LIBERDADE, IGUALDADE, FRATERNIDADE:
PASSADO, PRESENTE, FUTURO
Valdemar W. Setzer
www.ime.usp.br/~vwsetzer
Original: 18/3/13; esta versão: 1/6/14
(Ver também traduções para o inglês e para o tcheco)
A tríade "liberdade, igualdade, fraternidade"
tornou-se popular com a Revolução Francesa; Robespierre
propôs em 1790 que ela fosse escrita nos uniformes da Guarda Nacional
e em todas as bandeiras. Em 1848 esse lema foi definido na constituição
francesa como constituindo um princípio da república, e
aparece nas constituições de 1946 e 1958. Ela teve várias
variações, como "união, força, virtude",
usada em lojas maçônicas, ou "liberdade, segurança,
propriedade", "liberdade, unidade, igualdade" etc. Durante
a ocupação nazista foi substituída por "trabalho,
família, pátria". Mas foi a sua forma conhecida hoje
que se tornou um lema da França, adotado inclusive em outros países,
como na constituição hindu de 1950. O primeiro artigo da
Declaração Universal dos Direitos Humanos contém
essa tríade: "Todos os seres humanos nascem livres e iguais
em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência,
devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade."
É interessante notar que esses três ideais
tornaram-se movimentos sociais ao longo da história. Antes de abordarmos
esse aspecto em cada um, é importante caracterizar como ele é
entendido neste texto.
Há dois aspectos a considerar em termos de liberdade:
o exterior e o interior a cada ser humano. O exterior refere-se a dar
liberdade às pessoas. No Velho Testamento já encontramos
o anseio da liberdade em relação a uma comunidade, com a
fuga da escravatura que os judeus sofriam do Egito (Ex. 1-12). Curiosamente,
eles se libertaram do jugo do Faraó mas caíram sob o jugo
de Jeová, uma divindade exigente e vingativa, aliás, com
toda razão para a preparação do que viria mais tarde.
Tinham que seguir os mandamentos e os outros preceitos, incluindo a pureza
de raça, senão eram punidos rigorosamente.
Mais recentemente, aparece a noção de liberdade
universal, com a constituição americana. Em seu famoso "First
Amendment" (primeiro aditivo, estabelecido para garantir liberdades
civis), adotado em 1791, ela estabelece a liberdade de religião,
de discurso ("free speech"), de imprensa e o direito de reunião.
O importante é que com isso estabeleceu-se que qualquer um tem
liberdade de expressar suas ideias.
Outro marco do movimento pela liberdade foi a libertação
dos escravos, adotada em 1863 nos EEUU, libertando 4 milhões de
negros. A Lei Áurea libertando os escravos no Brasil foi promulgada
em 1888; ele foi o último país das Américas a abolir
completamente a escravatura (o último país do mundo foi
a Mauritânia, em 1981).
Hoje em dia a noção de liberdade externa
arraigou-se na humanidade culturalmente evoluída. Por exemplo,
cientistas prezam sua liberdade de pesquisa, isto é, pesquisarem
o que acham mais importante. Professores, especialmente universitários,
prezam a liberdade de ensino, isto é, poderem organizar e dar suas
aulas da maneira que acharem melhor. É interessante notar que as
ementas de disciplinas universitárias são em geral bem sucintas,
o que dá margem para o professor apresentar os tópicos à
sua maneira, introduzir outros e improvisar suas aulas adequando-as a
cada classe.
Outro tipo de liberdade é a interior, isto é,
o livre arbítrio. Note-se que para um materialista ou fisicalista
isto é, uma pessoa que considera, idealmente por hipótese
de trabalho e não por crença, existirem exclusivamente processos
materiais, físicos, no universo e no ser humano o livre
arbítrio não pode existir. O raciocínio que leva
necessariamente a isso é simples: uma partícula atômica
não pode ter livre arbítrio, portanto não o pode
ter um aglomerado delas formando um átomo, nem um aglomerado de
átomos formando uma molécula, nem um conjunto de moléculas
formando uma célula, nem um grupo de células formando um
tecido, nem uma coleção de tecidos formando órgãos
e, finalmente, uma coleção de órgãos formando
um ser vivo ou um ser humano.
