ENTREVISTA AO JORNAL ZERO, DE SANTA CATARINA

Valdemar W. Setzer
www.ime.usp.br/~vwsetzer


O interessante artigo abaixo foi elaborado por Diego Cardoso, do Jornal-Laboratório ZERO da Universidade Federal de Santa Catarina, que me entrevistou por e-mail e contém, no fim, trechos de entrevista comigo. Em vermelho, as adições que sugeri a ele em 10/6/11. Depois do artigo, encontram-se as perguntas que ele formulou e as respostas originais que lhe enviei em 12/5/11.

PEDAGOGIA DESCONECTADA

A pequena quadra de esportes do Colégio de Aplicação da UFSC (CA), ponto de encontro da turma do futebol com latinhas de refrigerante, costumava ser um dos locais mais disputados na hora do intervalo. Hoje, o espaço nem é tão desejado pelos alunos, que agora divertem-se com conversas em redes sociais e troca de links com videos engraçados. O motivo da mudança são os netbooks distribuídos pela escola no inicio deste ano para uso em sala de aula. Enquanto os estudantes divertem-se no recreio com os novos “brinquedinhos, os professores pensam em maneiras de usar essas novas tecnologias para fins educacionais.

Os computadores distribuídos na escola fazem parte do PROUCA, o Programa Um Computador por Aluno. O PROUCA foi criado em 2005 para melhorar a situação tecnológica da educação básica e proporcionar inclusão digital por meio da distribuição gratuita de netbook nas escolas públicas brasileiras. Desde o ano passado, 300 colégios participam de uma fase preliminar do projeto - entre eles, o Colégio de Aplicação, que recebeu 1082 computadores, entregues para professores e alunos do ensino fundamental e médio.

O “uquinha, nome dado carinhosamente pelos estudantes aos netbooks, chegou no início deste ano para estudantes de todas as turmas, mas ainda não consegue atender às expectativas dos jovens do CA. O aluno Mateus Ebenriter, por exemplo, quis instalar um programa para editar vídeos, mas não conseguiu até agora. “A máquina é bem simples, possui uma capacidade limitada. A gente usa mais pra acessar a internet mesmo. Quem quer fazer algo diferente, não consegue, avalia Mateus, que usa mais o celular e o computador de casa para fazer trabalhos escolares. “Prefiro trabalhar no computador de casa - é mais rápido. Pra ler slides do Powerpoint, uso meu celular, explica o jovem, enquanto mostra a apresentação exibida na última aula de sociologia. 

Dar suporte às disciplinas oferecidas no ensino básico é um dos principais motivos para a distribuição dos computadores. Segundo a professora Edla Maria Faust Ramos, coordenadora do projeto em Santa Catarina, há um grande esforço das instituições de ensino para que o projeto dê certo. “Estamos numa fase piloto. Uma das grandes dificuldades para a aplicação é determinar a dinâmica do dia a dia desses netbooks na sala de aula. Edla acredita que a presença dos computadores em sala de aula pode trazer benefícios para o estudante - por isso a insistência no aperfeiçoamento do projeto. “Além dos laptops, o Projeto prevê o investimento em infraestrutura, o financiamento de pesquisas pelo CNPq, a expansão das redes... Queremos proporcionar uma imersão desses jovens nas novas tecnologias.

A “imersão de boa parte dos alunos não ocorre do jeito que os coordenadores do projeto gostariam. Com a internet aberta para acessar as redes sociais e sites de vídeos, o foco de algumas aulas tornou-se o bate-papo no Facebook para alguns estudantes. “Não acredito que façam isso por maldade. Para eles é irresistível - não há uma censura. Eu poderia mandar o aluno fechar o computador, mas é melhor eu chamar a atenção, alertar sobre os cuidados na internet..., diz o professor de geografia do CA, José Carlos da Silveira. Para ele, esse tipo de orientação é importante, mas o processo de ensino e aprendizagem não pode se perder. “A escola deve continuar sendo espaço para análise, debate e escrita. O “uquinha deve ter relação com a escola. Ele pode estar ali, mas com um significado e cercado de alguns cuidados.

