Debate na TV Cultura, programa Opinião Nacional
28 de Maio de 1999
O Uso da Informática na Educação
Entrevistador: Heródoto Barbeiro
Comentarista: Carlos A. Sardenberg
Debatedores: Valdemar Setzer e Eduardo Chaves
(Copiado de
http://edutec.net/Noticias%20e%20Eventos/Apoio/edsetze1.htm)
Heródoto Barbeiro:
Afinal, o uso da Informática na escola ajuda ou atrapalha? Os computadores estão
cada vez mais presentes na sala de aula. Os estudantes usam programas de edição
de texto, produção gráfica, softwares educacionais nos seus trabalhos escolares.
O professor Valdemar Seltzer da USP considera esse uso prejudicial. Está aqui
conosco o professor Eduardo Chaves da Unicamp que defende a informática na educação.
Muito bem nós convidamos os dois para um debate aqui. Professor Valdemar, boa
noite. Professor Eduardo, boa noite.
Professor Valdemar, esta questão da utilização do computador na escola não nos
remete a uma questão anterior? Eu me lembro quando saíram as máquinas de calcular.
Aí eu cheguei para um professor de matemática, Professor Orivaldo Pereira, que
era meu colega na época, e disse:
- "Escuta, esse negócio, por exemplo, agora, da maquininha, então não precisa
mais saber fazer raiz quadrada é só apertar o botãozinho"?
Aí ele me disse:
-"Olha, é como andar de bicicletas. Você sabe andar de bicicletas"?
Eu disse: -"Sei".
-"Você desaprendeu a andar por que anda de bicicletas"?
Eu disse: -"Não".
-" Então vamos usar as maquininhas que são os antepassados dos computadores".
Eu gostaria de saber se o senhor concorda ou não com este professor que estou
citando aqui, professor Orival.
Valdemar Setzer:
É interessante, Heródoto, que eu publiquei um artigo no jornal "O Estado de
São Paulo", contra o uso de calculadoras eletrônicas na educação elementar,
muito antes de se falar em computadores na educação, acho que foi nos anos 70
e qualquer coisa. Eu acho que aquele artigo tinha sido motivado por uma frase
que foi dita por um famoso cientista da computação nos Estados Unidos, Joe McCarthy,
dizendo que era um absurdo as crianças aprenderem aritmética em 1000 horas,
quando podiam aprender em 10 horas a usar uma maquininha de calcular. Ocorre
que essa pessoa não percebe que o aprendizado da aritmética, o decorar da tabuada,
representa um esforço mental, um esforço rítmico. O desenvolvimento que a criança
faz decorando a tabuada é muito mais importante do que simplesmente sabendo-a
de cor. Se se entregar a uma criança uma máquina de calcular muito cedo, a criança
vai deixar de passar por essa fase de aprender essa abstração que é a tabuada.
Terá deixado de fazer um treino mental essencial para o raciocínio e para a
capacidade de memorizar.
Carlos Sardenberg:
Mas a criança pode treinar em outras coisas não pode?
Valdemar Setzer:
Esse desenvolvimento, não.
Carlos Sardenberg:
Não precisa treinar a tabuada ali 8x9, pode treinar em outras coisas, não pode?
Valdemar Setzer:
Não, porque a tabuada é algo único, do ponto de vista mental. Isso me lembra
toda aquela discussão com a matemática moderna, que felizmente já desapareceu,
a menos das pobres crianças e adolescentes que continuam a calcular o "conjunto
verdade" das equações – um conceito puramente lógico-formal, uma equação considerada
como uma asserção da lógica –, em lugar de procurarem as "raízes" das mesmas.
Eu ainda tenho a esperança de que outras coisas ainda vão desaparecer do ensino,
outros modismos vão desaparecer, como o uso exagerado de definições. Um exemplo
é o absurdo de se ensinar ilha como "um pedaço de terra cercado de água por
todos os lados", o que, além de estar logicamente errado, é uma definição morta,
como todas as definições. Essa ilha não tem plantas, praias, rochedos no mar,
vento, etc. – é uma ilha morta, e isso mata de certa maneira a imaginação das
crianças e força-as a uma atividade mental inapropriada para a idade (talvez
8 anos). O raciocínio matemático, como por exemplo o envolvido no aprendizado
da tabuada, é um raciocínio muito especial, abstrato, e ele tem que ser dado
com muito vagar. Não há necessidade de se ter pressa pois, afinal, estamos moldando
a mente da criança. Nós vimos aqui no bloco anterior um vídeo sobre uma escola.
