Ateu ou materialista?
Comentários sobre duas crônicas de Leandro Karnal
Valdemar W. Setzer
www.ime.usp.br/~vwsetzer
21/10/17
Estes comentários foram escritos inicialmente como e-mail
para Leandro Karnal, mas como não consegui o endereço dele,
inseri em meu site, com a esperança de poder enviar o endereço
desta página para ele.
Leio as crônicas dele com muito interesse, pois não há
nenhuma em que eu não aprenda algo. Neste texto, vou comentar duas
delas, "A cabeça do ateu" (O Estado de São
Paulo de 1/10/17, p. C7, que abreviarei por CDA) e "A bênção,
padre Fábio" (11/10/17, p. C8, BPF). Elas estão copiadas
depois deste texto; uma busca nesta página com algum trecho das
citações pode localizá-lo nas crônicas, onde
se econtram os endereços dos originais.
1. Em primeiro lugar, o uso da palavra "ateu". Ela e
suas derivadas ocorrem 15 vezes em ACA e 7 vezes em BPF, donde se conclui
que ela é importante para o autor.
2. Numa dessas ocorrências, ele se declara ateu: "Aturdido,
pergunto se ela sabe que sou ateu" (BPF).
3. A definição dos dicionários para "ateu"
é, tipicamente, "aquele que nega a existência de Deus
ou deuses", como por exemplo em
www.dicio.com.br/ateu/
No Aurélio, 1ª edição, a definição
é "Diz-se daquele que não crê em Deus ou nos deuses."
4. Quero chamar a atenção para o fato de que, ao
alguém declarar-se ateu, está dizendo algo que não
tem sentido, é vazio. De fato, quando eu digo "eu nego (ou
não creio) que amanhã vai chover", essa minha frase
é perfeitamente compreensível, pois se entende claramente
o que quero dizer, já que "amanhã" e "chover"
são compreensíveis. No entanto, Karnal não consegue
explicar o que entende por "Deus" ou "deuses". Aliás,
não está sozinho nesse problema: hoje em dia essas palavras
perderam completamente seu significado. Examine-se meus artigos em meu
site: apesar de eu ser espiritualista, jamais uso as palavras "Deus"
e "deuses".
5. De fato, ele diz em CDA: "A concepção de
Deus responde a quase tudo. As perguntas encontram respostas para o crente:
origem das coisas, sentido da vida, moral, (sic) etc." Note que o
tal crente não consegue explicar como Deus criou as coisas, qual
afinal é o sentido da vida, o que é a moral. (Eu distingo
ética, que é corporativa, comunitária, da moral,
que é individual.) Muito menos ele mesmo consegue explicar, pois
tudo isso não deve lhe fazer sentido, como explico adiante, apesar
de reconhecer que "[...] a origem do universo é um argumento
forte [...]" De fato, as origens da matéria e da energia no
universo não fazem sentido físico. É um dos argumentos
que uso em favor do espiritualismo. A propósito, os limites do
universo também não fazem sentido físico.
6. Jamais uso a palavra "ateu". Acho muito mais adequada
a denominação "materialista" ou "fisicalista",
referindo-se a alguém que tem, idealmente como hipótese
de trabalho e não como crença, a concepção
de mundo de que só há matéria, energia e processos
físicos no universo. Assim, parece-me que muito melhor teria sido
Karnal denominar-se "materialista" e não "ateu".
Curiosamente, como costumo dizer, materialista é uma pessoa que
vive e trabalha em um edifício que não tem o andar térreo,
pois a física não sabe o que é a matéria.
Por exemplo, o elétron não é uma bolinha e não
gira em torno do núcleo, como muita gente aprendeu erradamente.
7. No CDA ele se refere duas vezes aos agnósticos. Agnosticismo
é a concepção de que o que é metafísico
não é acessível, isto é, admite-se apenas
o que pode ser percebido com nossos sentidos ou detectado por intermédio
de máquinas. Também não gosto dessa denominação.
