas,
como ele mesmo gosta de frisar, está “aposentado,
mas não encostado”, e continua a dar aulas e
orientar teses.
Com a propriedade de quem indubitavelmente conhece o tema
do qual está tratando, Setzer condena o uso de computadores
por crianças, na escola ou em casa, antes de concluírem
o segundo grau. Seu livro mais recente, Meios Eletrônicos
e Educação, Uma Visão Alternativa (Editora
Escrituras, 288 páginas) é obra rara entre as
de tantos teóricos e pensadores que endossam a informatização
da educação. Setzer acusa o computador de ser
uma máquina de simular pensamentos restritos, que apenas
executa instruções ou comando, enquanto o pensamento
humano contém infinitamente mais do que o que é
utilizado para simular a execução de um programa.
Segundo ele, essa relação não pode ser
benéfica para uma criança, pois lhe impõe
um raciocínio lógico-simbólico para o
qual ela ainda não possui maturidade. Nesta entrevista
concedida por telefone ao Jornal Opção na quinta-feira,
10, Valdemar Setzer declara que a educação não
precisa ser informatizada, mas humanizada, e explica, entre
outras coisas, por que o uso do computador por crianças
não irá ajudá-las futuramente a se inserirem
no mercado de trabalho.
É praticamente consenso entre os educadores que
a criança que domina a informática terá
maior facilidade de, futuramente, se integrar a um mercado
de trabalho cada vez mais informatizado. Como o sr. avalia
essa visão pedagógica?
É uma falácia total, isso é conversa
de vendedor de hardware, vendedor de software, e de escola
que está vendendo vaga ou, então, de uma escola
ignorante, que não está sabendo o que está
fazendo. Isso é fruto de ignorância, ou fruto
de mercenarismo, tanto dos vendedores quanto das escolas.
Pegue o seu próprio exemplo. Você provavelmente
não usou computador quando era criança. O que
não a impede de usá-lo agora. Nenhum dos meus
quatro filhos teve acesso a computadores na infância.
Hoje, um deles, de 32 anos, é diretor da Oracle, uma
das principais fabricantes de software do mundo. Por que começar
quando criança, se o computador está cada vez
mais fácil de ser usado?
É comum que professores de escolas públicas
não tenham computador em casa e, portanto, ainda não
saibam usá-lo. Muitos desses professores têm
um primeiro contato com o computador nos programas de informatização
das escolas e, muitas vezes, são orientados pelos próprios
alunos. Isso não pode diminuir a autoridade do professor
diante dos alunos?
Eu nunca tinha pensado nesses termos, é uma novidade
para mim. Seymour Papert [matemático e informaticista]
acha isso uma maravilha, isto é, que os alunos acabem
mostrando aos professores uma porção de coisas
que eles próprios, os professores, ainda não
tinham pensado. Agora, quando o professor não sabe
nada, de fato, pode surgir um problema de autoridade. Eu nunca
tinha pensado nisso, mas é um fator a mais para se
dizer que o computador traz problemas. Os alunos vão
sentir-se superiores aos professores: "Nós sabemos
e vocês não sabem, o que é que vocês
estão fazendo aqui na nossa frente?" Estou de
acordo que isso possa trazer problemas educacionais, porque
o aluno vai desconsiderar o professor. Agora, não sou
contra que se ensine aos professores a usar um computador.
A solução para esse problema é ensinar
os professores antes que os alunos tenham acesso a esses computadores.
Enquanto os professores não souberem bem, os alunos
também não devem usar o computador na escola.
Em algumas escolas, enquanto os professores não
recebem treinamento de capacitação para usarem
o computador como um instrumento pedagógico a mais
em suas aulas, os computadores são usados livremente
pelos alunos para pesquisas na Internet. Como o sr. avalia
isso?
Esse negócio de pesquisa na Internet é um absurdo.