Interessante que é justamente a escola onde minha esposa é médica, e todos meus
filhos nela se formaram, onde eu dei aula de matemática por dois anos. Essa
escola pertence a um sistema pedagógico mundial, a Pedagogia Waldorf (há mais
de 1.000 escolas Waldorf no mundo, 4 aqui em São Paulo, com o ensino fundamental
e médio). Essa pedagogia, que tem muito sucesso, de todos os pontos de vista
(desenvolvimento intelectual, artístico e social), é totalmente diferente do
usual. Por exemplo, todas as crianças fazem tricô no primeiro ano. Isso serve
como preparação para a aritmética, porque no tricô é preciso contar os pontos
e, como em uma conta armada, não se pode pular nenhum passo, perder nenhum ponto.
Heródoto Barbeiro:
Como se fosse um ábaco?
Valdemar Setzer:
É, no ábaco também se desloca uma pecinha ao lado da outra, mas ele exige muito
menos coordenação motora; além disso, usa um sistema quinário que não é adequado
para crianças pequenas como as da primeira série. Por outro lado, o tricô é
uma coisa muito mais real, produzindo algo de utilidade. No decorrer dos anos,
o tricô vai se tornando mais complexo: chega uma série em que todos os alunos
fazem uma meia sem costura, usando 5 agulhas, depois cada um faz uma malha para
si, e no colegial chega-se à tecelagem.
Heródoto Barbeiro:
Professor Eduardo, é assim que o ensino do século XXI, estamos na beirada do
século XXI, é tricotando que nós vamos desenvolver o ensino do século XXI?
Eduardo Chaves:
Poderia até ser, mas não será só com isso... Eu queria, de início, em vez de
falar do século XXI, falar um pouquinho do século V a.C.. Naquela época, Sócrates,
por exemplo, se opôs ao uso da tecnologia da escrita (isto é, ao uso de materiais
escritos, livros) na educação, principalmente por duas razões. Primeiro, disse
ele, quando a gente usa um material escrito a gente não precisa guardar o conteúdo
na memória (pois está sempre ali, disponível) e, assim, esse tipo de material
não exercita e fortalece a memória. Segundo, acrescentou ele, com o livro você
não pode dialogar: se você fizer uma pergunta para o livro, ele não responde...
Assim sendo, para Sócrates, a educação era alguma coisa que deveria ter lugar
entre duas pessoas, face a face, uma dialogando com outra... Para ele, o livro,
ou qualquer material escrito, iria atrapalhar a educação, pois interferiria
com esse diálogo interpessoal face-a-face...
Carlos Sardenberg:
... o que era uma bobagem.....(risos)
Eduardo Chaves:
É verdade: essa foi uma grande bobagem socrática – o que prova que até grandes
homens dizem besteira. A história é análoga à da bicleta que o Heródoto mencionou:
quando a gente aprende a andar de bicicleta, a gente não precisa abandonar o
andar a pé. Hoje a gente nem se dá conta de que o livro é tecnologia, de que
a gente usa o livro, usa uma série de outras coisas que são tecnologia, usa
tudo isso na educação, com a maior naturalidade – sem abandonar o diálogo socrático,
que continua importante. Na verdade, a tecnologia até aumenta, exponencialmente,
as possibilidades que temos de dialogar socraticamente – interpessoalmente,
mas não face-a-face. Tricô é tecnologia: você precisa ter agulhas, você precisa
ter uma receita a ser seguida, etc... Então, o que eu não consigo entender em
posturas como as do Setzer, é por que a criança, que hoje é acompanhada pela
tecnologia desde antes de nascer (faz exames de ultrassom, nasce num centro
cirúrgico sofisticado, vai para casa de carro, que é uma tecnologia, em casa
tem eletricidade, quando não tem uma babá eletrônica para informar os pais que
a criança está chorando, etc.), não pode – ou não deve – aprender com o auxílio
da tecnologia. Pelo que sei, o Setzer não se opõe, como Sócrates, a que a criança
aprenda usando o livro, usando materiais de toda sorte que são tecnologia ou
são sub-produtos da tecnologia. Ora, por que singularizar, por que pegar computador
e a máquina de calcular como bodes expiatórios e dizer: na hora de aprender
a criança não pode – ou não deve – usar essas coisas aqui. Parece-me que fazer
isso é quase cometer uma violência contra a criança, é dizer: olhe, o seu aprender,
a sua educação não têm nada que ver com sua vida fora da escola; lá fora você
usa toda a tecnologia disponível, mas aqui dentro da sala de aula você só pode
usar as tecnologias do livro, do gis, do quadro-negro -- ou do tricô. Não é
esquisito?