No entanto, expandindo-se a concepção
fisicalista do universo e do ser humano, não há problema
algum em se admitir, novamente idealmente como hipótese e não
como crença, que existem fenômenos e processos não
físicos que influenciam o comportamento da matéria, isto
é, que não podem ser reduzidos a fenômenos puramente
físicos. Tenho uma teoria de como isso é possível
sem violar as "leis" e condições físicas.
Brevemente, basta considerar que os seres vivos assumem em cada instante
um certo estado material e, no decorrer do tempo, há transições
de certos estados para outros estados. Suponhamos a existência de
transições não deterministas de um certo estado A
para outros B, C etc., isto é, estando no estado A, não
se pode determinar fisicamente que a próxima transição
se dará para B, para C etc. Suponhamos, além disso, que
a escolha de qual transição não determinista
deve ser tomada em cada instante não requer energia. Nesse caso,
a escolha pode ser feita por um membro não físico do ser
vivo. Entenda-se "membro não físico" como uma
parte do ser que não pode ser reduzida a processos físicos;
ela faz parte da totalidade do ser, é ligada ao seu corpo físico
e atua sobre ele, e não se confunde com partes semelhantes de outros
seres. Assim explico parcialmente a origem e manutenção
das formas orgânicas dos seres vivos, com suas fantásticas
simetrias, como as de nossas mãos e orelhas. Se o crescimento delas,
que é feito por subdivisão celular, não fosse controlado
externamente ao organismo físico, a simetria durante o crescimento
e a regeneração de tecidos não seria preservada no
grau em que se a observa. Mais especificamente, dado um tecido de um ser
vivo, quais células dele vão se subdividir no próximo
instante é também um processo não determinista; nesse
caso, a escolha das células que vão se subdividir pode ser
feita por um "membro" não físico da constituição
não física de um ser vivo, que impõe a forma orgânica
mantendo a simetria. Um outro exemplo de possível não determinismo
é o fato de que certos genes podem produzir, cada um, a síntese
de vários aminoácidos diferentes que, posteriormente, produzem
proteínas. Na escolha de qual aminoácido deve ser sintetizado
a partir de um gene algo não físico pode influenciar o desenvolvimento
do ser vivo. Observe-se que se um ser vivo fosse totalmente sujeito às
"leis" e condições físicas ele necessariamente
teria uma forma cristalina ou amorfa, como nos minerais, e não
as formas típicas das espécies de seres vivos que, por sinal,
nos fazem reconhecer exteriormente uma planta ou animal como pertencendo
à sua espécie. Reconhecemos essas formas com nosso pensamento,
o que sugere que em sua origem elas também são da natureza
do pensamento.
Qualquer processo interior que altera um ser vivo não
está sujeito a uma sequência detectável de causas
e efeitos físicos: pesquisando-se essa sequência sempre,
absolutamente sempre, chega-se a um beco sem saída. Por exemplo,
o/a leitor/a pode decidir mentalmente fazer um certo movimento com um
braço e, em seguida, realmente efetuá-lo. Suponhamos que
os tecidos musculares do braço se alteraram, alguns se contraindo
e outros se expandindo, devido a impulsos elétricos ou químicos
recebidos dos denominados "nervos motores". Ótimo. Mas
por que os nervos motores produziram esses impulsos? Suponhamos que eles,
por sua vez, receberam impulsos de uma região R1 do cérebro.
Ótimo. Mas por que essa região R1 emitiu esses impulsos?
Suponhamos que ela recebeu impulsos de outra região R2. Ótimo.
Mas por que R2 emitiu esses impulsos, e assim por diante? Vê-se
assim que é impossível determinar a causa primeira de um
movimento consciente que fazemos, isto é, imaginado previamente.
Seguindo minha concepção de mundo vou supor,
por hipótese, que existe o livre arbítrio no ser humano
(mas não existe nos animais e nas plantas). Essa hipótese
é baseada em minha própria experiência de poder determinar
um próximo pensamento, escolhendo conscientemente entre vários
possíveis, sem que essa escolha seja forçada por gostos
ou memórias. Por exemplo, posso escolher mentalmente dois números
que jamais vi ou sobre os quais jamais pensei, e depois escolher apenas
um deles para "visualizar" mentalmente, com os olhos fechados,
durante alguns instantes, como num mostrador desses de senhas de filas.