Talvez no ensino médio isso até seja possível,
mas o que está acontecendo é que o jovem entra
na Internet, procura alguma coisa, acha, copia, imprime, põe
no trabalho e o professor acha uma maravilha. O aluno nem
leu. Está acontecendo isso, já faz tempo. Sabemos
que os professores estão aceitando essas coisas e não
se sabe se o aluno aproveitou algo ou não.
Por isso o sr. defende que o uso da Internet pela criança
deve ser restringido ou controlado pelos pais e pela escola?
O uso da Internet deve ser evitado. Mas quando isso não
for possível, deve ser orientado. Toda educação
deveria ser orientada, não tem sentido existir uma
educação libertária, na qual o aluno
decide o que vai achar, o que vai procurar. Quando se propõe
uma pesquisa ao aluno, esse trabalho deve ser orientado, o
professor deve indicar quais livros ou quais sites devem ser
consultados. Deveria ser assim, como era antigamente: os professores
recomendavam, indicavam livros etc. Não se pode deixar
completamente em aberto. As crianças e jovens não
têm discernimento para saber o que é adequado
ou não para idade deles. Existe um problema de maturidade,
e existe um problema de adequação ao assunto.
Como é que uma criança pode saber o que é
adequado, se não for orientada? A Internet está
favorecendo a introdução de uma educação
libertária. Sou totalmente contra a educação
libertária. As crianças e os jovens necessitam
de orientação, a educação devia
ser orientada, e não libertária. Uma criança
ter a possibilidade de fazer o que quiser, de usar computador
do jeito que quiser, é um absurdo.
O governo federal está lançando o programa
PC Conectado, que pretende levar o computador para famílias
carentes do país, assim como o programa Casa Brasil,
que vai criar centros multimídia para acesso das classes
D e E à informática. Como o sr. avalia essas
iniciativas?
Em face da fome, da miséria, da prostituição
infantil e juvenil, da falência total do ensino público,
qualquer programa que envolva gastos com instalação
de computadores para crianças e jovens ou mesmo para
famílias carentes é obsceno. Além disso,
vai acabar prejudicando as pessoas e as famílias.
Em seu livro, o sr. diz, sobre não permitir que
a criança assista à TV, que “o importante
é que os pais estejam plenamente conscientes dos efeitos
negativos da TV” e que, “quando os pais tomam
uma posição firme, baseada em conhecimento,
os filhos, em geral, admitem a situação sem
problemas”. Isso se aplica a famílias de classes
populares, levando em conta que a luta pela sobrevivência
impede esses pais de acompanharem a formação
de seus filhos?
Esse é um problema muito sério. Tudo isso é
uma questão que envolve educação escolar,
para aqueles que têm alguma escolaridade, porque temos
no Brasil um problema sério de educação.
Se as escolas discutissem os problemas, as pessoas seriam
pelo menos advertidas de que existem falhas na educação,
e elas talvez pudessem tomar uma atitude, mas infelizmente
não existe nada e, principalmente, não existe
nenhuma intenção de se chamar a atenção
para a questão dos meios eletrônicos, principalmente
da televisão. As críticas feitas à televisão,
em geral, se referem aos programas. As pessoas ficam pedindo
programas melhores, mais educativos. Eu sou o único
que digo que o aparelho é que é o problema,
a televisão não é um veículo adequado
de comunicação, ela tira a liberdade do indivíduo
e o condiciona, ao invés de informar e educar. Há
um problema intrínseco, o que acontece é que
a televisão virou parte do sistema capitalista, e é
quase impossível que se consiga alguma coisa, no sentido
de evitá-la, por isso acho que essa análise
deve ser uma questão individual. Se pelo menos dez
pessoas reagissem contra a televisão, já seria
ótimo. Eu me dirijo aos indivíduos, não
me dirijo às massas. Ainda mais porque para me dirigir
às massas eu teria que fazer propaganda do meu trabalho,
e sou contra propaganda, isso feriria a liberdade das pessoas.
Então, nesse caso não haveria como alertar
as classes populares para as armadilhas dos meios eletrônicos
na educação.