Heródoto Barbeiro:
Professor Valdemar.
Valdemar Setzer:
Existe um ponto...
Carlos Sardenberg:
Deveria usar pela teoria do professor, vídeo-games não tricô, não é?
Valdemar Setzer:
Exatamente. Acontece que a situação é bastante complexa. Existem vários pontos
de vista. Veja como Sócrates ou Platão tinham toda razão. Antes da escrita era
necessário fazer um esforço de memória, aliás, a memória era fantástica. Por
exemplo, acredita-se que inicialmente a Ilíada e a Odisséia foram transmitidas
de memória. Imagina-se que muito depois de Homero é que elas foram escritas;
a humanidade estava perdendo essa capacidade de memória e por isso é que se
precisou inventar a escrita e se precisou colocar a história em livro. Mas isso
correspondeu a uma perda, claro (a propósito, uma perda necessária para se desenvolver
a capacidade de abstração). Eu não sou contra o livro; eles são fantásticos
e sua leitura é essencial para o desenvolvimento intelectual e emotivo dos jovens.
Só que há idade certa para se começar a ler um livro; com pouco mais de 1 ano
de idade pode-se começar a mostrar figuras infantis bonitas, artísticas – raridade
nos livros infantis de hoje. Como nesse tipo de escola que vocês mostraram no
vídeo no bloco anterior, eu não recomendo que as crianças aprendam a ler antes
de 6,5 ou 7 anos, para não forçar uma abstração mental precocemente (as letras
latinas são símbolos sem vida ou estética, hoje em dia). Esse aprendizado tem
que ser muito lento, como o Herodóto conhece muito bem, porque os filhos dele
freqüentaram uma escola que usa aquele método pedagógico. É importante entender-se
qual é a influência da tecnologia, dos aparelhos, sobre as crianças, e aí perguntar-se:
existe idade adequada para começar a usá-los? Vou dar um exemplo por analogia
– com isso termino, para o Eduardo também ter alguma chance. Alguém diria que
uma criança de 7 ou até 10 anos devesse guiar automóvel? Certamente, não nesta
cidade de São Paulo. O Eduardo Chaves tem a sorte de morar em Campinas, isso
é como um sítio para nós, pois aqui nós estamos num caos total no trânsito.
Bem, certamente ninguém iria dizer que uma criança de 7 ou 10 anos deveria aprender
a guiar um automóvel, não tem coordenação motora, não tem responsabilidade,
vai brincar no volante, etc. Por que não se faz um estudo, como eu fiz, de qual
é a idade adequada para se usar um computador? Porque o desastre...
Heródoto Barbeiro:
Qual é a idade professor por favor?
Valdemar Setzer:
... o desastre que o computador produz não é físico como o automóvel. Esse é
um desastre mental, é um desastre psicológico.
Heródoto Barbeiro:
E qual é a idade então, adequada?
Valdemar Setzer:
Bem, a idade que eu cheguei à conclusão nos meus estudos é que deveria
ser depois da puberdade, idealmente aos 17 anos. O computador exige uma tremenda
auto-disciplina, um enorme auto controle e grande maturidade. Imagine essas
crianças todas tendo acesso à Internet sem nenhum controle, sem poder julgar
o que é bom e o que é mal.
