Project Gutenberg's Memorias Postumas de Braz Cubas, by Machado de Assis This eBook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you'll have to check the laws of the country where you are located before using this ebook. Title: Memorias Postumas de Braz Cubas Author: Machado de Assis Release Date: June 2, 2017 [EBook #54829] Language: Portuguese *** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK MEMORIAS POSTUMAS DE BRAZ CUBAS *** Produced by Laura Natal Rodriguez & Marc D'Hooghe at Free Literature (online soon in an extended version, also linking to free sources for education worldwide ... MOOC's, educational materials,...) MEM�RIAS P�STHUMAS DE BRAZ CUBAS POR MACHADO DE ASSIS RIO DE JANEIRO TYPOGRAPHIA NACIONAL 1881 OBRAS DO AUTOR Mem�rias P�sthumas de Braz Cubas Helena, romance Yay� Garcia, romance Resurrei��o, romance A m�o e a luva, romance Historias da meia noite Contos Fluminenses Americanas, poesias Phalenas, poesias Chrysalidas, poesias Tu s�, tu, puro amor, com�dia Os deuses de casaca, com�dia Desencantos, com�dia Theatro AO LEITOR Que, no alto do principal de seus livros, confessasse Stendhal havel-o escripto para cem leitores, cousa � que admira e consterna. O que n�o admira, nem provavelmente consternar� � se este outro livro n�o tiver os cem leitores de Stendhal, nem cincoenta, nem vinte, e quando muito, dez. Dez? Talvez cinco. Trata-se, na verdade, de uma obra diffusa, na qual eu, Braz Cubas, se adoptei a f�rma livre de um Sterne, de um Lamb, ou de um de Maistre, n�o sei se lhe metti algumas rabugens de pessimismo. P�de ser. Obra de finado. Escrevi-a com a penna da galhofa e a tinta da melancholia; e n�o � difficil antever o que poder� sair desse connubio. Accresce que a gente grave achar� no livro umas apparencias de puro romance, ao passo que a gente frivola n�o achar� nelle o seu romance usual; e eil-o ahi fica privado da estima dos graves e do amor dos frivolos, que s�o as duas columnas maximas da opini�o. Mas eu ainda espero angariar as sympatias da opini�o, e o meio efficaz para isso � fugir a um prologo explicito e longo. O melhor prologo � o que cont�m menos cousas, ou o que as diz de um geito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinario que empreguei na composi��o destas _Mem�rias_, trabalhadas c� no outro seculo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, e ali�s desnecessario ao entendimento da obra. A obra em si mesma � tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te n�o agradar, pago-te com um piparote, e adeus. BRAZ CUBAS. AO VERME QUE PRIMEIRO ROEU AS FRIAS CARNES DO MEU CADAVER DEDICO COMO SAUDOSA LEMBRAN�A ESTAS MEM�RIAS P�STHUMAS CAPITULO I Obito do autor Algum tempo hesitei se devia abrir estas memorias pelo principio ou pelo fim, isto �, se poria em primeiro logar o meu nascimento ou a minha morte. Supposto o uso vulgar seja come�ar pelo nascimento, duas considera��es me levaram a adoptar differente methodo: a primeira � que eu n�o sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro ber�o; a segunda � que o escripto ficaria assim mais galante e mais novo. Moys�s, que tambem contou a sua morte, n�o a poz no introito, mas no cabo: differen�a radical entre este livro e o Pentateuco. Dito isto, expirei �s duas horas da tarde de uma sexta feira do mez de agosto de 1869, na minha bella chacara de Catumby. Tinha uns sessenta e quatro annos, rijos e prosperos, era solteiro, possuia cerca de tresentos contos e fui acompanhado ao cemiterio por onze amigos. Onze amigos! Verdade � que n�o houve cartas nem annuncios. Accresce que chovia--peneirava--uma chuvinha miuda, triste e constante, t�o constante e t�o triste, que levou um daquelles fieis da ultima hora a intercalar esta engenhosa id�a no discurso que proferiu � beira de minha cova:--�V�s, que o conhecestes, meus senhores, v�s podeis dizer commigo que a natureza parece estar chorando a perda irreparavel de um dos mais bellos caracteres que tem honrado a humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do ceu, aquellas nuvens escuras que cobrem o azul como um crepe funereo, tudo isso � a dor crua e m� que lhe r�e � natureza as mais intimas entranhas; tudo isso � um sublime louvor ao nosso illustre finado.� Bom e fiel amigo! N�o, n�o me arrependo das vinte apolices que lhe deixei. E foi assim que cheguei � clausula dos meus dias; foi assim que me encaminhei para o _undiscovered country_ de Hamlet, sem as ancias nem as duvidas do mo�o principe, mas pausado e tropego, como quem se retira tarde do expectaculo. Tarde e aborrecido. Viram-me ir umas nove ou dez pessoas, entre ellas tres senhoras,--minha irm� Sabina, casada com o Cotrim,--a filha, um lyrio do valle,--e... Tenham paci�ncia! daqui a pouco lhes direi quem era a terceira senhora. Contentem-se de saber que essa anonyma, ainda que n�o parenta, padeceu mais do que as parentas. � verdade, padeceu mais. N�o digo que se carpisse, n�o digo que se deixasse rolar pelo ch�o, epileptica. Nem o meu �bito era cousa altamente dramatica... Um solteir�o que expira aos sessenta e quatro annos, n�o parece que reuna em si todos os elementos de uma tragedia. E dado que sim, o que menos convinha a essa anonyma era apparental-o. De p�, � cabeceira da cama, com os olhos est�pidos, a boca entreaberta, a triste senhora mal podia cr�r na minha extinc��o. --Morto! morto! dizia comsigo. E a imagina��o della, como as cegonhas que um illustre viajante viu desferirem o v�o desde o Illysso �s ribas africanas, sem embargo das ruinas e dos tempos,--a imagina��o dessa senhora tambem voou por sobre os destro�os presentes at� �s ribas de uma Africa juvenil... Deixal-a ir; l� iremos mais tarde; l� iremos quando eu me restituir aos primeiros annos. Agora, quero morrer tranquillamente, methodicamente, ouvindo os solu�os das damas, as fallas baixas dos homens, a chuva que tamborila nas folhas de tinhor�o da chacara, e o som estridulo de uma navalha que um amolador est� afiando l� f�ra, � porta de um correeiro. Juro-lhes que essa orchestra da morte foi muito menos triste do que podia parecer; e de certo ponto em deante chegou a ser deliciosa. A vida estrebuchava-me no peito, com uns impetos de vaga marinha, esvaia-se-me a consciencia, eu descia � immobilidade physica e moral, e o corpo fazia-se-me planta, e pedra, e lodo, e cousa nenhuma. Morri de uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, do que uma id�a grandiosa e util, a causa da minha morte, � possivel que o leitor me n�o creia, e todavia � verdade. Vou expor-lhe summariamente o caso. Julgue-o por si mesmo. CAPITULO II O emplasto Com effeito, um dia de manh�, estando a passear na chacara, pendurou-se-me uma id�a no trapezio que eu tinha no cerebro. Uma vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais arrojadas cabriolas de volantim, que � possivel crer. Eu deixei-me estar a contemplal-a. Subito, deu um grande salto, estendeu os bra�os e as pernas, at� tomar a f�rma de um X: decifra-me ou devoro-te. Essa id�a era nada menos que a inven��o de um medicamento sublime, um emplasto anti-hypocondriaco, destinado a alliviar a nossa melancholica humanidade. Na peti��o de privilegio que ent�o redigi, chamei a atten��o do governo para esse resultado, verdadeiramente christ�o. Todavia, n�o neguei