Uma maneira de alertar as pessoas seria colocar à disponibilidade
do público a informação sobre as questões
que envolvem os meios eletrônicos na educação,
e isso não está sendo feito. Agora, não
sei se essa disposição irá, fato, atingir
as pessoas das classes C e D. Talvez não atinja. Então,
o que poderia ser feito? A solução possível
seria a educação escolar, só que as escolas
também não estão interessadas.
Nem mesmo as escolas particulares?
As escolas particulares não estão interessadas,
elas estão interessadas em vender vagas, qualquer coisa
que venda vaga, para elas, é ótimo. São
raríssimas as escolas que não têm essa
intenção, existem escolas sem fins lucrativos,
claro. Mas no Brasil, de maneira geral, escola é um
grande negócio, o que é um absurdo, educação
não devia ter fim lucrativo. Não sou contra
escolas particulares, sou contra a exploração
da escola com fins lucrativos.
O parágrafo 1º do artigo 13 da Convenção
da ONU sobre os Direitos da Criança declara: “A
criança terá o direito à liberdade de
expressão; este direito incluirá liberdade para
procurar, receber e partilhar informações e
idéias de todos os tipos, independentemente de fronteiras,
oralmente, por escrito ou na forma impressa ou de arte, ou
através de qualquer outro meio de escolha da criança”.
O sr. concorda?
Isso é um absurdo. Absurdo completo. A criança
não tem capacidade de discernir o que é bom
e o que é ruim para ela. Não tem sentido que
as crianças façam essa escolha, são os
pais e a escola que devem fazer a escolha. Só quando
o jovem passar da puberdade, depois dos 14 anos, é
que se deveria deixar para ele a possibilidade de escolha
e, ainda assim, com certos limites, senão os jovens
vão virar todos uns drogados. Esse item deveria conter
uma ressalva de que a partir de uma certa idade, a idade adequada,
a criança poderia ter possibilidade de escolha. Não
a criança, mas o jovem. A criança que tem capacidade
para esse tipo de discernimento já perdeu a infância,
e isso é uma tragédia. Uma das coisas que estão
acontecendo de trágico no mundo é que as crianças
estão perdendo a infância.
Um dos argumentos dos defensores do uso do computador na
educação infantil rebatidos pelo sr. é
que o aluno aprende no seu próprio ritmo, sem medo
de repreensão ou nota baixa. O sr. acha saudável
a criança ser repreendida?
Claro, na hora correta e na medida certa, com amor. A criança
deve e quer ser guiada. Isso envolve o que ela deve aprender;
uma criança ou mesmo jovem não tem capacidade
para determinar o que deve aprender e em que ritmo.
Seymour Papert afirma que está “absolutamente
ciente do atual poder do computador interativo e de como seu
uso pode influenciar a maneira como pensamos sobre nós
mesmos”, aliando ao uso da informática o conceito
de construtivismo, o que justificaria, inclusive, o uso do
computador pelo aluno antes que o professor seja capaz de
orientá-lo. Trata-se, segundo ele, do conhecimento
em construção. Qual a sua opinião sobre
isso?
O computador influencia, sim, na maneira de pensarmos sobre
nós mesmos, mas negativamente. O construtivismo virtual
do computador não se compara ao de uma criança
brincando com brinquedos rústicos, por exemplo, como
uma boneca de pano, um carrinho de madeira, etc.
Quais podem ser as conseqüências do uso da informática
e, sobretudo, da Internet na educação básica
do país?
|
"O ensino deve deixar de ser tão
abstrato, e passar a ser mais humano. Não deveria
haver ensino formal antes dos 6 ou 7 anos" |
A educação básica
vai piorar do ponto de vista humano, como está acontecendo.
Os resultados são negativos. Tenho resultados de pesquisas
mostrando que, quando se introduz computador na educação,
as crianças começam a ter problemas de aprendizado
em várias disciplinas, ou então não existe
nenhuma melhora. E não é um problema só
do Brasil.
Antes de introduzir o computador nas escolas e disseminá-lo
na sociedade, não seria necessário cuidar de
outras questões muito mais básicas, inclusive
no campo educacional, como a criação de bibliotecas
nas escolas e, também, bibliotecas públicas?