Heródoto Barbeiro:
Mas veja, o senhor não está comparando o computador com a televisão, mas aí
nós vamos chegar no lugar da televisão...
Valdemar Setzer:
Eu gostaria que vocês me convidassem uma vez e vamos falar só contra a televisão
(risos).
Heródoto Barbeiro:
Falaremos em outra oportunidade. O senhor também acha que o computador só deveria
ser usado após a puberdade, professor Eduardo?
Eduardo Chaves:
Não. Eu sei que o Setzer tem um referencial teórico muito elaborado por trás
das posições dele, mas estou certo de que esse referencial, elaborado há muito
tempo, não leva em conta o fato de que a criança de hoje é muito diferente da
criança de 100 anos atrás, quando algumas dessas teorias foram desenvolvidas.
Acho que hoje a criança está preparada para a alfabetização muito antes dos
7 anos tradicionais e isso porque, dada a estimulação do meio, repleto de tecnologia,
tem uma sofisticação cognitiva que lhe permite lidar com razoável tranqüilidade
e naturalidade até com máquinas sofisticadas e abstratas, como é o caso do computador
e de aparelhos de vídeo-game – sem que isso lhe cause qualquer efeito nocivo,
no curto e no longo prazo, muito pelo contrário. Um jogo de vídeo-game estimula
o sistema sensorial-perceptivo, o sistema psico-motor, o sistema cognitivo (o
raciocínio) – muito mais do que o tricozinho do Setzer (contra o qual não tenho
nada, repito, desde que ele encontre uma criança que prefira aprender fazendo
tricô a aprender jogando um vídeo-game, ou interagindo com um computador, ou,
melhor ainda, interagindo com seus colegas através do computador).
Heródoto Barbeiro:
Olha, tenho duas manifestações aqui já, uma do Sr José Roberto Rosa que é gerente
de tecnologias e diz o seguinte: segundo algumas projeções de evolução do processamento
de inteligência artificial, no ano 2019 o micro de U$1000 terá a capacidade
de um cérebro humano. Imagino como será a sociedade e que educação precisará
ter hoje; e o senhor Alexandre Ramalho que é professor universitário diz: sou
radicalmente contra a utilização do computador no ensino fundamental. As crianças
não devem primeiro aprender a usarem o cérebro? Posteriormente poderão aprender
a utilizar os magníficos recursos dessa informática.
Valdemar Setzer:
Exatamente.
Eduardo Chaves:
Uma coisa não exclui a outra, professor Ramalho: a criança pode muito bem aprender
a usar seu cérebro usando a melhor tecnologia disponível hoje. Ficar ouvindo
um professor que usa, como tecnologia, apenas a voz, o giz e o quadro negro
(como o faz a maioria dos professores universitários) não me parece ser uma
forma muito eficaz de aprender a usar o cérebro – a não ser, talvez, como repositório
de informação, muitas vezes inútil. Uma das formas mais eficazes de aprender
a usar a nossa capacidade cognitiva é interagindo com o nosso ambiente natural,
humano e tecnológico (i.e., artificial), tentando resolver os problemas que
esse ambiente apresenta... e esse meio ambiente hoje é repleto da mais variada
e poderosa tecnologia. Nós encontramos tecnologia sofisticada hoje em todo e
qualquer lugar. Tentar fazer com que a educação escolar abstraia desse universo
tecnológico em que a criança vive, para que apenas depois, lá pelos 17 anos,
ela subitamente comece a interagir com esse ambiente todo, me parece, no mundo
em que nós vivemos hoje, mais do que irrealista: é um grande desperdício de
oportunidades educacionais.
Valdemar Setzer:
Isso depende dos pais e da escola. Felizmente nós estamos num país onde se pode
ter e fazer dentro do lar aquilo que se quiser, desde que não se maltratem as
crianças. Pode-se organizar o próprio lar da maneira como a gente escolher,
não há imposição quanto a isso. Então é muito simples, e eu apelo para os pais
pensem, estudem, reflitam: não há a mínima necessidade de uma criança usar o
computador...
Heródoto Barbeiro:
Isso é um modismo na opinião do senhor?