aos amigos as vantagens pecuniarias que deviam resultar da distribui��o de um producto de tamanhos e t�o profundos effeitos, Agora, por�m, que estou c� do outro lado da vida, posso confessar tudo: o que me influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornaes, mostradores, folhetos, esquinas, e emfim nas caixinhas do remedio, estas tres palavras: _emplasto Braz Cubas._ Para que negal-o? Eu tinha a paix�o do arruido, do cartaz, do foguete de lagrimas. Talvez os modestos me arguam esse defeito; fio por�m que esse talento me h�o de reconhecer os habeis; e eu era habil. Assim, a minha id�a trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o publico, outra para mim. De um lado, philanthropia e lucro; de outro lado, s�de de nomeada. Digamos:--amor da gloria. Um tio meu, conego de prebenda inteira, costumava dizer que o amor da gloria temporal era a perdi��o das almas, que s� devem cobi�ar a gloria eterna. Ao que retorquia outro tio, official de um dos antigos ter�os de infantaria, que o amor da gloria era a cousa mais verdadeiramente humana que ha no homem, e, conseguintemente, a sua mais genuina fei��o. Decida o leitor entre o militar e o conego; eu volto ao emplasto. CAPITULO III Genealogia Mas, j� que fallei nos meus dous tios, deixem-me fazer aqui um curto esbo�o genealogico. O fundador da minha familia foi um certo Dami�o Cubas, que floreceu na primeira metade do seculo XVIII. Era tanoeiro de officio, natural do Rio de Janeiro, onde teria morrido na penuria e na obscuridade, se s�mente exercesse a tanoaria. Mas n�o; fez-se lavrador, plantou, colheu, permutou o seu producto por boas e honradas patacas, at� que morreu, deixando grosso cabedal a um filho, o licenciado Luiz Cubas. Neste rapaz � que verdadeiramente come�a a serie de meus av�s--dos av�s que a minha familia sempre confessou--, porque o Dami�o Cubas era afinal de contas um tanoeiro, e talvez mau tanoeiro, ao passo que o Luiz Cubas estudou em Coimbra, primou no Estado, e foi um dos amigos particulares do vice-rei conde da Cunha. Como este appellido de Cubas lhe cheirasse excessivamente a tanoaria, allegava meu pae, bisneto do Dami�o, que o dito appellido f�ra dado a um cavalleiro, heroe nas jornadas da Africa, em premio da fa�anha que praticou, arrebatando tresentas cubas aos mouros. Meu pae era homem de imagina��o; escapou � tanoaria nas azas de um _calembour._ Era um bom caracter meu pae, var�o digno e leal como poucos. Tinha, � verdade, uns fumos de pacholice; mas quem n�o � um pouco pachola nesse mundo? Releva notar que elle n�o recorreu � inventiva, sen�o depois de experimentar a falsifica��o; primeiramente, entroncou-se na familia daquelle meu famoso homonymo, o capit�o-m�r Braz Cubas, que fundou a villa de S. Vicente, onde morreu em 1592, e por esse motivo � que me deu o nome de Braz. Oppoz-se-lhe por�m a familia do capit�o-m�r; e foi ent�o que elle imaginou as tresentas cubas mouriscas. Vivem ainda alguns membros de minha familia, minha sobrinha Venancia, por exemplo, o lyrio do valle, que � a flor das damas do seu tempo; vive o pae, o Cotrim, um sujeito que... Mas n�o anticipemos os successos; acabemos de uma vez com o nosso emplasto. CAPITULO IV A id�a fixa A minha id�a, depois de tantas cabriolas, constituira-se id�a fixa. Deus te livre, leitor, de uma id�a fixa; antes um argueiro, antes uma trave no olho. V� o Cavour; foi a id�a fixa da unidade italiana que o matou. Verdade � que o Bismark n�o morreu; mas, cumpre advertir que a natureza � uma grande caprichosa e a historia uma eterna loureira. Por exemplo, o Suetonio deu-nos um Claudio, que era um verdadeiro banana,--ou �uma abobora� como lhe chamou Seneca, e um Tito, que mereceu ser as delicias de Roma. Veiu modernamente um professor e achou meio de demonstrar que ambos esses conceitos eram erroneos e abstrusos, e que dos dous cesares, o delicioso, o verdadeiramente delicioso, foi o �abobora� de Seneca. E tu, madama Lucrecia, flor dos Borgias, se um poeta te pintou como a Messalina catholica, appareceu um Gregorovius incredulo que te apagou muito essa qualidade, e, se n�o vieste a lyrio, tambem n�o ficaste pantano. Eu deixo-me estar entre o poeta e o sabio. Viva pois a historia, a voluvel historia que d� para tudo; e, tornando � id�a fixa, direi que � ella a que faz os var�es fortes e os doudos; a id�a mobil, vaga ou furta-cor � a que faz os Claudios,--formula Suetonio. Era fixa a minha id�a, fixa como... N�o me occorre nada que seja assaz fixo nesse mundo: talvez a lua, talvez as pyramides do Egypto, talvez a finada dieta germanica. Veja o leitor a compara��o que melhor lhe quadrar, veja-a e n�o esteja dahi a torcer-me o nariz, s� porque ainda n�o cheg�mos � parte narrativa destas memorias. L� iremos. Creio que prefere a anecdota � reflex�o, como os outros leitores, seus confrades, e acho que faz muito bem. Pois l� iremos. Todavia, importa dizer que este livro � escripto com pachorra, com a pachorra de um homem j� desaffrontado da brevidade do seculo, obra supinamente philosophica, de uma philosophia desegual, agora austera, logo brincalhona, cousa que n�o edifica nem destr�e, n�o inflamma nem reg�la, e � todavia mais do que passatempo e menos do que apostolado. Vamos l�; rectifique o seu nariz, e tornemos ao emplasto. Deixemos a historia com os seus caprichos de dama elegante. Nenhum de n�s pelejou a batalha de Salamina, nenhum escreveu a confiss�o do Augsburgo; pela minha parte, se alguma vez me lembro de Cromwell, � s� pela id�a de que Sua Alteza, com a mesma m�o que trancara o parlamento, teria imposto aos inglezes o emplasto Braz Cubas. N�o se riam dessa victoria commum da pharmacia e do puritanismo. Quem n�o sabe que ao p� de cada bandeira grande, publica, ostensiva, ha muitas vezes varias outras bandeiras modestamente particulares, que se hasteam e fluctuam � sombra daquella, com ella cahem, e n�o poucas vezes lhe sobrelevam? Mal comparando, � como a arraia-miuda, que se acolhia � sombra do castello-feudal; cahiu este e a arraia ficou. Verdade � que se fez gra�da e castell�... N�o, a compara��o n�o presta. CAPITULO V Em que apparece a orelha de uma senhora Vae se n�o quando, estando eu occupado em preparar e apurar a minha inven��o, recebi em cheio um golpe de ar; adoeci logo, e n�o me tratei. Tinha o emplasto no cerebro; trazia commigo a id�a fixa dos doudos e dos fortes. Via-me, ao longe, ascender do ch�o das turbas, e remontar ao ceu, como uma aguia immortal; e n�o � deante de t�o excelso expectaculo que um homem pode sentir a dor que o punge. No outro dia estava peor; tratei-me emfim, mas incompletamente, sem methodo, nem cuidado, nem persistencia; tal foi a origem do mal que me trouxe � eternidade. Sabem ja que morri n'uma sexta feira, dia aziago, e creio haver provado que foi a minha inven��o que me matou. Ha demonstra��es menos l�cidas e n�o menos triumphantes. N�o era impossivel, entretanto, que eu chegasse a galgar o cimo de um seculo, e a figurar nas folhas publicas, entre macrobios. Tinha saude e robustez. Supponha-se que, em vez de estar lan�ando os alicerces de uma inven��o pharmaceutica, tratava de colligir os elementos de uma institui��o politica, ou de uma reforma religiosa. Vinha a corrente do ar, que vence, em efficacia, o calculo humano, e l� se ia tudo. Um sopro de ar foi portanto o meu gr�o de ar�a de Cromwell. Assim corre a sorte dos homens. Com esta reflex�o me despedi eu da mulher, n�o direi mais discreta, mas com certeza mais formosa entre as contemporaneas suas, a anonyma do primeiro capitulo, a tal, cuja imagina��o � semelhan�a das cegonhas do Illysso... Tinha ent�o 54 annos, era uma ruina, uma imponente ruina. Imagine o leitor que nos am�mos, ella e eu, muitos annos antes, e que um dia, j� enfermo, vejo-a assomar � porta da alcova... CAPITULO VI Chim�ne, qui l'eut dit?