Isso mesmo. Mas penso que, nem mesmo depois disso, deve haver
lugar para os computadores no jardim da infância ou
no ensino fundamental. No ensino médio, sim, para ensinar
o que se pode fazer com um computador e criticar os seus efeitos
negativos.
O pensador italiano Giovanni Sartori escreveu um opúsculo,
Homo Videns, em que condena o culto da imagem vivido pela
contemporaneidade. Segundo ele, o jovem está deixando
de ser homo sapiens para tornar-se homo videns. Ele sustenta
que o pensamento ditado pelo mundo da imagem é efêmero,
com pouca profundidade. O sr. concorda?
É muito pior do que isso: é condicionante, e
não informativo ou educativo. Veja qualquer programa
de TV e verifique se há qualquer profundidade; um programa
com profundidade será considerado “chato”
pelos telespectadores, pois o aparelho não é
adequado a esse tipo de transmissão. Tudo tem que virar
“show”.
Que avaliação o sr. faz do sistema Logo,
criado por Seymour Papert e aplicado pela esmagadora maioria
das escolas brasileiras?
O Logo é um absurdo completo, porque, para uma criança
aprender usar o Logo, ela tem que aprender programação,
já que Logo é uma linguagem de programação.
E isso é um absurdo, porque força ao máximo
que a criança tenha um raciocínio lógico-simbólico.
Quando usam o Logo, o que as crianças estão
fazendo é aprendendo a programar. Isso é um
absurdo que não tem tamanho, a criança senta
e digita: “direita 90”, mas ela não sabe
o que é aquele 90, porque nessa linguagem não
está escrito “90 graus”. Está escrito,
por exemplo, “para frente 10”, não está
escrito 10 centímetros ou o que for. São apenas
comandos e isso vai contra a noção de que existe
uma unidade na física, a criança nem sabe do
que se trata, ela sabe apenas que 90 resulta um ângulo
reto, mas ela não sabe o que significa aquilo. Isso
já foi comprovado. E o Logo tem ainda um outro problema
muito mais profundo: ele faz uma indução finita,
sem base em termos matemáticos, em procedimentos recursivos.
Mas o mais grave é que está se forçando
a criança a aprender uma linguagem de programação
e a pensar, ao máximo, de uma maneira lógica,
o que não é próprio de uma criança.
Isso é próprio de adultos, seria ótimo
se todos os adultos pudessem pensar dessa maneira de vez em
quando.
Muitas escolas criam projetos educativos em que as crianças
desenham e pintam seus nomes em programas de desenho do computador,
como forma de desenvolver a auto-estima. O sr. acha interessante
esse projeto?
Não acredito no uso do computador como instrumento
artístico. Tudo que se passa no computador tem de ser
matematicamente bem definido. Então quando a criança
faz um desenho, ou mesmo um nome, é preciso usar os
pixels, ou então ela pega o mouse e faz o movimento,
que nunca fica muito bom, porque esse movimento exige mais
coordenação motora do que quando se usa um giz
de cera ou um pincel, por exemplo. Mas nesses dois casos,
existe uma nuance das cores, da intensidade, que não
é calculada. No computador é tudo calculado,
cada pontinho daqueles tem três cores básicas,
o red, green e blue (RGB), ou vermelho, verde e azul, e cada
cor é feita pela combinação da intensidade
dessas três cores, de 0 a 255 tonalidades. Ou seja,
é tudo matemático, ao passo que usando um pincel
não existe nada matemático. Na hora em que a
tinta secar, a cor vai ficar diferente. O próprio Seymour
Papert, em seu livro Mindstorms, compara uma flor feita com
giz de cera com uma flor feita usando o programa Logo. A flor
do Logo é uma caricatura de flor, é tudo igualzinho,
todas as pétalas vão se sucedendo com o mesmo
ângulo. Se ao lado, na mesma página, há
uma flor feita com giz de cera, essa flor terá uma
infinidade de nuances diferentes, pois a criança, quando
desenha, não faz tudo da mesma maneira. O que se percebe
é que um desenho é artístico e o outro
é absolutamente morto, não tem vida. A arte
tem sempre que ter um elemento inconsciente; se a arte se
torna totalmente consciente, ela vira ciência. E quando
se faz um desenho no computador, tudo fica internamente calculado,
é transformado em matemática, além disso,
não há nuances ou elementos inconscientes como
quando se faz arte de verdade. Na arte há variação,
flexibilidade, há vida. No computador tudo fica igual,
da mesma cor.