Com essa hipótese, a liberdade exterior deve permitir que a liberdade
interior, isto é, o livre arbítrio, se manifeste. Note-se
que é possível impedir o livre arbítrio e seu exercício:
basta colocar a pessoa num estado em que ela não esteja com plena
autoconsciência. É isso que fazem as bebidas alcoólicas
tomadas em demasia, é isso que fazem as drogas psicotrópicas,
a falta de sono, a lavagem cerebral, o estresse, a TV e os jogos eletrônicos
do tipo ação/reação ou "mata-mata",
devido à rapidez com que o jogador deve reagir, pois o pensamento
consciente é relativamente lento.
Portanto, é interessante considerar que a liberdade
exterior é apreciada pois permite que a pessoa possa exercer exteriormente
seu livre arbítrio, isto é, possa pensar livremente e assim
planejar mentalmente e posteriormente executar ações com
seus membros motores ou falando. Isso ocorre, por exemplo, quando se permite
a alguém ter suas ideias (dá-se à pessoa a liberdade
de exercer seu livre arbítrio) e expressá-las (liberdade
exterior de expressão ou de ação).
É possível que o movimento pela liberdade
exterior tenha sido um reflexo da conquista, pela humanidade, do livre
arbítrio. Isto é, numa certa época da história,
as pessoas começaram a sentir que podiam ter liberdade em seu pensamento:
observando-se interiormente, verificaram que podiam escolher seu próximo
pensamento e concentrar-se nele, o que hoje qualquer pessoa pode vivenciar
em si própria. Constatando essa liberdade de pensamento em si próprias,
e o fato de poderem executar no mundo ações previamente
planejadas, as pessoas começaram a lutar pela liberdade exterior,
justamente a fim de poderem executar suas ações para o exterior
de si próprias. Nenhuma pessoa moderna deveria contentar-se em
seguir mandamentos, dogmas, leis e regras sociais sem compreender sua
razão de ser e reconhecer sua validade. Desse modo, eles passam
a ser sugestões e não imposições. Por exemplo,
existe a lei de que não se deve atravessar um semáforo vermelho.
Se ela é seguida por medo de se levar uma multa ou ter seu carro
abalroado por outro, ou mesmo por costume, não se está agindo
livremente. Mas se se reconhece que a lei é válida por proteger
outras pessoas e ordenar o trânsito, pode-se segui-la em liberdade.
Como já foi dito, o movimento pela liberdade exterior
universal é relativamente antigo, pois começou aparentemente
nos fins do séc. XVIII. Obviamente, continua até hoje cada
vez com mais intensidade.
Atualmente estamos em pleno desenvolvimento de outro
movimento, o dos direitos humanos. Ora, esses direitos, que se expressam
em leis e regras sociais de conduta, têm a ver com a igualdade.
Todos devem ser tratados igualmente perante as leis que tratam de direitos
e deveres. Se uma lei impõe que não se deve fazer discriminação
de gênero, de religião, de nacionalidade, de etnia ou de
características físicas, ela deve ser aplicada da mesma
maneira para todos.
É interessante notar como está se dando
possibilidades a deficientes físicos poderem, por exemplo, locomover-se
para todos os lugares como as pessoas que não têm essa deficiência.
Esse é o caso, bastante recente, do rebaixamento das calçadas
ou da instalação de plataformas móveis em escadas
em locais onde não há elevador, para uso por cadeirantes.
Uma outra manifestação dos direitos humanos é reconhecer
que preferência sexual é um assunto estritamente pessoal
e ninguém mais tem nada a ver com isso. Se duas pessoas do mesmo
sexo resolvem viver juntas para sempre, devem ter os mesmos direitos civis
do que duas pessoas de sexos diferentes que tenham a mesma intenção.
As grandes mudanças que estão ocorrendo nessa área
no momento mostram mais uma aplicação da igualdade de direitos.