--Rodrigue, qui l'eut cru? Vejo-a assomar � porta da alcova, pallida, commovida, trajada de preto, e alli ficar durante uns dez segundos, sem animo de entrar, ou detida pela presen�a de um homem que estava commigo. Da cama, onde jazia, contemplei-a durante esse tempo, esquecido de lhe dizer nada ou de fazer nenhum gesto. Havia j� dous annos que nos n�o viamos; e eu via-a agora n�o qual era, mas qual fora**, quaes foramos ambos, porque um Ezechias mysterioso fizera recuar o sol at� os dias juvenis. Recuou o sol, sacudi todas as miserias; e este punhado de p�, que a morte ia espalhar na eternidade do nada, p�de mais do que tempo, que � o ministro da morte. Nenhuma agua de Juventa egualaria alli a simples saudade. Cream-me, o menos mau � recordar; ninguem se fie da felicidade presente; ha nella uma gota da baba de Caim. Corrido o tempo e cessado o espasmo, ent�o sim, ent�o talvez se p�de gozar deveras, porque entre uma e outra dessas duas illus�es, melhor � a que se gosta, sem doer. N�o durou muito a evoca��o; a realidade dominou logo; o presente expelliu o passado. Talvez eu exponha ao leitor, em algum canto deste livro, a minha theoria das edi��es humanas. O que por agora importa saber � que Virgilia--chamava-se Virgilia--entrou na alcova, firme, com a gravidade que lhe davam as roupas e os annos, e veiu at� o meu leito. O extranho levantou-se e sahiu. Era um sujeito, que me visitava todos os dias para fallar do cambio, da colonisa��o e da necessidade de desenvolver a via��o ferrea; nada mais interessante para um moribundo. Saiu; Virgilia deixou-se estar de p�; durante algum tempo ficamos a olhar um para o outro, sem articular palavra. Quem diria? De dous grandes namorados, de duas paix�es sem freio, nada mais havia alli, vinte annos depois; havia apenas dous cora��es murchos, devastados pela vida e saciados della, n�o sei se em egual d�se, mas emfim saciados. Virgilia tinha agora a belleza da velhice, um ar austero e maternal; estava menos magra do que quando a vi, pela ultima vez, n'uma festa de S. Jo�o, na Tijuca; e porque era das que resistem muito, s� agora come�avam os cabellos escuros a intercalar-se de alguns fios de prata. --Anda visitando os defuntos? disse-lhe eu.--Ora, defuntos! respondeu Virgilia com um muxoxo. E depois de me apertar as m�os:--Ando a ver se ponho os vadios para a rua. N�o tinha a caricia lacrymosa de outro tempo; mas a voz era amiga e doce. Sentou-se. Eu estava s�, em casa, com um simples enfermeiro; podiamos fallar um ao outro, sem perigo. Virgilia deu-me longas noticias de f�ra, narrando-as com gra�a, com um certo travo de m� lingua, que era o sal da palestra; eu, prestes a deixar o mundo, sentia um prazer satanico em mofar delle, em persuadir-me que n�o deixava nada. --Que id�as essas! interrompeu-me Virgilia um tanto zangada. Olhe que eu n�o volto mais. Morrer! Todos n�s havemos de morrer; basta estarmos vivos. E vendo o relogio: --Jesus! s�o tres horas. Vou-me embora. --J�? --J�; virei amanh� ou depois. --N�o sei se faz bem, retorqui; o doente � um solteir�o e a casa n�o tem senhoras... --Sua mana? --Ha de vir c� passar uns dias, mas n�o p�de ser antes de sabbado. Virgilia reflectiu um instante, levantou os hombros e disse com gravidade: --Estou velha! Ninguem mais repara em mim. Mas, para cortar duvidas, virei com o Nhonh�. Nhonh� era um bacharel, unico filho de seu casamento, que, na edade de cinco annos, f�ra complice inconsciente de nossos amores. Vieram juntos, dous dias depois; e confesso que, ao vel-os alli, na minha alcova, fui tomado de um acanhamento que nem me permittiu corresponder logo �s palavras affaveis do rapaz. Virgilia adivinhou-mo e disse ao filho: --Nhonh�, n�o repares nosso grande manhoso que ahi est�; n�o quer fallar para fazer crer que est� � morte. Sorriu o filho; eu creio quo tambem sorri; e tudo acabou em pura galhofa. Virgilia estava serena e risonha, tinha o aspecto das vidas immaculadas. Nenhum olhar suspeito, nenhum gesto que pudesse denunciar nada; uma egualdade de palavra e de espirito, uma domina��o sobre si mesma, que pareciam e talvez fossem raras. Como tocassemos, casualmente, n'uns amores illegitimos, meio secretos, meio divulgados, vi-a fallar com desdem e um pouco de indigna��o da mulher de que se tratava, ali�s sua amiga; e o filho sentia-se satisfeito, ouvindo aquella palavra digna e forte, e eu perguntava a mim mesmo o que diriam de n�s os gavi�es, se Buffon tivesse nascido gavi�o... Era o meu delirio que come�ava. CAPITULO VII O delirio Que me conste, ainda ninguem relatou o seu proprio delirio; fa�o-o eu, e a sciencia m'o agradecer�. Se o leitor n�o � dado � contempla��o destes phenomenos mentaes, p�de saltar o capitulo; v� direito � narra��o. Mas, por menos curioso que seja, sempre lhe digo que � interessante saber o que se passou na minha cabe�a durante uns vinte a trinta minutos. Primeiramente, tomei a figura de um barbeiro chinez, bojudo, destro, escanhoando um mandarim, que me pagava o trabalho com belisc�es e confeitos: caprichos de mandarim. Logo depois, senti-me transformado na _Summa Theologica_ de S. Thomaz, impressa n'um volume, e encadernada em marroquim, com fechos de prata e estampas; id�a esta que me deu ao corpo a mais completa immobilidade; e ainda agora me lembra que, sendo as minhas m�os os fechos do livro, e cruzando-as eu sobre o ventre, alguem as descruzava (Virgilia de certo), porque a attitude lhe dava a imagem de um defunto. Ultimamente, restituido � f�rma humana, vi chegar um hippopotamo, que me arrebatou. Deixei-me ir, calado, n�o sei se por medo ou confian�a, mas, dentro em pouco, a carreira de tal modo se tornou vertiginosa, que me atrevi a interrogal-o, e com alguma arte lhe disse que a viagem me parecia sem destino. --Engana-se, replicou o animal, n�s vamos � origem dos seculos. Insinuei que deveria ser muitissimo longe; mas o hippopotamo n�o me entendeu ou n�o me ouviu, se � que n�o fingiu uma dessas cousas; e, perguntando-lhe, visto que elle fallava, se era descendente do cavallo de Achilles ou da asna de Bala�o, retorquiu-me com um gesto peculiar a estes dous quadrupedes: abanou as orelhas. Pela minha parte fechei os olhos e deixei-me ir � ventura. J� agora n�o se me d� de confessar que sentia umas taes ou quaes cocegas de curiosidade, por saber onde ficava a origem dos seculos, se era t�o mysteriosa como a origem do Nilo, e sobretudo se valia alguma cousa mais ou menos do que a consumma��o dos mesmos seculos; tudo isto reflex�es de um cerebro enfermo. Como ia de olhos fechados, n�o via o caminho; lembra-me s� que a sensa��o de frio augmentava com a jornada, e que chegou uma occasi�o em que me pareceu entrar na regi�o dos gelos eternos. Com effeito, abri os olhos e vi