Valdemar Setzer:
Não é só um modismo, é um tremendo mercado, por que atende os interesses dos
fabricantes e não da sociedade – se bem o interesse da sociedade está sendo
induzido a consumir computadores.
Carlos Sardenberg:
Há estatísticas a respeitos disso, por exemplo, você avaliar o desempenho de
alunos de escolas que usam o computador e não usam o computador? Há modos de
medir isso?
Valdemar Setzer:
Sim, eu gostaria de citar dois estudos, aliás os dois da mesma universidade
de Carnegie Mellon, uma das melhores universidades americanas. Um deles é um
estudo que foi publicado há alguns meses, em que se demonstrou que o uso da
Internet produz aumento de depressão e antisociabilidade. Foi uma surpresa porque
inclusive esse estudo foi financiado por Bill Gattes & Cia., que queriam
resultados exatamente contrários. Um outro estudo foi muito interessante e diz
respeito direto à nossa questão aqui. Eu li uma referência a esse estudo em
uma tese que acabei de receber há pouco tempo pela Internet (risos) de Lowel
Monkey, professor secundário nos Estados Unidos, que fez doutorado numa universidade
americana. Ele cita uma pesquisa, naquela mesma universidade, em que se examinou
o resultado de testes de matemática de crianças que tiveram aulas de uso do
computador, em comparação com outro grupo de crianças que não teve aulas de
uso do computador, mas estudou música, estudou piano. O resultado daqueles que
estudaram piano foi muito melhor nos testes de matemática dos que tiveram computador.
Na sua tese, Monkey cita que ele era membro de um conselho de tecnologia das
escolas secundárias lá da sua cidade, Des Moines, capital do estado de Iowa,
nos EUA. Ele escreveu um relatório dizendo que, baseado, naquele estudo, não
se deveria embarcar na campanha do presidente Bill Clinton de instalar um computador
em cada sala de aula; o correto, do ponto de vista educacional, seria instalar
um piano em cada sala de aula, pois o resultado seria muito melhor. Eu gostaria
de acrescentar o seguinte. Todas as experiências de uso de arte em qualquer
ambiente escolar, prisão, FEBEM (que é o caso do magnífico projeto Guri, de
ensino de música e formação de orquestras juvenis), dá resultados extraordinários,
como pode ser verificado nas escolas Waldorf, onde há um intenso ensino artístico.
O computador não dá resultados extraordinários, pelo contrário, em minha conceituação
ele é extremamente prejudicial à formação intelectual, sentimental e volitiva
das crianças e jovens. Isso está sendo comprovado cada vez mais por pesquisas
estatísticas.
Eduardo Chaves:
Ninguém está defendendo que só se use a tecnologia na escola, que a escola abra
mão do uso da pintura, da música, da arte em geral. Algumas dessas pesquisas
mostram que se o indivíduo ficar fixado no computador 10 ou 12 horas por dia,
ele pode sofrer efeitos nocivos para a sua personalidade, da mesma forma que
se ele ficar trancado numa biblioteca, lendo 12 horas por dia, se ele não tiver
uma vida social, se não se movimentar, brincar, correr, se não fizer outras
coisas além de ler, isso também pode prejudicá-lo...
Carlos Sardenberg:
E se ele ficar a tarde inteira decorando tabuadas?...
Eduardo Chaves:
... É a mesma coisa. Falou-se no início sobre o suposto mérito da memorização.