É maravilhoso presenciar, no presente, a eclosão
e desenvolvimento da consciência dos direitos humanos. Mas qual
a causa desse desenvolvimento? Creio que é a percepção
intuitiva de que há algo por "detrás" de cada
ser humano, ligado intimamente a ele, que chamarei de seu Eu Superior,
a essência de cada um, que não é físico (portanto
não tem gênero), e não tem religião, etnia
e nacionalidade. Esse Eu Superior é distinto do que denomino de
Eu Inferior, que engloba o corpo físico e mais os gostos, instintos,
memória, temperamento etc. O Eu Superior, como o Inferior, é
absolutamente individual – por isso gêmeos univitelinos acabam tendo
em geral interesses e vidas completamente diferentes, apesar de terem
o mesmo DNA e eventualmente educações infantis e juvenis
muito parecidas. É por causa desse Eu Superior que podemos entrar
em contato com conceitos não físicos universais e eternos,
como os matemáticos. Por exemplo, jamais alguém viu um ponto
geométrico ou uma circunferência perfeita; no entanto, na
geometria trabalhamos com esses conceitos, que claramente não são
físicos.
Todos os Eus Superiores, apesar de serem diferentes,
são da mesma natureza, e constituem a verdadeira essência
de cada ser humano. Talvez seja a percepção intuitiva deles
que levou ao universalismo que está se manifestando fortemente
nos últimos tempos. Por exemplo, pessoas da União Europeia
(UE) têm o direito de morar em qualquer país; não
há controle da movimentação das pessoas de um país
para outro na UE, uma consequência do Tratado de Schengen, de 1995.
Lá, universidades dão aos seus alunos o direito de fazerem
parte de seus cursos em outras universidades em qualquer país da
UE.
Da mesma maneira que o livre arbítrio, uma pessoa
com uma concepção materialista ou fisicalista do mundo e
do ser humano não pode admitir a existência de um Eu Superior.
Para ele, o ser humano resume-se exclusivamente ao seu corpo físico,
como foi herdado e depois modificado pelo meio ambiente. Mas aí
não pode haver igualdade – note-se que um transplante é
rejeitado justamente por não sermos fisicamente iguais. Pelo contrário,
para alguém que admite a existência de processos e membros
não físicos no ser humano, não deve haver nenhum
impedimento em supor, idealmente por hipótese de trabalho e não
por crença, a existência desse Eu Superior, aquilo que cada
ser humano tem de divino dentro de si. O reconhecimento desse Eu Superior
é que deveria ser o motivo consciente do respeito pelos outros,
isto é, a origem do impulso pela igualdade.
Como vimos, o movimento pela liberdade já é
relativamente antigo, isto é, começou no séc. XVIII.
Por outro lado, o movimento pela igualdade, especialmente a igualdade
de direitos, está ocorrendo e se desenvolvendo no presente. Como
em tudo o que é humano e social (pois a sociedade e as relações
sociais dependem dos indivíduos), não há nessas áreas
rigidez e contornos precisamente delimitados. Cada ser humano é
imprevisível. O maior assassino pode regenerar-se e se tornar importante
socialmente. Assim, apesar de os movimentos pela liberdade e pela igualdade
de direitos terem aparecido e se desenvolvido respectivamente no passado
e no presente, é possível encontrar em épocas muito
remotas suas manifestações, ainda incipientes, e localizadas.
O que aparecerá e se desenvolverá no futuro?
Parece-me que o futuro nos reserva o desenvolvimento
do terceiro ideal da Revolução Francesa: a fraternidade.
Vejamos inicialmente o que ela significa.
Talvez outra denominação torne mais clara
a compreensão do que é a fraternidade: a solidariedade.
Em termos sociais, não basta permitir que uma pessoa seja livre
e que tenha direitos iguais aos dos outros: é necessário
ajudá-la a se desenvolver.
Tivemos no Brasil um triste exemplo do que significa
dar liberdade sem condições e ajuda para que ela seja exercida:
a libertação dos escravos jogou-os na sociedade sem a mínima
possibilidade de se realizarem como indivíduos e até mesmo
de sobreviverem, pois de repente ficaram sem profissão e sem seu
mentor que, apesar de muitas vezes não tratá-los com dignidade,
pelo menos lhes dava alimento e moradia.
Assim, fraternidade, solidariedade, significa ajudar
quem tem necessidade de ajuda. Há muitas pessoas e instituições
que já fazem isso. Por exemplo, tenho uma grande admiração
pelo movimento espírita kardecista, tão popular no Brasil
(atenção, não sou espírita), pelas obras sociais
que realiza, como creches, asilos, hospitais, ajuda (de sua maneira peculiar)
a pessoas com problemas psíquicos etc. No entanto, observo que
não há ainda um impulso de fraternidade que seja universal,
como se passa com a liberdade e com a igualdade de direitos.