que o meu animal galopava n'uma planicie branca de neve, com uma ou outra montanha de neve, vegeta��o de neve, e varios animaes grandes e de neve. Tudo neve; chegava a gelar-nos um sol de neve. Tentei fallar, mas apenas pude grunhir esta pergunta anciosa: --Onde estamos? --J� pass�mos o Eden. --Bem; paremos na tenda de Abrah�o. --Mas se n�s caminhamos para traz! redarguiu motejando a minha cavalgadura. Fiquei vexado e aturdido. A jornada entrou a parecer-me enfadonha e extravagante, o frio incommodo, a conduc��o violenta, e o resultado impalpavel. E depois--cogita��es de enfermo--dado que chegassemos ao fim indicado, n�o era impossivel que os seculos, irritados com lhes devassarem a origem, me esmagassem entre as unhas, que deviam ser t�o seculares como elles. Em quanto assim pensava, iamos devorando caminho, e a planicie voava debaixo dos nossos p�s, at� que o animal estacou, e pude olhar mais tranquillamente em torno de mim. Olhar s�mente; nada vi, al�m da immensa brancura da neve, que desta vez invadira o proprio ceu*, at� alli azul. Talvez, a espa�os, me apparecia uma ou outra planta, enorme, brutesca, meneando ao vento as suas largas folhas. O silencio daquella regi�o era egual ao do sepulchro: dissera-se que a vida das cousas fic�ra estupida deante do homem. Cahiu do ar? destacou-se da terra? n�o sei; sei que um vulto immenso, uma figura de mulher me appareceu ent�o, fitando-me uns olhos rutilantes como o sol. Tudo nessa figura tinha a vastid�o das f�rmas selvaticas, e tudo escapava � comprehens�o do olhar humano, porque os contornos perdiam-se no ambiente, e o que parecia espesso era muita voz diaphano. Estupefacto, n�o disse nada, n�o cheguei sequer a soltar um grito; mas, ao cabo de algum tempo, que foi breve, perguntei quem era e como se chamava; curiosidade de delirio. --Chama-me Natureza ou Pandora; sou tua m�e e tua inimiga. Ao ouvir esta ultima palavra, recuei um pouco, tomado de susto. A figura soltou uma gargalhada, que produziu em torno de n�s o effeito de um tuf�o; as plantas torceram-se e um longo gemido quebrou a mudez das cousas externas. --N�o te assustes, disse ella, minha inimizade n�o mata; � sobretudo pela vida que se affirma. Vives: n�o quero outro flagello. --Vivo? perguntei eu, enterrando as unhas nas m�os, como para certificar-me da existencia. --Sim, verme, tu vives. N�o receies perder esse andrajo que � teu orgulho; provar�s ainda, por algumas horas, o p�o da d�r e o vinho da miseria. Vives: agora mesmo que ensandeceste, vives; e se a tua consci�ncia rehouver um instante de sagacidade, tu dir�s que queres viver. Dizendo isto, a vis�o estendeu o bra�o, segurou-me pelos cabellos e levantou-me ao ar, como se f�ra uma simples pluma. S� ent�o pude ver-lhe de perto o rosto, que era enorme. Nada mais quieto; nenhuma contors�o violenta, nenhuma express�o de odio ou ferocidade; a fei��o unica, geral, completa, era a da impassibilidade egoista, a da eterna surdez, a da vontade immovel. Raivas, se as tinha, ficavam encerradas no cora��o. Ao mesmo tempo, nesse rosto de express�o glacial, havia um ar de juventude, mescla de for�a e vi�o, diante do qual me sentia eu o mais debil e descrepito dos seres. --Entendeste-me? disse ella, no fim de algum tempo de mutua contempla��o. --N�o, respondi; nem quero entender-te; tu �s absurda, tu �s uma fabula. Estou sonhando, de certo, ou, se � verdade que enlouqueci, tu n�o passas de uma concep��o de alienado, isto �, uma cousa v�, que a raz�o ausente n�o p�de reger nem palpar. Natureza, tu? a Natureza que eu conhe�o � s� m�e e n�o inimiga; n�o faz da vida um flagello, nem, como tu, traz esse rosto indifferente, como o sepulchro. E porque Pandora? --Porque levo na minha bolsa os bens e os males, e o maior de todos, a esperan�a, consola��o dos homens. Tremes? --Sim; o teu olhar fascina-me. --Creio; eu n�o sou somente a vida; sou tambem a morte, e tu est�s prestes a devolver-me o que te emprestei. Grande lascivo, espera-te a voluptuosidade do nada. Quando esta palavra echoou, como um trov�o, naquelle immenso valle, afigurou-se-me que era o ultimo som que chegava a meus ouvidos; pareceu-me sentir a decomposi��o subita de mim mesmo. Ent�o, encarei-a com olhos supplices, e pedi mais alguns annos. --Pobre minuto! exclamou. Para que queres tu mais alguns instantes de vida? Para devorar e seres devorado depois? N�o est�s farto do expectaculo e da luta? Conheces de sobejo tudo o que eu te deparei menos torpe ou menos afflictivo: o alvor do dia, a melancholia da tarde, a quieta��o da noite, os aspectos da terra, o somno, emfim, o maior beneficio das minhas m�os. Que mais queres tu, sublime idiota? --Viver somente, n�o te pe�o mais nada. Quem me poz no cora��o este amor da vida, se n�o tu? e, se eu amo a vida, porque te has de golpear a ti mesma, matando-me? --Porque j� n�o preciso de ti. N�o importa ao tempo o minuto que passa, mas o minuto que vem. O minuto que vem � forte, jocundo, supp�e trazer em si a eternidade, e traz a morte, e perece como o outro, mas o tempo subsiste. Egoismo, dizes tu? Sim, egoismo, n�o tenho outra lei. Egoismo, conserva��o. A on�a mata o novilho porque o raciocinio da on�a � que ella deve viver, e se o novilho � tenro tanto melhor: eis o estatuto universal. Sobe e olha. Isto dizendo, arrebatou-me ao alto de uma montanha. Inclinei os olhos a uma das vertentes, e contemplei, durante um tempo largo, ao longe, atravez de um nevoeiro, uma cousa unica. Imagina tu, leitor, uma reduc��o dos seculos, e um desfilar de todos elles, as ra�as todas, todas as paix�es, o tumulto dos imperios, a guerra dos appetites e dos odios, a destrui��o reciproca dos seres e das cousas. Tal era o expectaculo, acerbo e curioso expectaculo. A historia do homem e da terra tinha assim uma intensidade que lhe n�o podiam dar nem a imagina��o nem a sciencia, porque a sciencia � mais lenta e a imagina��o mais vaga, emquanto que o que eu alli via era a condensa��o viva de todos os tempos. Para descrevel-a seria preciso fixar o relampago. Os seculos desfilavam n'um turbilh�o, e, n�o obstante, porque os olhos do delirio s�o outros, eu via tudo o que passava diante de mim,--flagellos e delicias,--desde essa cousa que se chama gloria at� essa outra que se chama miseria, e via o amor multiplicando a miseria, e via a miseria aggravando a debilidade. Ahi vinham a cobi�a que devora, a colera que inflamma, a inveja que baba, e a enxada e a penna, humidas de suor, e a ambi��o, a fome, a vaidade, a melancholia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, at� destruil-o, como um farrapo. Eram as formas varias de um mal, que ora mordia a viscera, ora mordia o pensamento, e passeiava eternamente as suas vestes de arlequim, em derredor da especie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia � indifferen�a, que era um somno sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Ent�o o homem, flagellado e rebelde, corria diante da fatalidade das cousas, atraz de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpavel, outro de improvavel, outro de invisivel, cosidos todos a ponto precario, com a agulha da imagina��o; e essa figura,--nada menos que a chimera da felicidade,--ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e ent�o ella ria, como um escarneo, e sumia-se, como uma illus�o. Ao contemplar tanta calamidade, n�o pude reter um grito de angustia, que Natureza ou Pandora escutou sem protestar nem rir; e n�o sei por que lei de transtorno cerebral, fui eu que me puz a rir,--de um riso descompassado e idiota. --Tens raz�o, disse eu, a cousa � divertida e vale a pena,--talvez monotona--mas vale a pena. Quando Job amaldi�oava o dia em que f�ra concebido, � porque lhe davam ganas de ver c� de cima o espect�culo. Vamos l�, Pandora, abre o ventre, e digere-me; a cousa � divertida, mas digere-me. A resposta foi compellir-me fortemente a olhar para baixo, e a ver os seculos que continuavam a passar, velozes e turbulentos, as gera��es que se superpunham �s gera��es, umas tristes, como os Hebreus do captiveiro, outras alegres, como os devassos de Commodo, e todas ellas pontuaes na sepultura. Quiz fugir, mas uma for�a mysteriosa me retinha os p�s; ent�o disse commigo:--�Bem, os seculos v�o passando, chegar� o meu, e passar� tambem, at� o ultimo, que me dar� a decifra��o da eternidade.