Eu não vejo mérito algum na memorização como tal, em decorar tabuada ou coisas
desse tipo. O importante é saber o que fazer com as informações que estão disponíveis
para nós. Se eu compreendo a natureza das operações aritméticas, sei quais são
as operações que precisam ser feitas para resolver um problema, e faço essas
operações usando a máquina de calcular ou o computador (e não de memória – ou
usando papel e lápis, que, convenhamos, são tecnologias...), eu não preciso
ter presente na memória o tempo todo o algoritmo que me permite multiplicar
ou dividir dois números, extrair raiz quadrada, etc. Eu sei quais são as operações,
vou ali na maquininha e as faço – pronto, problema resolvido. Então o suposto
mérito de memorizar a tabuada, ou os algoritmos necessários para extrair a raiz
quadrada, ou as declinações e conjugações latinas, como se fazia antigamente,
é uma coisa, na melhor das hipóteses, sobre-valorizada – na pior das hipóteses,
uma perda de tempo terrível. Certamente nossa capacidade de memorizar foi reduzida
com as várias tecnologias que surgiram, com o aparecimento do livro, com o surgimento
da máquina de calcular, com a presença ubíqüita do computador entre nós... Mas
nós certamente ganhamos em nossa capacidade de armazenar informações fora da
memória e em nossa capacidade de processar a enorme quantidade de informações
armazenadas em meios externos e disponíveis a qualquer momento. Ganhamos na
forma de processar essa informação, de analisá-la, de raciocinar em cima dela,
de colocá-la a bom uso. Pode parecer um truísmo, mas utilizando a tecnologia
fazemos aquilo que podemos fazer com o auxílio ou o apoio da tecnologia. Assim
teremos até mais tempo para fazer as outras coisas, aquelas que não podemos
fazer com a tecnologia, do jeito que devem ser feitas: a pintura, o teatro,
ou o tricô do Setzer...
Valdemar Setzer:
Posso responder? Eu gostaria de citar mais um fato, não sei se o Eduardo Chaves
sabe, existem várias universidades americanas que estão com aconselhamento psicológico
para estudantes que são viciados na Internet, porque ela está prejudicando seus
estudos de uma maneira extraordinária. Eu pergunto aos senhores o seguinte:
alguém já ouviu falar de "rato" de biblioteca que fosse mal nos estudos?
Eduardo Chaves:
O problema, Setzer, não é a Internet: é o vício. Ser viciado em qualquer coisa
é sempre ruim – ainda que o objeto do vício seja, fora do contexto do vício,
alguma coisa boa.
Valdemar Setzer:
Um aluno viciado em biblioteca não irá mal nos estudos.
Eduardo Chaves:
Isso me faz lembrar a história do indivíduo que era alcoólatra. Um dia quiseram
mostrar para ele o mal que o álcool fazia ao organismo e jogaram um ovo fresco
dentro de um copo com pinga: o ovo imediatamente ficou cozido. O alcoólatra
olhou e falou: puxa vida, de hoje em dia não como mais ovo... (risos....). O
problema é o vício, não é a Internet. Qualquer coisa em excesso, até uma coisa
boa, é prejudicial. Um aluno que se trancafie na biblioteca 12 horas por dia,
lendo o tempo todo, e não fazendo outra coisa pode até não ir mal nos estudos,
mas irá terrivelmente mal na vida.
Valdemar Setzer:
Repito, nenhum aluno viciado em biblioteca foi mal nos estudos. Isso mostra
que o computador e a Internet têm uma influência maléfica especial. Mas estou
de acordo quanto aos prejuízos sociais, se isso prejudicar o convívio social,
mas isso aplica-se a qualquer vício. A segunda coisa que você falou foi o latim.
Aqui eu gostaria de citar uma historinha que se conta de um dos fundadores do
ensino da matemática superior na antiga Faculdade de Filosofia da USP, um daqueles
famosos matemáticos europeus, franceses e italianos, talvez Fantapié, Dieudonné
ou Alabanesi, que estiveram aqui, acho que evitando o nazismo. Perguntou-se
a ele o que se deveria ensinar no colegial ou na escola para que ele recebesse
posteriormente bons alunos de matemática no ensino superior. Sabem o que ele
respondeu? "Por favor, não ensinem matemática, ensinem latim". Vejam a sabedoria,
a intuição que havia naquela época. Porque quando se estuda o latim faz-se um
intenso desenvolvimento de raciocínio lógico, em cima de uma linguagem natural.
Hoje em dia essa língua está morta, mas existiu. É uma linguagem natural, não
é uma linguagem simbólica, formal como a matemática...
Eduardo Chaves:
... Mas dá para estudar lógica em cima de uma linguagem viva...