Afinal, um agnóstico não percebe os seus pensamentos com
seus sentidos, e sim com o próprio pensar. A rigor, ele não
deveria admitir a existência de seus pensamentos, de seus sentimentos
e de sua vontade, pois ele também não os percebe com seus
sentidos. Não há explicação física
para essas atividades interiores. Não deveria admitir nem mesmo
sua memória, pois não se sabe como algo simples como a representação
2 do número dois está armazenada em nós e como se
faz acesso a ela. A propósito, tomem-se todas as possíveis
representações simbólicas do dois, como 2, II, ii,
.., :, dois, due, deux, dos, two, dva, shtaim, duas vacas etc. Agora tome-se
o que há de comum entre todas as possíveis representações
do dois: trata-se de um conceito puro, que não tem representação
simbólica e, portanto, não pode estar armazenado fisicamente
dentro de nosso corpo. No entanto, trabalhamos mentalmente com esse conceito,
em particular na matemática. Essa é mais uma evidência
para eu ser espiritualista: a memória não é física,
e podemos trabalhar mentalmente com coisas que não têm representação
física. Esse é o caso de todas as figuras geométricas
ideais, como uma circunferência – jamais alguém viu
uma perfeita. Aliás, muitos neurocientistas estão reconhecendo
que a memória é ilimitada: ninguém teve a vivência
de querer memorizar um número de telefone ou o nome de alguém
e sentir que não há mais "espaço" para
isso. Se a memória é ilimitada, ela não pode ser
física.
8. Além de ateísmo e agnósticismo, em CDA
Karnal menciona o ceticismo (em relação a Protágoras).
Ceticismo é uma atitude cientifica e intelectualmente sadia, e
deveria ser aplicada a tudo, inclusive às religiões. No
entanto, muitos dos que se denominam céticos são na verdade
materialistas, como por exemplo Michael Shermer, responsável da
coluna mensal "Skeptics" da revista Scientific American. Ele
ridiculariza qualquer coisa que tenha a ver com espiritualidade.
9. Além dos ateus, agnósticos e céticos à
la Shermer, eu classifico como materialistas os positivistas. Parece-me
que todas essas denominações tentam esconder o que os materialistas
ou fisicalistas realmente são: pessoas que negam existência
de qualquer coisa que não seja a matéria, a energia e processos
físicos.
10. Eu respeito os materialistas coerentes. Eles estão muito
bem na onda do pensamento moderno, que em minha opinião deveria
começar a ser abandonada. A maioria, senão quase todos os
cientistas e intelectuais são materialistas e a ciência usa
exclusivamente métodos materiais. Sua concepção de
mundo coloca os materialistas com o pé bem no chão (material...).
Mas aquela coerência leva necessariamente a certas conclusões.
Por exemplo, o materialista deveria negar o livre arbítrio, que
não tem sentido do ponto de vista material: da matéria não
pode advir liberdade, pois ela segue inexoravelmente as "leis"
e condições físicas.
11. Eu tenho uma teoria de como algo não físico
pode atuar sobre o mundo físico: usando transições
não deterministas, isto é, escolhendo qual transição
física, entre várias possíveis, deve ser tomada.
Essa decisão não requer energia, pois não se passa
fisicamente; a transição em si, sim.
12. Em CDA Karnal escreveu "No sentido como o entendemos,
o ateísmo é derivado do iluminismo e do materialismo do
século 19." Eu acho que o materialismo começou efetivamente
em meados do século 18, por exemplo com o livro de La Mettrie,
"L'Homme-Machine", de 1748. Mas sua popularização
deu-se com Darwin no meio do 19. Antes do séc. 18 todos sentiam
que havia algo transcendental à matéria, seja por vivência
própria ou por tradição, em geral religiosa.
13. E por falar em materialismo e em tradição religiosa,
acho que justamente as religiões foram as grandes impulsionadoras
do materialismo. A sua atitude é dogmática, por exemplo,
quanto à virgindade da Maria (que claramente é um símbolo
para algo mais profundo, como o são as parábolas do Novo
Testamento ou os 7 dias da Criação), o celibatarismo, o
uso do solidéu pelos judeus religiosos, os horrores perpetrados
falsamente em nome do cristianismo e, principalmente, a falta de busca
por uma compreensão e o apelo para a crença. Essas atitudes
obviamente afastam quem, como ser humano moderno, quer compreender e não
acreditar, e não se satisfaz com imagens ou símbolos.
14. Muitos materialistas o são, com muita razão,
por medo de caírem na crendice, no dogmatismo e no misticismo,
pois é o que encontram por aí, especialmente nas religiões
instituídas. Têm medo de ter que abdicar de seu pensamento
claro e de sua busca por compreensão.