� E fixei os olhos, e continuei a ver as edades, que vinham chegando e passando, j� ent�o tranquillo e resoluto, n�o sei at� se alegre. Talvez alegre. Cada seculo trazia a sua por��o de sombra e de luz, de apathia e de combate, de verdade e de erro, e o seu cortejo de systemas, de id�as novas, de novas illus�es; em cada um delles rebentavam as verduras de uma primavera, e amarelleciam depois, para remo�ar mais tarde. Ao passo que a vida tinha assim uma regularidade de calendario, fazia-se a historia e a civilisa��o, e o homem, nu e desarmado, armava-se e vestia-se, construia o tugurio e o palacio, a rude ald�a e Thebas de cem portas, creava a sciencia, que perscruta, e a arte que enleva, fazia-se orador, mecanico, philosopho, corria a face do globo, descia ao ventre da terra, subia � esphera das nuvens, collaborando assim na obra mysteriosa, com que entretinha a necessidade da vida e a melancholia do desamparo. Meu olhar, enfarado e distrahido*, viu emfim chegar o seculo presente, e atraz delle os futuros. Aquelle vinha agil, destro, vibrante, cheio de si, um pouco diffuso, audaz, sabedor, mas ao cabo t�o miseravel como os primeiros, e assim passou e assim passaram os outros, com a mesma rapidez e egual monotonia. Redobrei de atten��o; fitei a vista; ia emfim ver o ultimo,--o ultimo!; mas ent�o j� a rapidez da marcha era tal, que escapava a toda a comprehens�o; ao p� della o relampago seria um seculo. Talvez por isso entraram os objectos a trocarem-se; uns cresceram, outros minguaram, outros perderam-se no ambiente; um nevoeiro cobriu tudo,--menos o hippopotamo que alli me trouxera, e que ali�s come�ou a diminuir, a diminuir, a diminuir, at� ficar do tamanho de um gato. Era effectivamente um gato. Encarei-o bem; era o meu gato _Sult�o_, que brincava � porta da alcova, com uma bola de papel... CAPITULO VIII Raz�o contra Sandice J� o leitor comprehendeu que era a Raz�o que voltava � casa, e convidava a Sandice a sair, clamando, e com melhor jus, as palavras de Tartufo: La maison est � moi, c'est � vous d'en sortir. Mas � sestro antigo da Sandice criar amor �s casas alheias, de modo que, apenas senhora de uma, difficilmente lh'a far�o despejar. � sestro; n�o se tira dahi; ha muito que lhe callejou a vergonha. Agora, se advertirmos no immenso numero de casas que occupa, umas de vez, outras durante as suas esta��es calmosas, concluiremos que esta amavel peregrina � o terror dos proprietarios. No nosso caso, houve quasi um disturbio � porta do meu cerebro, porque a adventicia n�o queria entregar a casa, e a dona n�o cedia da inten��o de tomar o que era seu. Afinal, j� a Sandice se contentava com um cantinho no sot�o. --N�o, senhora, replicou a Raz�o, estou can�ada de lhe ceder sot�os, can�ada e experimentada, o que voc� quer � passar mansamente do sot�o � sala de jantar, dahi � de visitas e ao resto. --Est� bem, deixe-me ficar algum tempo mais, estou na pista de um mysterio. --Que mysterio? --De dous, emendou a Sandice; o da vida e o da morte; pe�o-lhe s� uns dez minutos. A Raz�o poz-se a rir. --Has de ser sempre a mesma cousa... sempre a mesma cousa... sempre a mesma cousa... E, dizendo isto, travou-lhe dos pulsos e arrastou-a para f�ra; depois entrou e fechou-se. A Sandice ainda gemeu algumas supplicas; ainda grunhiu algumas zangas; mas desenganou-se depressa, deitou a lingua de f�ra, em ar de surriada, e foi andando... foi andando... Provavelmente andar� at� � consumma��o dos seculos. CAPITULO IX Transi��o E vejam agora com que destreza, com que fina arte fa�o eu a maior transi��o deste livro. Vejam: o meu delirio come�ou em presen�a de Virgilia; Virgilia foi o meu gr�o peccado da juventude; n�o ha juventude sem meninice; meninice supp�e nascimento; e eis aqui como chegamos n�s, sem esfor�o, ao dia 20 de outubro de 1805, em que nasci. Viram? Nenhuma juntura apparente, nada que divirta a atten��o pausada do leitor; nada. De modo que o livro fica assim com todas as vantagens do methodo, sem a rigidez do methodo. Na verdade, era tempo. Que isto de methodo, sendo, como �, uma cousa indispensavel, todavia � melhor tel-o sem gravata nem suspensorios, mas um pouco � fresca e � solta, como quem n�o se lhe d� da visinha fronteira, nem do inspector de quarteir�o. � como a eloquencia, que ha uma genuina e vibrante, de uma arte natural e feiticeira, e outra tesa, engommada e chocha. Vamos ao dia 20 de Outubro. CAPITULO X Naquelle dia... Naquelle dia, a arvore dos Cubas brotou uma graciosa flor. Nasci; recebeu-me nos bra�os a Pascoela, insigne parteira minhota, que se gabava de ter aberto a porta do mundo a uma gera��o inteira de fidalgos. N�o � impossivel que meu pae lhe ouvisse tal declara��o; creio, todavia, que o sentimento paterno � que o induziu a gratifical-a com duas meias dobras. Lavado e enfaixado, fui desde logo o heroe da nossa casa. Cada qual prognosticava a meu respeito o que mais lhe quadrava ao sabor. Meu tio Jo�o, o antigo official de infantaria, achava-me um certo olhar de Bonaparte, cousa que meu pae n�o p�de ouvir sem nauseas; meu tio Ildefonso, ent�o simples padre, farejava-me conego. --Conego � o que elle ha de ser, e n�o digo mais por n�o parecer orgulho; mas n�o me admiraria nada se Deus o destinasse � um bispado... � verdade, um bispado; n�o � cousa impossivel. Que diz voc�, mano Bento? Meu pae respondia a todos que eu seria o que Deus quizesse; e al�ava-me ao ar, como se intentasse mostrar-me � cidade e ao mundo; perguntava a todos se eu me parecia com elle, se era intelligente, bonito... Digo essas cousas por alto, segundo as ouvi narrar annos depois; ignoro a m�r parte dos pormenores daquelle famoso dia. Sei que a visinhan�a veiu ou mandou comprimentar o recem-nascido, e que durante as primeiras semanas muitas foram as visitas em nossa casa. N�o houve cadeirinha que n�o trabalhasse; aventou-se muita casaca e muito cal��o; e se h�o conto os mimos, os beijos, as admira��es, as ben��os, � porque, se os contasse, n�o acabaria mais o capitulo, e � preciso acabal-o. Item, n�o posso dizer nada do meu baptizado, porque nada me referiram a tal respeito, a n�o ser que foi uma das mais galhardas festas do anuo seguinte, 1806; baptizei-me na egreja de S. Domingos, uma ter�a feira de mar�o, dia