Valdemar Setzer:
...mas o latim tem uma estrutura lógica que hoje em dia é difícil de encontar
em outras linguagens. Por exemplo, nele a ordem das palavras não interessa,
as declinações dão o sentido de um sujeito, de um objeto direto ou indireto,
etc. A capacidade de raciocinar que o Eduardo Chaves mencionou pode ser desenvolvida
com o latim. Na estou advocando que se volte a ensinar latim, como era obrigatório
no Brasil inteiro, por 4 anos, quando eu estava o antigo ginásio (atuais 5ª
a 8ª séries). Ele mencionou uma outra palavra antes: chamou o computador de
máquina abstrata. De fato, o computador é uma máquina puramente matemática,
isso pouca gente sabe. Ele é uma máquina abstrata porque nós podemos descrever
todas as funções que ela exerce por meios matemáticos, estritamente formais.
A linguagem que se usa com o computador, pode ser digitando algum comando, control
+ C por exemplo, ou então selecionando um ícone, é estritamente formal, ela
não tem ambigüidades como as linguagens naturais...
Eduardo Chaves:
Eu como usuário posso muito bem usar o computador sem fazer uso dessas linguagens
formais que são necessárias para programá-lo.
Valdemar Setzer:
Não, é impossível. Eu não estou falando de linguagens de programação, que obviamente
são formais, mas nos comandos que é necessário dar no uso de qualquer software.
Na hora que você aciona um ícone sempre a mesma função matemática de manipulação
de símbolos vai ser executada pelo computador. As pessoas não percebem isso,
mas no fundo quando se usa o computador com qualquer programa, por exemplo com
um editor de textos (não precisa ser na confecção de um programa, onde o formalismo
lógico-matemático é óbvio), também se está usando uma linguagem formal. Qual
é a conseqüência disso?
Heródoto Barbeiro:
O resultado é sempre o mesmo?
Valdemar Setzer:
Sim o computador é uma máquina totalmente determinista. É isso que faz o computador
ser uma máquina tão potente: sempre que ele está em certo estado, por exemplo
apresentando alguma coisa na tela, apertando-se uma tecla – tanto faz qual é
a pessoa que aperte aquela mesma tecla –, ele vai sempre fazer a mesma ação;
trata-se de um processo matemático. Agora, qual é a conseqüência disso? Que
o computador força, induz, um pensamento lógico-simbólico. Por exemplo, os ícones
são símbolos, os caracteres são símbolos, constituindo uma linguagem lógico-simbólica.
Portanto e ele força um tipo de raciocínio, um tipo de pensamento, lógico-simbólico,
e aí é que vem o problema. Na minha concepção não é correto que se force crianças
a pensar dessa maneira: vai ser prejudicial posteriormente.
Heródoto Barbeiro:
Professor Eduardo, gostaria de ouvir o comentário do senhor porque o nosso tempo
está esgotando.
Eduardo Chaves:
Certamente o computador é uma máquina abstrata, lógica, determinista. Mas é
possível usá-la de forma concreta, não determinista, até ilógica. Vou usar uma
comparação para ilustrar o que estou dizendo. A linguagem que usamos – a linguagem
escrita mais do que a falada – é uma tecnologia abstrata, lógica, determinista.
É abstrata porque usamos símbolos para representar entidades (reais ou fictícias),
características e atributos (empíricos ou abstratos), conceitos de vários tipos.
É lógica porque esses símbolos precisam ser usados de acordo com certas regras.
E é determinista: exceto em situações muito especiais, não temos liberdade de
inovar à vontade nos usos desses símbolos e nas regras que os governam. E, no
entanto, a despeito de tudo isso, somos capazes de usar a linguagem não só em
contextos matemáticos e científicos, admitidamente rigorosos, mas para registrar
eventos, para narrar histórias (reais ou inventadas), para inventar contos surrealistas
ou pós-modernos, para compor poemas que inspiram e nos fazem sentir que a vida
vale a pena. O mesmo vale para o computador. Ele é, lá dentro dele, uma máquina
abstrata, lógica, determinista. Mas nós o usamos – o mundo inteiro o usa – para
conversar com os entes queridos pela Internet, para trocar e visualizar fotos,
para compartilhar e ouvir músicas, para distribuir nossos ensaios literários
e nossos poemas, para registrar nossas viagens em textos e imagens... Tudo isso
é concreto e nada tem de lógico ou determinista. Toda a estrutura abstrata,
lógica, determinista do computador está lá, mas ela não é visível para mim,
ela é transparente, eu não a enxergo – e posso usar para o computador para fazer
coisas que não são condicionadas por essa infra-estrutura tecnológica. Concentrar
a atenção, como se fosse, nos intestinos do computador, da forma que o faz o
Setzer (algo até compreensível para quem é um cientista da computação, mas que
implica um reducionismo terrível), é deixar de lado o fato de que com o computador
nós podemos uma multidão de coisas extremamente úteis e importantes – como,
por exemplo, interagir e dialogar com nossos semelhantes, aceder às informações
de que precisamos para fazer aquilo que desejamos, etc. Interação humana, acesso
a informações, manipulação de informações, etc. são atividades essenciais para
o mister de aprender, de educar.