15. Ocorre que existe espiritualismo que procura compreender.
Acho que ele começou com Kardec (não sou espírita
e não acho que o mediunismo seja uma forma adequada para se obter
conhecimento do mundo espiritual, mas reconheço o valor inovador
de Kardec), continuou com a Blavatsky e teve seu pináculo com Rudolf
Steiner, em minha opinião ainda não ultrapassado. Este último
apresenta uma teoria espiritual extremamente abrangente, logicamente coerente,
que não contradiz fatos científicos (mas pode contradizer
certos julgamentos científicos) e com várias aplicações
práticas de sucesso, como a pedagogia Waldorf.
16. Em CDA Karnal fala do mal. De um ponto de vista espiritual
ele é perfeitamente compreensível: uma das missões
da humanidade é o desenvolvimento da liberdade. Se só houvesse
o bem, não poderíamos fazer escolhas e ser livres. Estaríamos
todos ainda na magnífica imagem do Paraíso bíblico,
como dizia meu sogro Rudolf Lanz, "Todos de bata cor de rosa tocando
lira, que chatice!" Para haver o mal, a divindade tinha que se retirar,
para deixar de nos guiar como acontecia na antiguidade muito remota, o
que é muito bem representado pelas imagens bíblicas, como
a da expulsão do Paraíso. Aliás, a ideia agostiniana
do Pecado Original bíblico está totalmente errada: é
só ler a Gênese com cuidado e verificar-se-á que antes
do contato com o mal o ser humano é descrito como não tendo
nem consciência nem autoconsciência. O que acontece imediatamente
depois de comerem do "fruto da árvore do conhecimento do bem
e do mal" (Gen 2:17)? "Os seus olhos se abriram" (3:7),
isto é, a humanidade adquiriu consciência (que os animais
também têm, em outro grau), e depois "viram que estavam
nus" (3:7), isto é, ela adquiriu autoconsciência. Note-se
que uma criança pequena tem autoconsciência em um grau muito
incipiente, por isso não sente vergonha, e normalmente só
começa a falar "eu" ao redor dos 3 anos de idade.
17. De um ponto de vista materialista, bem e mal não fazem
sentido. A matéria não tem moral, simplesmente é.
Aliás, a ciência baseada exclusivamente na matéria,
como é a ciência moderna, também é amoral,
pois moral, por ser individual, tem que necessariamente ser subjetiva,
a não ser que se baseie em conhecimento e não em sentimentos,
e a objetividade é um dos pilares da ciência. Por exemplo,
conhecendo-se que uma das missões do ser humano é o desenvolvimento
do livre arbítrio, conclui-se que não se deve interromper
esse processo em nenhuma pessoa, e portanto não se deve matar ninguém
(mas alguém perigoso para a sociedade pode ser confinado).
18. Expus essas e outras ideias em vários artigos que estão
em meu site. Karnal citou Richard Dawkins e seu livro Deus, um delírio
(essa tradução do título está errada, o original
é God, a delusion, "um engano"). Veja-se a minha
resenha desse livro, onde concordo com muitas coisas dele, em especial
várias críticas contra as religiões, mas não
concordo com muitos de seus pontos de vista. Pudera, Dawkins é
materialista e eu não sou!
www.ime.usp.br/~vwsetzer/review-the-god-delusion.html
Nessa resenha encontram-se várias de minhas concepções.
Pode ser lido salteado.
19. Outros artigos meus a respeito desses assuntos, copiando de
minha home page, seção Espiritualidade:
8.2 Artigo "Por
que sou espiritualista". Publicado em sua versão em inglês
na revista eletrônica Southern Cross Review, No. 55, Sept./Oct.
2007.
8.4 Artigo "Ciência,
religião e espiritualidade". Complementa e detalha alguns
tópicos do artigo 8.2, mas é independente do mesmo, devendo
ser lido em primeiro lugar.
8.6 Artigo "Consequências
do materialismo".
8.10 Artigo "Respostas
a 16 questões céticas sobre religião".
Em particular, o "Ciência, religião e espiritualidade"
mostra como a atual cisão entre ciência e religião, o que
Stephen Jay Gould chamou de NOMA, "Non-overlapping magisteria", pode
ser resolvida se ambas mudarem seus métodos.
20. Uma palavra sobre o que Karnal chamou em BPF de "anseio
ancestral de proteção". Essa visão de que os
seres humanos criaram as divindades por medo da natureza é uma
típica elucubração materialista. Curiosamente, segundo
essa interpretação toda a humanidade era medrosa, pois na
antiguidade toda ela era espiritualista. Uma outra interpretação
de um ponto de vista espiritualista, é que naqueles tempos a humanidade
ainda tinha uma percepção do mundo espiritual, pois originou-se
nele. Mais uma bela imagem da bíblia: "E criou Deus [no original,
os Elohim] o homem à sua semelhança", Gen. 2:27; como
a divindade não é física, essa criação
foi de um ser humano ainda não físico. Porém, na
antiguidade remota não havia o intelecto capaz de compreender as
vivências e expressá-las conceitualmente, de modo que as
expressões eram feitas em forma de imagens, de símbolos.