A falta de uso pedagógico do “uquinha“ também preocupa alguns pais de alunos. Para Adriano Ebenriter, pai de Mateus, os professores precisam preparar-se melhor para a entrada dos computadores na escola. A falta de planejamento na utilização dos netbooks gera desperdício de tempo, aprendizado e dinheiro público. “Para mim é um projeto mal gerenciado. Afinal, essa é uma tecnologia que existe há tanto tempo, né? Isso me parece história pra inglês ver, só para fazer número e aparecer em propaganda do governo.

Mesmo com algumas críticas, a equipe do Colégio de Aplicação acredita na capacidade dos “uquinhas para incrementar o processo de ensino e aprendizagem, se forem tomados alguns cuidados. Romeu Augusto Bezerra, diretor do CA, admite os problemas na implementação, mas apóia o uso dos netbooks na sala de aula. “O computador ajuda, sim! Na hora que o aluno tiver o controle, quando ele se apropriar devidamente dessa possibilidade de conhecimento, terá uma melhor aprendizagem. Além do bom senso dos alunos, a internet do CA bloqueia sites com conteúdo considerado impróprio - pornografia, por exemplo. “O Ministério [da Educação] exige que o projeto UCA tenha uma rede própria. E também devemos considerar que o controle de acesso vem de casa, da família, para qualquer conteúdo.

Capacitação

Enquanto os alunos divertem-se online no recreio e usam o “uquinha com facilidade, alguns professores ainda têm dificuldades no uso básico da tecnologia. Antes de uma das capacitações sobre o PROUCA, alguns docentes se reunem para trocar ideias sobre o novo computador. Alguns deles abrem o netbook pela primeira vez, outros manejam o computador com facilidade, e uns poucos brigam para conseguir conectar à rede do UCA. “Como eu faço pra entrar na internet?, pergunta uma delas. “Alguém pode me ajudar aqui?. 

O objetivo deste tipo de oficina é estimular os professores a explorar mais o “uquinha em sala de aula. Em  Santa Catarina, uma equipe fornecerá, até o final do ano, capacitação para todas as dez escolas catarinenses que participam do projeto. “A formação faz parte da implementação do PROUCA. Queremos estimular os professores a desenvolverem nos alunos a competência na linguagem tecnológica e nas textualidades midiáticas. Para isso, temos que criar um link bem articulado entre a reflexão teórico-pedagógica e a prática, defende a professora Edla Ramos.

O tema da capacitação naquele dia era o uso e as possibilidades multimídia do netbook na sala de aula. A palestrante Heloísa Schumacher Correa mostrou alguns resultados da dissertação do mestrado em educação defendida por ela: grande parte dos alunos do Aplicação utilizavam computadores para assistir vídeos e usar sites de relacionamentos. A discussão sobre o uso de “novas textualidades, porém, desencadeou um debate sobre a utilidade do computador. “Já vi alunos usando o ‘uquinha’ pra conversar entre eles, no meio da aula!, diz uma professora “Mesmo quando não são autorizados, eles usam. Não tem mais como segurar!, diz outra. Depois de algumas discussões mais acaloradas e trocas de experiências com o computador, Heloísa conseguiu chegar num meio termo: é preciso didatizar esse instrumento, problematizar o uso e as possibilidades que ele cria para os alunos. Afinal, como diz a palestrante, “se usarmos o computador só pra escrever, vira curso de datilografia!.

Para alguns professores do Colégio de Aplicação, a tal “máquina de escrever digital mostrou ser uma boa ferramenta educacional. É o caso da professora de inglês Maristela Campos, que incentiva os alunos de 5ª a 8ª séries a usar o “uquinha. Com o netbook, os estudantes podem assistir videoclipes legendados, traduzir e interpretar as letras das músicas de acordo com o que mostram as imagens. Além disso, Maristela leva para a sala de aula jogos online feitos para o ensino da língua inglesa. “Não podemos ficar distantes desse mundo tecnológico. Devemos nos aproximar dele, junto com os alunos! Grande parte desses jovens é alfabetizada nesses novos suportes, mas nós estamos dando acesso à todos os alunos. Segundo a professora, alguns colegas têm certa resistência para usar o computador com as turmas. “Alguns têm medo de perder contato com a realidade, de pensarmos só no virtual. Essa discussão é importante, mas temos que aproveitar essa oportunidade!