E se tolhe a criatividade da criança?
Sem dúvida. E qual é a utilidade disso? Se é
para a criança aprender a escrever o nome e reforçar
sua auto-estima, por que não aprender com giz de cera,
num desenho bonito que ela mesma faz, num processo que, inclusive,
ela pode compreender? A criança não pode entender
o que está se passando no computador. Isso não
significa que ela não é capaz. Nada disso. O
computador é um grande mistério também
para muitos adultos, para aqueles não são da
área da computação. O usuário
comum não sabe como é que o computador funciona,
por que o cursor se move na tela quando se movimenta o mouse.
Isso é mistério para a maioria. Uma criança
deve ter contato com a realidade, que ela pode compreender
também pela intuição. Quando uma criança
joga uma bola e a outra pega, nenhuma delas calculou a trajetória,
mas elas compreendem, intuitivamente, que a bola faz uma certa
curva no ar, prevêem onde ela cairá. Já
o computador coloca a criança em contato com algo que
não é real e, sim, virtual. Por que a criança
precisa aprender uma coisa virtual? Não há nenhuma
necessidade de a criança aprender a usar o computador,
isso acontecerá sem nenhuma dificuldade quando ela
for adulta. Insisto nesse ponto, que considero muito importante:
não há nenhuma necessidade de a criança
aprender a usar o computador, não há nenhuma
necessidade de a criança ver televisão, não
há nenhuma necessidade de a criança jogar videogame.
O sr. defende uma mudança radical e necessária
no ensino. Que mudança é essa?
O ensino deve deixar de ser tão abstrato, e passar
a ser mais humano. Além disso, a ênfase deve
deixar de ser o desenvolvimento intelectual, principalmente
matemático e lingüístico (mal e mal!) para
dar-se uma ênfase maior nas artes e no artesanato, principalmente
no ensino fundamental. Além disso, não deve
haver nenhum ensino formal antes dos 6 anos e meio ou dos
7 anos, como, por exemplo, a alfabetização precoce.
Como a comunidade pedagógica da USP recebe suas
idéias?
Ignora. Eu jamais fui convidado para dar uma palestra. Eles
não querem ouvir por quê? Professor universitário,
principalmente na USP, só sobrevive fazendo pesquisa.
Hoje, nas universidades, não se dá importância
ao aspecto didático, o que é importante é
a pesquisa. A carreira da universidade é feita baseada
na pesquisa, nos trabalhos, nos livros que o sujeito publicou.
É assim que é feita a promoção
na Universidade de São Paulo e nas outras universidades
estaduais ou federais. Acontece que a moda é a tecnologia,
então o sujeito quer fazer uma pesquisa, ele precisa
de verba para pagar os seus estudantes, até talvez
para receber ele mesmo alguma coisa. Então, ele vai
fazer uma proposta na área tecnológica, e aí
vai receber mundos e fundos, porque a mania no mundo inteiro
é de que a tecnologia vai salvar o mundo. É
exatamente o contrário. É lógico que
existem exceções como, por exemplo, a medicina,
que se casou com a oficina mecânica e o casamento foi
perfeito. Tenho, ao invés de cristalino natural, duas
lentes de plástico nos olhos que me permitem enxergar
muito bem. Fantástico! Não estou dizendo que
é tudo ruim, o que estou dizendo é que precisa
haver critério. Existe uma mentalidade de que quanto
mais alta a tecnologia melhor. Então, os pesquisadores
que fizerem um projeto de pesquisa com o computador na educação
recebem quanto dinheiro quiserem. Agora, vai fazer um projeto
sobre ensino humanista — não vai receber um tostão.