Aos poucos a humanidade foi perdendo o contato com o mundo espiritual,
passando a ter dele meras recordações e tradições.
Em compensação, foi desenvolvendo um pensar claro e conceitual.
Por isso a partir de um certo ponto nessa queda na matéria, começou-se
a criar imagens do seres divinos com todas as características humanas,
como na mitologia grega. Qualquer interpretação do mundo
espiritual com as características físicas está errada,
como no trágico livro do Chico Xavier Nosso lar, onde no
mundo espiritual ocorrem ministérios, veículos de transporte,
hospitais, transmissões radiofônicas, bônus por horas
extras de trabalho etc. ad nauseam. Hoje em dia é possível
observar conscientemente o mundo espiritual e transmitir essas vivências
conceitualmente, como o fez Rudolf Steiner. Para isso é preciso
desenvolver adequadamente órgãos de percepção
suprassensível que estão latentes em todos os seres humanos,
e um intelecto sadio capaz de conceituar.
21. Finalmente, nada do que escrevi exige crença, fé
ou religião.
+ + + + + + + +
AS DUAS CRÔNICAS
A cabeça do ateu [CDA]
http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,a-cabeca-do-ateu,70002021758
O complicado, ultimamente, não é crer ou não
crer em Deus. O difícil é crer no homem.
Leandro Karnal, O Estado de S. Paulo
01 Outubro 2017 | 03h00
Acho estranha a palavra ateu. Ela deriva do grego e significa a negação
de Deus ("a" significa negação e "theos" deus).
Como toda definição, ela fala mais dos valores da pessoa que a
utiliza do que sobre o alvo do termo. Seria como definir a mim, Leandro, como
não asiático ou não peixe. Conhecer pela negação
é problemático.
A concepção de Deus responde a quase tudo. As perguntas encontram
resposta para o crente: origem das coisas, sentido da vida, moral, etc. Deus
é a hipertrofia da racionalidade, porque tudo se torna lógico
com Ele. Mesmo não construindo um campo empírico irrefutável,
o religioso pode responder a quaisquer desafios. O crente sabe sobre a origem
das coisas (teogonia) e questões do bem e do mal (teodiceia). No campo
religioso, há resposta para uma inocente criança natimorta e para
um vilão nonagenário atuante. Uma mulher extraordinária
como dona Zilda Arns morre em um terremoto? Há explicação.
Um político corrupto recupera-se de um câncer? Também encontramos
na fé a elucidação do enigma ou o reconhecimento de caminhos
insondáveis para mim e acessíveis ao Ser Supremo.
Um ateu tem menos respostas do que um religioso. Porém, ao eliminar
a hipótese Deus, ele comete mais do que uma restrição metodológica.
A voz que nega a existência de divindade(s) é lida como negadora
de todo o fundamento moral e social. O edifício social cimenta-se com
crenças e Deus é o fiador do sistema.
Protágoras de Abdera, famoso filósofo grego clássico,
sofreu um processo em plena guerra do Peloponeso. Seu tratado Sobre os Deuses
afirma que "não posso saber se existem ou não". A dúvida
de Protágoras nasce de duas posições. A primeira é
sofista: relativização das verdades absolutas. A segunda é
seu antropocentrismo radical: o homem é a medida de todas as coisas.
O ceticismo de Protágoras é muito mais agnóstico do que
ateu. Ele duvida se podemos saber algo sobre os deuses, não exatamente
a negação da existência deles.
As ideias de Protágoras não eram uma novidade na Atenas do quinto
século antes da era cristã. A novidade é a perseguição:
seus livros foram queimados e ele foi expulso da cidade. O Estado começava
a alcançar quem duvidava dos deuses oficiais. Similar e contemporâneo
foi o processo contra Anaxágoras de Clazômena (foi professor de
Péricles) que buscava causas naturais para os fenômenos como terremotos
e raios. Não sabemos ao certo se ele foi morto, preso ou exilado. A democrática
cidade-Estado se abalava com ideias de agnosticismo ou ateísmo. O grande
Sócrates viveria também a acusação de impiedade.