claro, luminoso e puro, sendo padrinhos o coronel Rodrigues de Mattos e sua senhora. Um e outro descendiam de velhas familias do norte e honravam dev�ras o sangue que lhes corria nas veias, outr'ora derramado na guerra contra Hollanda. Cuido que os nomes de ambos foram das primeiras cousas que aprendi; e certamente os dizia com muita gra�a, ou revelava algum talento precoce, porque n�o havia pessoa extranha diante de quem me n�o obrigassem a recital-os. --Nhonh�, diga a estes senhores como � que se chama seu padrinho. --Meu padrinho? � o coronel Paulo Vaz Lobo Cezar de Andrade e Souza Rodrigues de Mattos; minha madrinha � a Excellentissima Senhora D. Maria Luiza de Macedo Rezende e Souza Rodrigues de Mattos. --� muito esperto o seu menino, commentavam os ouvintes. --Muito esperto, concordava meu pae; e os olhos babavam-se-lhe de orgulho, e elle espalmava a m�o sobre a minha cabe�a, fitava-me longo tempo, namorado, cheio de si. Item, comecei a andar, n�o sei bem quando, mas antes do tempo. Talvez por apressar a natureza, obrigavam-me cedo a agarrar �s cadeiras, pegavam-me da fralda, davam-me carrinhos de p�u.--S� s�, nhonh�, s� s�, dizia-me a mucama. E eu, attrahido pelo chocalho de lata, que minha m�e agitava diante de mim, l� ia para a frente, cahe aqui, cahe acol�; e andava, provavelmente mal, mas andava, e fiquei andando. CAPITULO XI O menino � pai do homen. Cresci; e nisso � que a familia n�o interveiu; cresci naturalmente, como crescem as magnolias e os gatos. Talvez os gatos s�o menos matreiros, e, com certeza, as magnolias s�o menos inquietas do que eu era na minha infancia. Um poeta dizia que o menino � pae do homem. Se isto � verdade, vejamos alguns lineamentos do menino. Desde os cinco annos merecera eu a alcunha de �menino diabo�; e verdadeiramente n�o era outra cousa; fui dos mais malignos do meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso. Por exemplo, um dia quebrei a cabe�a de uma escrava, porque me neg�ra uma colh�r do doce de coco que estava fazendo, e, n�o contente com o maleficio, deitei um punhado de cinza ao tacho, e, n�o satisfeito da travessura, fui dizer a minha m�e que a escrava � que estrag�ra o doce �por pirra�a�; e eu tinha apenas seis annos. Prudencio, um moleque de casa, era o meu cavallo de todos os dias; punha as m�os no ch�o, recebia um cordel nos queixos, � guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na m�o, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e elle obedecia,--algumas vezes gemendo,--mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um--�ai, nhonh�!�--ao que eu retorquia:--�Cala a boca, besta!�--Esconder os chap�os das visitas, deitar rabos de papel a pessoas graves, puxar pelo rabicho das cabelleiras, dar belisc�es nos bra�os das matronas, e outras muitas fa�anhas deste jaez, eram mostras de um genio indocil, mas devo crer que eram tambem express�es de um espirito robusto, porque meu pae tinha-me em grande admira��o; e se �s vezes me reprehendia, � vista de gente, fazia-o por simples formalidade: em particular dava-me beijos. N�o se conclua daqui que eu levasse todo o resto da minha vida a quebrar a cabe�a dos outros nem a esconder-lhes os chap�os; mas opiniatico, egoista e algo contemptor dos homens, isso fui; se n�o passei o tempo a esconder-lhes os chap�os, alguma vez lhes puxei pelo rabicho das cabelleiras. Outrosim, affei�oei-me � contempla��o da injusti�a humana, inclinei-me a attenual-a, a explical-a, a classifical-a por partes, a entendel-a, n�o segundo um padr�o rigido, mas ao sabor das circumstancias e logares. Minha m�e doutrinava-me a seu modo, fazia-me decorar alguns preceitos e ora��es; mas eu sentia que, mais do que as ora��es, me governavam os nervos e o sangue, e a boa regra perdia o espirito, que a faz viver, para se tornar uma v� formula. De manh�, antes do ming�u, e de noite, antes da cama, pedia a Deus que me perdoasse, assim como eu perdoava aos meus devedores; mas entre a manh� e a noite fazia uma grande maldade, e meu pae, passado o alvoro�o, dava-me pancadinhas na cara, e exclamava a rir: Ah! bregeiro! ah! bregeiro! Sim, meu pae adorava-me, tinha-me esse amor sem merito, que � um simples e forte impulso da carne; amor que a raz�o n�o contrasta nem r�ge. Minha m�e era uma senhora fraca, de pouco cerebro e muito cora��o, assaz credula, sinceramente piedosa,--caseira, apezar de bonita, e modesta, apezar de abastada; temente �s trovoadas e ao marido. O marido era na terra o seu deus. Da collabora��o dessas duas creaturas nasceu a minha educa��o, que, se tinha alguma cousa boa, era no geral viciosa, incompleta, e, em partes, negativa. Meu tio conego fazia �s vezes alguns reparos ao irm�o; dizia-lhe que elle me dava mais liberdade do que ensino, e mais affei��o do que emenda; mas meu pae respondia que applicava na minha educa��o um systema inteiramente superior ao systema usado; e por este modo, sem confundir o irm�o, illudia-se a si proprio. Havia em minha m�e uma sombra de melancholia, que eu herdei, como herdei de meu pae a fatuidade. Os aspectos da vida accrescentaram-lhe a natural tendencia. Tinha cora��o de mais, uma sensibilidade melindrosa, exigente, doentia. De envolta com a transmiss�o e a educa��o, houve ainda o exemplo extranho, o meio domestico. Vimos os paes; vejamos os tios. Um delles, o Jo�o, era um homem de lingua solta, vida galante, conversa picaresca. Desde os onze annos entrou a admittir-me �s anecdotas, reaes ou n�o, eivadas todas de obscenidade ou immundicie. N�o me respeitava a adolescencia, como n�o respeitava a batina do irm�o; com a differen�a que este fugia logo que elle enveredava por assumpto escabroso. Eu n�o; deixava-me estar, sem entender nada, a principio, depois entendendo, e emfim achando-lhe gra�a. No fim de certo tempo, quem o procurava era eu; e elle gostava muito de mim, dava-me doces, levava-me a passeio. Em casa, quando l� ia passar alguns dias, n�o poucas vezes me aconteceu achal-o, no fundo da chacara, no lavadouro, a palestrar com as escravas que batiam roupa; e ahi � que era um desfiar de anecdotas, de ditos, de perguntas, e um estalar de risadas, que ninguem podia ouvir, porque o lavadouro ficava muito longe de casa. As pretas, com uma tanga no ventre, a arrega�ar-lhes um palmo dos vestidos, umas dentro do tanque, outras f�ra, inclinadas sobre as pe�as de roupa, a batel-as, a ensaboal-as, a torcel-as, iam ouvindo e redarguindo �s pilherias do tio Jo�o, e a commental-as de quando em quando com esta palavra: --Cruz, diabo!... Este sinh� Jo�o � o diabo! Bem differente era o tio conego. Esse tinha muita austeridade e pureza; taes dotes, comtudo, n�o real�avam um espirito superior, apenas compensavam um espirito mediocre. N�o era homem que visse a parte substancial da egreja; via o lado externo, a hierarchia, as preeminencias, as sobrepelizes, as circumflex�es. Vinha antes da sacristia que do altar. Uma lacuna no ritual excitava-o mais do que uma infrac��o dos mandamentos. Agora, a tantos annos de distancia, n�o estou certo se elle poderia atinar facilmente com um trecho de Tertuliano, ou expor, sem titubear, a historia do symbolo de Nic�a; mas ninguem, nas festas cantadas, sabia melhor o numero e caso das cortezias que se deviam ao officiante. Conego foi a unica ambi��o de