A falta de “mundo real no cotidiano das crianças é uma questão problematizada por Valdemar Setzer,  professor aposentado pela USP e pesquisador (ver inúmeros artigos sobre o assunto em seu site). Para ele, a presença destas novas tecnologias prejudica o desenvolvimento dos estudantes. “O brincar infantil, atividades sadias na adolescência como a leitura e a sociabilização real, não a virtual, são absolutamente essenciais para se ter mais tarde adultos criativos, sociáveis, com compaixão (prejudicada pelos jogos eletrônicos violentos, os mais usados pelos jovens) e que tenham força de vontade e coragem para enfrentar as adversidades que certamente irão ocorrer em suas vidas. Além dos problemas na formação, Setzer acredita que o excesso de tecnologia atrapalha o trabalho dos professores, já que manter a atenção dos alunos no conteúdo da disciplina tornou-se um desafio - principalmente agora, com a presença do “uquinha. Antes mesmo da chegada do computador, alguns estudantes atualizavam perfis no Facebook e assistiam vídeos no Youtube, em alguns momentos durante a aula - tudo isto com um celular, netbook ou outro tipo de dispositivo móvel. “É uma tragédia que um aparelho possa atrair mais um aluno do que um bom professor; isso mostra a falência de nosso ensino: ele está tão ruim, mas tão ruim, que até computador ensina melhor!

Além da dispersão dos alunos, uma navegação sem cuidados ou supervisão na internet pode gerar problemas mais graves . Os jovens frequentemente são  vítimas de fraudes, exposição indevida ou até assédio. Para o professor Valdemar Setzer, deixar o estudante “andar com as próprias pernas nem sempre leva ao melhor caminho. “Em primeiro lugar, esse andar deve ser adequado para a idade. Por exemplo: uma criança pequena pode ter a liberdade de escolher com qual brinquedo quer brincar, dentre os objetos sadios e apropriados para sua idade e  cultura, colocados à disposição por pais e professores. Essa individualização em relação a cada criança não existe nos meios eletrônicos, pois eles são dirigidos a uma massa, para milhões de pessoas. O uso desorientado dos netbooks, para ele, reforça a ideia de computador-brinquedo. “Dê-se, por exemplo, um computador para uma criança ou adolescente. O que eles vão fazer com ele? Ora bolas, vão brincar e se divertir, não usá-lo para o estudo, e isso é absolutamente normal.

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Perguntas e respostas originais que levaram à redação da matéria acima.

Diego Cardoso - Jornal-laboratório Zero
diego.kardoso@gmail.com

PERGUNTAS

- Neste ano, algumas escolas de Santa Catarina começaram a receber notebooks para a distribuição aos alunos. O Sr. acredita que esta ferramenta traz vantagens ao processo de ensino e aprendizagem?

Não, os prejuízos são infinitamente maiores do que os benefícios, sendo que estes últimos, como propalado pelas pessoas que não conhecem as pesquisas feitas sobre o efeito dos meios eletrônicos (TV, video game,  computador e Internet) em geral são ilusórios ou totalmente falsos. Por exemplo, é totalmente falso que as crianças devem ter contato com essas tecnologias pois senão serão adultos despreparados social e profissionalmente. Hoje em dia é muito fácil aprender a usar esses meios, e no futuro será mais fácil ainda. Um outro exemplo é de se achar que video games violentos produzem um efeito de catarse, isto é, dão vazão a impulsos agressivos e que com isso as pessoas ficam mais calmas. Não há nenhuma pesquisa científica comprovando isso.

Cito dois prejuízos. Um é colocar a criança ou adolescente que usa a Internet em perigo, podendo ser assediado por predadores, como os chamou Gregory Smith em seu livro Como proteger seus filhos na Internet – veja-se minha resenha sobre ele em

http://www.ime.usp.br/~vwsetzer/como-proteger-resenha.html

Uma coisa essencial que ele diz é que todas as crianças e adolescentes são ingênuos, e por isso o perigo é enorme, e a ocorrência de assédio ou coleta de dados privados é muito frequente.