A vitória do Cristianismo na Europa Ocidental fez um refluxo do ateísmo
ou do seu registro. Multiplicam-se anticlericais ao longo do milênio seguinte,
escasseiam ateus e agnósticos. Muita gente não gosta de padres,
freiras ou da instituição Igreja. Poucos, quase ninguém,
duvidam da existência de Deus. Na verdade a acusação de
hereges é sempre que a instituição da Igreja Católica
não corresponde ao verdadeiro propósito divino. A heresia, como
a dos cátaros ou valdenses, quase sempre, é um reforço
da crença em Deus e acusação contra o abandono do divino
pelo papado ou seus representantes.
Lucien Febvre, em uma obra clássica sobre a descrença e a obra
de Rabelais, afirmava que era quase impossível existir um ateu até
o Renascimento, porque não havia nem palavras ou estruturas mentais para
comportar a negação de Deus. Anos depois, essa tese caiu por terra,
mas ainda é certo dizer que o ateísmo rareou muito até
o século 16.
Com o avançar da modernidade, emergem pensamentos claramente ateus,
como o Barão D'Holbach e, posteriormente, o filósofo Ludwig Feuerbach.
No sentido como o entendemos, o ateísmo é derivado do Iluminismo
e do materialismo do século 19.
Já abordei outras vezes o que pode levar alguém ao ateísmo,
caso tenha crescido crente. Existem muitos tipos de ateus. Um abunda entre jovens:
o negador de Deus que faz da ideia uma cruzada contra pais (religiosos) e instituições.
O ataque é uma plataforma contra a autoridade. Há o ateu em relação
que questiona o mal. Assim como a origem do universo é um argumento forte
para religiosos, a presença do mal em um mundo no qual tudo foi criado
por Deus e nada existe sem seu consentimento é um bom ponto para céticos
da já citada Teodiceia. Partem do argumento do filósofo Epicuro:
"Quer impedir o mal, mas não é capaz? Então ele é
impotente. Ele é capaz, mas não está disposto? Então,
ele é malévolo. Ele é capaz e disposto? Donde vem então
o mal?".
Há ateus da revolta. São os que pediram com intensidade pela
cura de um filho, pelo fim de um problema grave e não alcançaram
a graça. É uma revolta vingativa: Deus não me atendeu e
eu me vingo dizendo que ele não existe.
O tipo mais complicado de ateu é o catequista, aquele que herdou o pior
das religiões e fica agressivo pregando sua fé negativa.
Escasseiam religiosos e ateus tranquilos. Tanto a fé como a negação
dela são um guarda-chuva poderoso para dores variadas.
Cresce, hoje, um pensamento chamado apateísmo, a indiferença
em relação à religião. Não se trata de um
ataque ou defesa de Deus, porém um afastamento da experiência religiosa.
Funciona com o indivíduo pensando no sagrado como se pensa na política
da Mongólia: existe, todavia tenho pouco interesse.
Nunca associei ética à fé ou a sua ausência. Temos
ateus e religiosos éticos, bem como violências ligadas aos
dois campos. O complicado, ultimamente, não é crer ou não
crer em Deus. O difícil é crer no homem. É árduo
acreditar em si. Bom domingo a todos vocês.
+ + + + + + + +
A bênção, padre Fábio [BPF]
http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,a-bencao-padre-fabio,70002037734
Fé é uma gramática de percepção
do universo, uma resposta a um anseio ancestral de proteção.
Leandro Karnal, O Estado de S.Paulo
11 Outubro 2017 | 02h00
Lancei o livro Crer ou Não Crer (Editora Planeta) no dia 3 de
outubro, em São Paulo. A obra é um debate com o padre Fábio
de Melo sobre fé e ateísmo.
Logo após a hora inicial de nossas falas, começaram os
autógrafos e as indefectíveis fotos para as 600 pessoas
presentes no teatro. Já lancei muitos livros com outros autores
e tenho prática em congelar o sorriso por algumas horas, à
custa de fundos sulcos bilaterais. Sinto que morrerei como a personagem
Coringa do Batman, com um sorriso congelado.
Observo muito o mundo e as pessoas, mesmo quando pareço blasé.
O padre Fábio estava ao lado mais próximo das pessoas que
vinham até a mesa. Ao se aproximarem, muitos (a maioria) pediam
bênção para ele. Alguns beijavam a mão ou solicitavam
uma oração mais específica. Eu não ouvia,
desde minha infância interiorana, pessoas pedindo a bênção
a um sacerdote. Supunha hábito escasso e antigo, pouco presente
em uma metrópole como São Paulo. Ledo engano: passei quase
toda a noite ao lado de um repetido e carinhoso mantra: "A bênção,
padre", seguido de um benevolente "Deus te abençoe, meu
filho/minha filha".