Por isso acabam embarcando nessas coisas, para sobrevivência
deles.
O sr. admite que é difícil manter a criança
afastada dos meios eletrônicos. É possível
amenizar os efeitos desse contato?
Se um pai acha que é essencial que a criança
use a Internet, deve ficar ao lado dela, porque a criança
não tem discernimento para saber o que é adequado
ou não para a maturidade dela. Por exemplo, a criança
ouviu falar do buraco na camada de ozônio, foi lá
no Google [site de busca na Internet] e digitou “buraco
na camada de ozônio”, então vem o resultado,
um artigo sobre o problema. Ela lê aquele artigo, fica
apavorada e não sai mais de casa. Porque ela não
tem maturidade para julgar o que leu. Os pais têm de
estar ao lado, o professor tem de acompanhar. Não se
pode permitir que a criança, em casa ou na escola,
use sozinha a Internet. Se é para se usar, então
é preciso haver orientação e acompanhamento.
Senão, o que acontece? As crianças acabam sempre
entrando em sites pornográficos. É isso que
a escola deveria fazer? É isso que o lar deveria fazer
com a criança? Deturpar completamente sua mentalidade?
Permitir esse avanço nocivo? Os meios eletrônicos
aceleram o desenvolvimento, e isso é muito ruim. As
escolas que estão usando o computador na educação
e as pessoas que estão fazendo propaganda disso, promovendo
o uso do computador, não têm dados que mostram
que isso é útil. No fundo, não conhecem
o computador, não sabem o que ele é capaz de
fazer com o usuário e, sobretudo, quais os seus efeitos
sobre o desenvolvimento da criança. Por isso, nem lhes
passa pela cabeça que o computador possa ser ruim.
Mas as pesquisas que estão sendo feitas no mundo inteiro
estão mostrando que o computador acaba prejudicando
o rendimento escolar.
[Adendo. Infelizmente, durante
e entrevsita, não respondi completamente essa última
pergunta. Existe, sim, um meio extremamente eficaz para se
"amenizar os efeitos desse contato": são
as atividades artísticas e artesanais. Quando se faz
arte (sem o computador!) ou artesanato, deve-se exercer um
pensamento que não é formal e bem definido,
precisamente o contrário do que o computador força.
Deve-se usar fantasia, que é o contrário do
que o computador faz, já que ele prejudica a fantasia
a e a criatividade, que devem ser exercidas em ambientes informais
e reais, e não formais e virtuais como os dos computadores.
Por exemplo, a tinta e o pincel, a madeira que deve ser trabalhada,
a interação com outras pessoas no teatro, são
todos elementos não-formais impregnados de realidade.
Crianças e jovens que usam o computador, jogam joguinhos
eletrônicos ou assistem TV (atanção: nada
disso é necessário!) deveriam fazer intensamente
atividades artísiticas para compensar os estados mentais
que esses aparelhos impõem. Para mais detalhes, leiam-se
em meu site http://www.ime.usp.br/~vwsetzer os artigos
sobre a arte como atídoto ao pensamento computacional
(em inglês) e sobre o computador como instrumento de
anti-arte (em inglês ou português). Infelizmente,
a mentalidade imperante hoje no ensino acabou com as antigas
disciplinas Trabalhos Manuais e Canto Orfeônico (esta
última, introduzida por Villa Lobos), que ainda na
década de 1950 eram obrigatórias nas séries
correpondentes às 5a. a 8a. de hoje. Naquela época
ainda havia a intuição e a tradição
de que artes e artesanato eram essenciais para uma formação
completa do jovem. A mentalidade cientificista imperante hoje
em dia infelizmente acabou com essa visão. Quanto mais
tecnologia no ensino, melhor acha-se que ele é. Mas
o resultado disso tem sido desatroso em todos os países.
É urgente tornar o ensino mais humano. VS]
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