Um outro prejuízo é que todos os meios eletrônicos fazem um desenvolvimento indevido das crianças e adolescentes. Uma senhora me disse a esse respeito: "Mas as crianças de hoje não são mais crianças, nem sabem mais brincar!" Isso é uma tragédia, o brincar infantil corporal ou com brinquedos rústicos, atividades sadias na adolescência como a leitura e a sociabilização real, e não a virtual (que prejudica a real, como já está provado), são absolutamente essenciais para se ter mais tarde adultos criativos, sociáveis, com compaixão e que tenham força de vontade e coragem para enfrentar as adversidades reais que certamente irão ocorrer em suas vidas. Aliás, dois efeitos absolutamente claros de todos os meios eletrônicos são justamente prejudicar o desenvolvimento da força de vontade e da concentração mental. Como é que um jovem vai prestar atenção a uma aula se não consegue se concentrar? Como ele irá estudar se não tem quase força de vontade?

Sobre pesquisas mostrando os inúmeros e trágicos efeitos negativos dos meios eletrônicos, veja-se meu artigo

http://www.ime.usp.br/~vwsetzer/efeitos-negativos-meios.html


- Alguns defensores das novas tecnologias na escola acreditam que estamos diante de um novo paradigma educacional, pelo qual o estudante "anda com as próprias pernas" e busca o conhecimento desejado nos infinitos bancos de dados na internet. Como o Sr. analisa este ponto de vista?

Em primeiro lugar, esse "andar com as próprias pernas" deve ser adequado para a idade. Por exemplo, uma criança pequena pode ter a liberdade de escolher com qual brinquedo quer brincar, dentre os brinquedos sadios e apropriados para sua idade e  cultura, colocados a sua disposição por pais e professores. A propósito, essa individualização em relação a cada criança não existe nos meios eletrônicos, pois são todos eles são dirigidos a uma massa muito grande, milhões de pessoas, isto é, massificam por natureza.

Em segundo lugar, crianças e adolescentes simplesmente não têm a maturidade necessária para decidir o que é bom ou apropriado para si. Só um adulto com um certo grau de cultura tem essa maturidade. Dê-se, por exemplo, um computador para uma criança ou adolescente. O que eles vão fazer com ele? Ora bolas, vão brincar e se divertir, e isso é absolutamente normal. Isto é, não vão usar o aparelho para nada de sério – a não ser que um professor, ignorante do mal que faz para seus alunos, e o perigo ao qual os expõe, exija alguma tarefa usando a Internet. Mas, terminada a tarefa, o aluno vai imediatamente usar o computador e a Internet para coisas que, na quase totalidade das vezes, não são sadias.  Dar um computador para uma criança ou adolescente é um crime educacional, veja-se meu artigo

http://www.ime.usp.br/~vwsetzer/um-laptop-por-crianca.html

Nesse artigo eu cito uma reportagem do New York Times, mostrando que, já há anos atrás, várias escolas americanas estão proibindo os alunos de trazerem laptops para a escola, pois isso estava prejudicando enormemente o ensino.

Vejam-se as dificuldades crescentes que os professores estão tendo para ensinar seja lá o que for. Em grande parte, a dificuldade dos alunos se concentrarem na aula e o desrespeito com que tratam o professor são consequências diretas do uso dos meios eletrônicos. Nós temos que mudar algo para melhorar o futuro da humanidade. Essa melhora passa necessariamente por colocar os meios eletrônicos em seu devido lugar. Por exemplo, talvez a partir da 8a série, usar um vídeo para ilustrar alguma coisa. Só que é necessário compreender que as telas induzem um estado de sonolência, de modo que essa ilustração deve ser muito breve, entremeada de discussões. A TV, a maior tragédia que já aconteceu à humanidade (metade dela é bestificada todos os dias por esse aparelho), nunca funcionou como veículo educacional porque ela sempre foi mal usada.

- Para o Sr., essa iniciativa melhora ou piora o trabalho do professor?

Piora enormemente. Em lugar de o professor dar aulas interessantes, que entusiasmem seus alunos, o uso de meios eletrônicos é usado justamente porque o professores não têm essa capacidade. É uma tragédia que um aparelho possa atrair mais um aluno do que uma pessoa humana. Isso simplesmente mostra que essa pessoa não tem capacidade educacional – ou que os alunos estão mentalmente corrompidos e não conseguem mais prestar atenção a uma aula decente.