Sou estudioso de religião e de religiosidades e achei o fato curioso.
Amanhã lembraremos os 300 anos do encontro da imagem de Nossa Senhora
Aparecida, padroeira do Brasil. Tendo com a religião uma relação
intelectual, percebi que eu poderia estar perdendo uma ligação
com o imenso rio subterrâneo da prática da fé que
aflora no pedido de uma bênção. É um verdadeiro
aquífero guarani teológico sob o solo que piso.
Os acadêmicos que trabalham com expressões institucionais
ou antropológicas da fé observam muitas coisas, mas vivenciam
pouco o cotidiano das crenças. A bênção é
um desejo, um anseio, um talismã e uma postura de vida.
Lembrei-me da conhecida experiência soviética de reprimir
o Cristianismo ortodoxo por 70 anos. Igrejas foram demolidas, seminários
fechados, publicações confiscadas. Na Polônia socialista,
até o controle do papel era uma arma contra a Igreja Católica.
Fidel Castro suspendeu o feriado do Natal. Passada a interdição
ou a proibição, a religiosidade e as instituições
religiosas voltam com força enorme. O aquífero irrompe em
gêiseres, como em vasos comunicantes.
Um exame de datação científica do Santo Sudário
revelou confecção no século 14. Logo, o pano de Turim
era uma fraude. Debates posteriores lembraram da possibilidade de contaminação
por materiais mais recentes, como velas, algo que pode ter alterado por
completo o rigor da prova. Suspeito que, se um exame revelasse a etiqueta
made in China no sacro pano, em nada abalaria a devoção.
A fé não funciona na chave da prova empírica, pelo
menos para a maioria das pessoas. Não é uma prática
forense investigativa que anima o romeiro, porém a busca de uma
resposta que nenhuma ciência pode lhe fornecer.
A fé é uma gramática de percepção
do universo, uma prática, uma resposta a um anseio ancestral de
proteção, uma sociabilidade, uma identidade e um hábito.
As instituições podem ajudar ou atrapalhar, mas não
são as formadoras principais da crença. Tanto intelectuais
ateus como teólogos religiosos entendem pouco de povo e de fé.
A massa está absolutamente distante das vias de Tomás de
Aquino para provar que Deus existe de forma lógica, ou das contestações
de Richard Dawkins para provar que qualquer deus é um delírio.
Teólogos e intelectuais ateus falam para si, em redomas afastadas
do mundo, fazendo estardalhaço pelos seus narcisos.
Ali, nas pessoas que vinham buscar uma foto e um autógrafo, existia
também uma demanda que encontrava um presbítero famoso.
Talvez o maior debate entre ateu e crente não estivesse no texto
ou nas palavras, mas nos homens e mulheres com adereços votivos,
escapulários, terços ao pescoço e até uma
efígie do padre Reus (jesuíta que morreu com fama de santo
em São Leopoldo). Há uma gestualidade e uma vivência
corporal da crença, há vetores antigos e fortes que acompanham
o público religioso.
Lembrei-me de um episódio ocorrido em Campinas. Fila imensa de
autógrafos que se arrastava como uma cáfila no Saara. Uma
simpática senhora se aproxima com seu bebê. Fico de pé,
pergunto quem vai tirar a foto. A mãe pede apenas que eu coloque
a mão sobre a cabeça do filho. Aturdido, pergunto se ela
sabe que sou ateu. Ela sorri: "Não importa". Dei a bênção
apostólica ateia para a criança que sorriu. A senhora se
retirou agradecida. Fé é tão forte que pode ser obtida
de um professor ateu. As coisas são assim.
Chegamos ao terceiro centenário de Nossa Senhora da Conceição
Aparecida, a morena, atacada e despedaçada como quase todos os
cidadãos da pátria amada, idolatrada e estilhaçada!
Brasileira, Aparecida nunca desiste. Amanhã é o dia dela
e, também, o Dia da Criança, o dia do descobrimento da América,
o dia de Colombo, dia "de la raza", o aniversário de
d. Pedro I e, acima de tudo, é feriado nacional. Folga em uma quinta
é uma graça randômica que o calendário concede.
Emendar agrada a ateus e a piedosos trabalhadores. Escolha um motivo e
descanse. Bom feriado e boa semana para todos!
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