Heródoto Barbeiro:
Eu quero agradecer a presença dos dois aqui, professor Valdemar, Professor Eduardo.
Quero dizer que vocês acabaram de responder o senhor Romildo Neto de São Paulo
e o comentário do senhor Cláudio Teles - Salvador na Bahia: olha são os mais
nobres valores de conduta, noção de vida, sociedade e respeito ao próximo. Felizmente
o computador não tem condição de transformar indivíduos e seres humanos.
Valdemar Setzer:
Na minha concepção, transforma, sim, pois atua no nível mental. No caso de crianças,
para muito pior. Por favor, sobre isso, leiam os artigos em meu site.
Insisto em que o computador impõe certo tipo de pensamento, que é inadequado
para crianças e adolescentes. Há várias pesquisas mostrando que, quanto mais
um aluno usa o computador, pior o seu rendimento escolar. Uma das razões que
se dá é o tempo que a criança ou adolescente perde com o computador, prejudicando
suas outras atividades, inclusive o estudo. Isso é óbvio. Mas eu vou muito mais
a fundo: preocupa-me a influência do tipo de pensamento e na linguagem lógico-simbólicos
forçados pelo computador. Isso obviamente não ocorre quando uma criança
está digitando um e-mail, mas na hora de enviar o e-mail, ela usará um comando
que, no fundo, é matemático, pois dispara funções matemáticas dentro do computador.
Como exemplo de prejuízo, tenho certeza que algum dia uma pesquisa mostrará
que o computador prejudica a imaginação, e portanto a criatividade. Gostaria
ainda de salientar o que já disse: não há necessidade de se começar a usar o
computador e a Internet muito cedo. Quase todos os que têm mais de 40 anos hoje
não os usaram quando crianças, e não tiveram dificuldade de aprender a usá-los
quando adultos.
Eduardo Chaves:
Só uma observaçãozinha final, curtinha... Um dos grandes males da escola é tentar
impingir sobre as crianças um modelo de aprendizagem, fazendo de conta que é
o único. As crianças, tradicionalmente, acreditavam que ouvir o professor falar,
ler o que ele escrevia no quadro-negro, e fazer anotações no caderno era o único
jeito de aprender. Hoje, quando têm acesso a uma tecnologia sofisticada que
lhes permite aprender de várias outras formas – pesquisando, discutindo, criando
modelos, fazendo simulações, resolvendo problemas que consideram importantes
– é natural que se dêem conta de que o modelo de aprendizagem que a escola tenta
lhes impor deixa muito a desejar e, por isso, que percam ainda mais o pouco
interesse numa escola que mantém esse paradigma hoje ainda, infelizmente, vigente
– e que seu rendimento escolar caia.
Heródoto Barbeiro:
Mas o debate segue na Internet, via computador. Os dois participantes têm nas
suas páginas artigos sobre o assunto. O endereço do professor Setzer é
www.ime.usp.br/~vwsetzer.
A home page do Projeto Edutecnet do professor Chaves é
http://edutec.net.
O debate vai seguir lá com certeza, mais animado depois da participação dos
dois aqui. Muito obrigado aos dois. Muito Obrigado.
[A transcrição deste debate foi feita, a partir de fita gravada, por Lourdes
Matos, do grupo de discussão EduTec. Ela foi revista pelos entrevistados em
Abril de 2008. ]