sua vida; e dizia de cora��o que era a maior dignidade a que podia aspirar. Piedoso, severo nos costumes, minucioso na observancia das regras, frouxo, acanhado, subalterno, possuia algumas virtudes, em que era exemplar, mas carecia absolutamente da for�a de as incutir, de as imp�r aos outros. N�o digo nada de minha tia materna, D. Emerenciana, e ali�s era a pessoa que mais autoridade tinha sobre mim; essa differen�ava-se grandemente dos outros; mas viveu pouco tempo em nossa companhia, uns dous annos. Outros parentes e alguns intimos n�o merecem a pena de ser citados; n�o tivemos uma vida commum, mas intermittente, com grandes claros de separa��o. O que importa � a express�o geral do meio domestico, e essa ahi fica indicada,--vulgaridade de caracteres, amor das apparencias rutilantes, do arruido, frouxid�o da vontade, dominio do capricho, e o mais. Dessa terra e desse estrume � que nasceu esta fl�r. CAPITULO XII Um episodio de 1814 Mas eu n�o quero passar adeante, sem contar summariamente um galante episodio de 1814; tinha nove annos. Napole�o, quando eu nasci, estava j� em todo o explendor da gloria e do poder; era imperador e grange�ra inteiramente a admira��o dos homens. Meu pae, que � for�a de persuadir os outros da nossa nobreza, acabara persuadindo-se a si proprio, nutria contra elle um odio puramente mental. Era isso motivo de renhidas contendas em nossa casa, porque meu tio Jo�o, n�o sei se por espirito de classe e sympathia de officio, perdoava no despota o que admirava no general, meu tio padre era inflexivel contra o corso, os outros parentes dividiam-se; dahi as controversias e as rusgas. Chegando ao Rio de Janeiro a noticia da primeira qu�da de Napole�o, houve naturalmente grande abalo em nossa casa, mas nenhum chasco ou remoque. Os vencidos, testemunhas do regozijo publico, julgaram mais decoroso o silencio; alguns foram al�m e bateram palmas. A popula��o, cordialmente alegre, n�o regateou demonstra��es de affecto � real familia; houve illumina��es, salvas, _Te-Deum_, cortejo e acclama��es. Figurei nesses dias com um espadim novo, que meu padrinho me dera no dia de Santo Antonio; e, francamente, interessava-me mais o espadim do que a qu�da de Bonaparte. Nunca me esqueceu esse phenomeno. Nunca mais deixei de pensar commigo que o nosso espadim � sempre maior do que a espada de Napole�o. E notem que eu ouvi muito discurso, quando era vivo, li muita pagina rumorosa de grandes id�as e maiores palavras, mas n�o sei porque, no fundo dos applausos que me arrancavam da boca, l� echoava alguma vez este conceito de experimentado: --Vae-te embora, tu s� cuidas do espadim. N�o se contentou a minha familia em ter um quinh�o anonymo no regozijo publico; entendeu opportuno e indispensavel celebrar a destitui��o do imperador com um jantar, e tal jantar que o ruido das acclama��es chegasse aos ouvidos de Sua Alteza, ou, quando menos, de seus ministros. Dito e feito. Veiu abaixo toda a velha prataria, herdada do meu av� Luiz Cubas; vieram as toalhas de Flandres, as grandes jarras da India; matou-se um capado; encommendaram-se �s madres da Ajuda as compotas e marmeladas; lavaram-se, arearam-se, poliram-se as salas, escadas, casti�aes, arandellas, as vastas mangas de vidro, todos os apparelhos do luxo classico. Dada a hora, achou*-se reunida uma sociedade selecta, o juiz de f�ra, tres ou quatro officiaes militares, alguns commerciantes e lettrados, varios funccionarios da administra��o, uns com suas mulheres e filhas, outros sem ellas, mas todos commungando no desejo de atolar a memoria de Bonaparte no papo de um per�. N�o era um jantar, mas um _Te-Deum_; foi o que pouco mais ou menos disse um dos lettrados presentes, o Dr. Villa�a, glosador insigne, que accrescentou aos pratos de casa o acepipe das musas. Lembra-me, como se fosse hontem, lembra-me de o ver erguer-se, com a sua longa cabelleira de rabicho, casaca de seda, uma esmeralda no dedo, pedir a meu tio padre que lhe repetisse o mote, e, repetido o mote, cravar os olhos na testa de uma senhora, depois tossir, al�ar a m�o direita, toda fechada, menos o dedo indice, que apontava para o tecto; e, assim posto e composto, devolver o mote glosado. N�o fez uma glosa, mas tres; depois jurou aos seus deuses n�o acabar mais. Pedia um mote, davam-lh'o, elle glosava-o promptamente, e logo pedia outro e mais outro; a tal ponto que uma das senhoras presentes n�o p�de calar a sua grande admira��o. --A senhora diz isso, retorquia modestamente o Villa�a, porque nunca ouviu o Bocage, como eu ouvi, no fim do s�culo, em Lisboa. Aquillo sim! que facilidade! e que versos! Tivemos lutas de uma e duas horas, no botequim do Nicola, a glosarmos, no meio de palmas e bravos. Immenso talento o do Bocage! Era o que me dizia, ha dias, a Sra. duqueza de Cadaval... E estas tres palavras ultimas, expressas com muita emphasis, produziram em toda a assembl�a um fremito de admira��o e pasmo. Pois esse homem t�o dado, t�o simples, al�m de pleitear com poetas, discreteava com duquezas! Um Bocage e uma Cadaval! Ao contacto de tal homem, as damas sentiam-se superfinas; os var�es olhavam-n'o com respeito, alguns com inveja, n�o raros com incredulidade. Elle, entretanto, ia caminho, a accummular adjectivo sobre adjectivo, adverbio sobre adverbio, a desfiar todas as rimas de _tyranno_ e de _usurpador._ Era � sobremeza; ninguem j� pensava em comer. No intervallo das glosas, corria um borborinho alegre, um palavrear de estomagos satisfeitos; os olhos, molles e humidos, ou vivos e calidos, espregui�avam-se ou saltitavam de uma ponta a outra da meza, atulhada de doces e fructas, aqui o ananaz em fatias, alli o mel�o em talhadas, as compoteiras de crystal deixando ver o doce de coco, finamente ralado, amarello como uma gemma,--ou ent�o o melado escuro e grosso, n�o longe do queijo e do car�. De quando em quando um riso jovial, amplo, desabotoado, um riso de familia, vinha quebrar a gravidade politica do banquete. No meio do interesse grande e commum, agitavam-se tambem os pequenos e particulares. As mo�as fallavam das modinhas que haviam de cantar ao cravo, e do minuete e do solo inglez; nem faltava matrona que promettesse bailar um oitavado de compasso, s� para mostrar como folg�ra nos seus bons tempos de crian�a. Um sujeito, ao p� de mim, dava a outro noticia recente dos negros novos, que estavam a vir, segundo cartas que recebera de Loanda, uma carta em que o sobrinho lhe dizia ter j� negociado cerca de quarenta cabe�as, e outra-carta em que... Trazia-as justamente na algibeira, mas n�o as podia ler naquella occasi�o. O que afian�ava � que podiamos contar, s� nessa viagem, uns cento e vinte negros, pelo menos. --Tr�s...tr�s...tr�s...fazia o Villa�a batendo com as m�os uma na outra. O rumor cessava de subito, como um estacado de orchestra, e todos os olhos se voltavam para o glosador. Quem ficava longe aconcheava a m�o atraz da orelha para n�o perder palavra; a m�r parte, antes mesmo da glosa, tinha j� um meio riso de applauso, trivial e candido. Quanto a mim, l� estava, solitario e deslembrado, a namorar uma certa compota da minha fei��o. No fim de cada glosa ficava muito contente, esperando que fosse a ultima; mas n�o era, e a sobremeza continuava intacta. Ninguem se lembrava de dar a primeira voz. Meu