Se algum grupo de pessoas desrespeita a liberdade dos
outros ou sua igualdade de direitos, achamos que ele representa uma volta
ao passado, isto é, está se comportando como a humanidade
se comportava em tempos remotos, como por exemplo na Idade Média.
No entanto, ainda falta muito para acharmos que quem não ajuda
os outros não é uma pessoa moderna, do presente. Isso mostra
que ainda não existe a mentalidade generalizada da fraternidade.
Na verdade, ela é muito antiga – parece-me que o grande introdutor
da fraternidade universal (isto é, não dentro de uma família
ou comunidade) foi o Cristo, que ajudou indistintamente a todos os que
o procuravam, inclusive irritando com isso os de sua comunidade religiosa,
que era fortemente étnica. Note-se que ele não quis introduzir
uma nova religião, pois esse não seria um impulso universalista;
parece-me que ele quis renovar o judaísmo tornando-o universal,
e não mais uma religião étnica como era o caso. O
grande Buda introduziu a doutrina da compaixão e do amor, e queria
acabar com o sofrimento. Segundo ele, o nascimento, a doença, a
velhice, a morte e a não obtenção do que se deseja
é que levam ao sofrimento. Sua solução foi um desenvolvimento
individual mental para que a pessoa se desligue da Terra, de todos os
desejos e impulsos que a prendem ao mundo físico. Não foi
essa a mensagem do Cristo: o sofrimento faz parte de nosso desenvolvimento;
devemos superá-lo por nossas ações aqui mesmo, onde
podemos escolher entre fazer o bem ou o mal, isto é, podemos ser
livres. Infelizmente, sua mensagem foi totalmente deturpada, e continua
o sendo, por muitas religiões que se dizem cristãs. Não
devemos deixar essas aberrações empanarem a mensagem e o
exemplo de vida que ele deu, sendo talvez o mais importante a prática
do amor altruísta. Uma pessoa que o pratica deveria ser considerada
como sendo cristã, independente de seguir uma religião que
não se diz cristã. Observe-se que o amor altruísta
só pode ser praticado a partir do livre arbítrio: ele não
deve ser o resultado de uma imposição externa e nem de um
prazer interno em praticá-lo, pois a busca desse prazer proviria
de um egoísmo. O egoísmo é justamente o contrário
do amor altruísta. O amor altruísta provém do que
caracterizei muito brevemente como Eu Superior, e o egoísmo, do
Eu Inferior. Portanto, a fraternidade pressupõe a liberdade e a
igualdade (o reconhecimento do outro como um igual, isto é, também
tendo um Eu Superior).
O desenvolvimento do egoísmo foi uma necessidade
para a humanidade. Sem ele, não teríamos desenvolvido a
percepção da própria individualidade e, portanto,
a autoconsciência. No entanto, agora estamos na fase de termos que
suplantá-lo pelo amor altruísta.
Como citado, os movimentos pela liberdade e pela igualdade
apareceram naturalmente, "automaticamente". A primeira, talvez
como consequência do aparecimento e desenvolvimento do livre arbítrio
que, para se manifestar, necessitava da liberdade exterior. A segunda,
pela percepção intuitiva do Eu Superior do outro. Será
que o movimento pela fraternidade universal aparecerá naturalmente,
devido a um desenvolvimento "automático" da humanidade?
Se observarmos a evolução social desde
o século passado, podemos constatar um aumento exacerbado do egoísmo
e da ambição. O próprio sistema capitalista segue
a afirmação de Adam Smith em seu livro "The Wealth
of Nations" ("A Riqueza das Nações", de 1776),
de que a satisfação do egoísmo e da ambição
pessoais iria fazer surgir uma "mão invisível"
que distribuiria as riquezas e traria a felicidade geral. Infelizmente
essa "mão", além de efetivamente jamais ter sido
vista, nunca deve ter atuado, pois o que vemos é um crescimento
das desigualdades econômicas e uma miséria social e individual
crescentes – contando aí a crescente dificuldade nos relacionamentos
sociais e as dependências, vícios, não só de
fumo, álcool e drogas, mas também o mais recente, o da Internet.
Jamil Chade, em seu livro "O mundo não é plano – a
tragédia silenciosa de 1 bilhão de famintos" (de 2009)
mostra com toques bem realistas, inclusive com suas próprias vivências,
as tragédias humanas causadas pela fome e pela sede. E o mais trágico
dessa situação é que produzimos ou poderíamos
produzir alimentos suficientes para alimentar toda a humanidade. Somente
devido, em última análise, ao egoísmo e à
ambição de pessoas, empresas e governos é que essa
situação desumana é mantida. O desperdício
de alimentos, a ineficiência na produção e no consumo
(por exemplo, comer carne é muito menos eficiente economicamente
do que comer vegetais e laticínios), a industrialização
indevida (provocando um empobrecimento dos alimentos e a produção
de "junk food", alimentos sem valor nutritivo) são alguns
dos fatores que poderiam ser mudados se houvesse um real espírito
de fraternidade, isto é, pensando na satisfação da
necessidades das pessoas e não no lucro desmedido.
Um sintoma do egoísmo crescente é a competição
também crescente. Acontece que qualquer competição
é intrinsecamente antissocial, pois nela alguém necessariamente
ganha e outro necessariamente perde. Quem ganha fica feliz, sente-se realizado
e orgulhoso, e quem perde sente-se, no mínimo, frustrado. Assim,
a felicidade de um é obtida à custa da infelicidade ou frustração
de outro. O contrário da competição é a cooperação,
que é intrinsecamente social e fraterna.
O crescimento do egoísmo, da ambição
e da competição faz-me duvidar que desenvolveremos naturalmente
um espírito de fraternidade, assim como desenvolvemos os
espíritos
de liberdade e de igualdade. É muito possível que esse desenvolvimento
tenha que ser feito conscientemente, por meio de autoeducação
dos adultos e educação de crianças e jovens. Por
exemplo, parece-me que jogos competitivos deveriam ser totalmente eliminados
das escolas, substituídos por jogos cooperativos. Numa classe,
os alunos que são bons em uma matéria deveriam ajudar os
que nelas têm dificuldades. No fim do ensino médio todos
os alunos deveriam fazer um estágio em alguma instituição
de ajuda a menores, adultos ou idosos com dificuldades. É ajudando
os outros que se cria a mentalidade e o gosto pelo exercício da
fraternidade, do mesmo modo que é pelo contato com o sofrimento
que se desenvolve o sentimento de compaixão.
A partir do sentimento de compaixão pode-se sentir
a responsabilidade de ajudar os outros, e isso já é positivo.
No entanto, penso que o caminho correto é que se preze e se contribua
para a liberdade e a igualdade do outro, se aja fraternalmente para com
outro, e se pratique tudo isso continuamente a partir de uma compreensão
profunda do ser humano. Infelizmente, essa compreensão não
pode ser obtida a partir de uma concepção materialista,
fisicalista, do ser humano. Se este é simplesmente matéria,
se é considerado como uma máquina, não há
mal em restringir-se sua liberdade (essa concepção não
pode admitir a existência de livre arbítrio), em não
tratá-lo como igual (afinal, fisicamente somos todos diferentes,
pois em caso contrário não haveria rejeição
de órgãos transplantados), em não ajudá-lo.
Por que uma "coisa" material poderia beneficiar-se com liberdade,
igualdade e fraternidade? Somente uma pessoa psicótica poderia
achar que deve tratar uma máquina, por exemplo seu computador,
com liberdade, com igualdade de direitos e como algo que necessita de
ajuda.
Portanto, para abrirmos o caminho para um futuro com
um sentimento de fraternidade universal devemos passar inicialmente pela
suplantação daquilo que considero o maior mal da humanidade
atual: a concepção materialista, fisicalista, do universo
e do ser humano. A autoeducação referida há pouco
deveria iniciar-se com o abandono do preconceito de que neles há
somente matéria. Porém, cuidado, não estou propondo
aqui que se abracem correntes religiosas ou espiritualistas que se baseiam
na satisfação de sentimentos, prometendo conforto físico
ou psicológico, felicidade ou, pior ainda, ganhos materiais. Estou
propondo que se abandone a concepção materialista partindo
de um espírito verdadeiramente científico, sem preconceitos,
com busca de compreensão, transmissão conceitual de conhecimentos
e pesquisa consciente. Isso já existe.
Agradecimento
Agradeço a Vitor Morgensztern por valiosas contribuições
quanto à redação.
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