pae, � cabeceira, saboreava a goles extensos, a alegria dos convivas, mirava-se todo nos car�es alegres, nos pratos, nas flores, deliciava-se com a familiaridade travada entre os mais distantes espiritos, influxo de um bom jantar. Eu via isso, porque arrastava os olhos da compota para elle e delle para a compota, como a pedir-lhe que m'a servisse; mas fazia-o em v�o. Elle n�o via nada; via-se a si mesmo. E as glosas succediam-se, como bategas d'agua, obrigando-me a recolher o desejo e o pedido. Pacientei quanto pude; e n�o pude muito. Pedi em voz baixa o doce; emfim, bradei, berrei, bati com os p�s. Meu pae, que seria capaz de me dar o sol, se eu lh*'o exigisse, chamou um escravo para me servir o doce; mas era tarde. A tia Emerenciana arranc�ra-me da cadeira e entreg�ra-me a uma escrava, n�o obstante os meus gritos e repell�es. N�o foi outro o delicto do glosador: retard�ra a compota e dera causa � minha exclus�o. Tanto bastou para que eu cogitasse uma vingan�a, qualquer que fosse, mas grande e exemplar, cousa que de alguma maneira o tornasse ridiculo. Que elle era um homem grave o Dr. Villa�a, medido e lento, quarenta e sete annos, casado e pae. N�o me contentava o rabo de papel nem o rabicho da cabelleira; havia de ser cousa peor. Entrei a espreital-o, durante o resto da tarde, a seguil-o, na chacara, aonde todos desceram a passear. Vi-o conversar com D. Eusebia, irm� do sargento-m�r Domingues, uma robusta donzellona, que se n�o era bonita, tambem n�o era feia. --Estou muito zangada com o senhor, dizia ella. --Porque? --Porque ... n�o sei porque ... porque � a minha sina ... creio �s vezes que � melhor morrer... Tinham penetrado n'uma pequena moita; era lusco-fusco; eu segui-os. O Villa�a levava nos olhos umas chispas de vinho e de volupia. --Deixe-me, disse ella. --Ninguem nos v�. Morrer, meu anjo? Que id�as s�o essas! Voc� sabe que eu morrerei tambem ... que digo?... morro todos os dias, de paix�o, de saudades... D. Eusebia levou o len�o aos olhos. O glosador vasculhava na memoria algum peda�o litterario, e achou este, que mais tarde verifiquei ser de uma das operas do Judeu: --N�o chores, meu bem; n�o queiras que o dia amanhe�a com duas auroras. Disse isto; puxou-a para si; ella resistiu um pouco, mas deixou-se ir; uniram os rostos, e eu ouvi estalar, muito ao de leve, um beijo, o mais medroso dos beijos. --O Dr. Villa�a deu um beijo em D. Eusebia! bradei eu correndo pela chacara. Foi um estouro esta minha palavra; a estupefac��o immobilisou a todos; os olhos espraiavam-se a uma e outra banda; trocavam-se sorrisos, segredos, � socapa, as m�es arrastavam as filhas, pretextando o sereno. Meu pae puxou-me as orelhas, disfar�adamente, irritado dev�ras com a indiscri��o; mas no dia seguinte, ao almo�o, lembrando o caso, sacudiu-me o nariz, a rir:--Ah! brejeiro! ah! brejeiro! CAPITULO XIII Um salto Unamos agora os p�s e demos um salto por cima da eschola, a enfadonha eschola, onde aprendi a ler, escrever, contar, dar cacholetas, apanhal-as, e ir fazer diabruras, ora nos morros, ora nas praias, onde quer que fosse propicio a ociosos. Tinha amarguras esse tempo; tinha os ralhos, os castigos, as li��es arduas e longas, e pouco mais, mui pouco e mui leve. S� era pesada a palmatoria, e ainda assim... � palmatoria, terror dos meus dias pueris, tu que foste o _compelle intrare_ com que um velho mestre, ossudo e calvo, me incutiu no cerebro o alphabeto, a prosodia, a syntaxe, e o mais que elle sabia, benta palmatoria, t�o praguejada dos modernos, quem me dera ter ficado sob o teu jugo, com a minha alma imberbe, as minhas ignorancias, e o meu espadim, aquelle espadim de 1814, t�o superior � espada de Napole�o! Que querias tu, afinal, meu velho mestre de primeiras lettras? Li��o de c�r e compostura na aula; nada mais, nada menos do que quer a vida, que � a mestra das ultimas lettras; com a differenca que tu, se me mettias medo, nunca me metteste zanga. Vejo-te ainda agora entrar na sala, com as tuas chinellas de couro branco, capote, len�o na m�o, calva � mostra, barba rapada; vejo-te sentar, bufar, grunhir, absorver uma pitada inicial, e chamar-nos depois � li��o. E fizeste isto durante vinte e tres annos, calado, obscuro, pontual, mettido n'uma casinha da rua do Piolho, sem enfadar o mundo com a tua mediocridade, at� que um dia d�ste o grande mergulho nas trevas, e ninguem te chorou, salvo um preto velho,--ninguem, nem eu, que te devo os rudimentos da escripta. Chamava-se Ludgero o mestre; quero escrever-lhe o nome todo nesta pagina: Ludgero Barata,--um nome funesto, que servia aos meninos de eterno mote a chufas. Um de n�s, o Quincas Borba, esse ent�o era cruel com o pobre homem. Duas, tres vezes por semana, havia de lhe deixar na algibeira das cal�as,--umas largas cal�as de enfiar--, ou na gaveta da mesa, ou ao p� do tinteiro, uma barata morta. Se elle a encontrava ainda nas horas da aula, dava um pulo, circulava os olhos chammejantes, dizia-nos os ultimos nomes; eramos sevandijas, capadocios, mal criados, moleques.--Uns tremiam, outros rosnavam; o Quincas Borba, por�m, deixava-se estar quieto, com os olhos espetados no ar. Uma fl�r, o Quincas Borba. Nunca em minha infancia, nunca em toda a minha vida, achei um menino mais gracioso, inventivo e travesso. Era a fl�r, e n�o j� da eschola, sen�o de toda a cidade. A m�e, viuva, com alguma cousa de seu, adorava o filho e trazia-o amimado, aceiado, enfeitado, com um vistoso pagem atraz, um pagem que nos deixava gazear a eschola, ir ca�ar ninhos de passaros, ou perseguir lagartixas no morro do Livramento e da Concei��o, ou simplesmente arruar, � toa, como dous peraltas sem emprego. E de imperador! Era um gosto ver o Quincas Borba fazer de imperador nas festas do Espirito Santo. De resto, nos nossos jogos pueris, elle escolhia sempre um papel de rei, ministro, general, uma supremacia, qualquer que fosse. Tinha garbo o traquinas, e gravidade, certa magnificencia nas attitudes, nos meneios. Quem diria que... Suspendamos a penna; n�o adeantemos os successos. Fujamos sobretudo desse passado t�o remoto, t�o coberto, ai de mim! de cruzes funebres. Vamos do um salto a 1822, data da nossa independencia politica, e do meu primeiro captiveiro pessoal. CAPITULO XIV O primeiro beijo Tinha dezesete annos; pungia-me um bu�osinho que eu forcejava por trazer a bigode. Os olhos, vivos e resolutos, eram a minha fei��o verdadeiramente mascula. Como ostentasse certa arrogancia, n�o se distinguia bem se era uma crian�a com fumos de homem, se um homem com ares de menino. Ao cabo, era um lindo gar��o, lindo e audaz, que entrava na vida de botas e esporas, chicote na m�o e sangue nas veias, cavalgando um corsel nervoso, rijo, veloz, como o corsel das antigas balladas, que o romantismo foi buscar ao castello medieval, para dar com elle nas ruas do nosso seculo. O peor � que o estafaram a tal ponto, que foi preciso deital-o � margem, onde o realismo o veiu achar, comido de lazeira e vermes, e, por compaix�o, o transportou para os seus livros. Sim, eu era esse gar��o bonito, airoso, abastado; e facilmente se imagina que mais de uma dama inclinou deante de mim a fronte pensativa, ou levantou para mim os olhos cobi�osos. De todas por�m a que me captivou logo foi um ... uma ... n�o sei se diga; este livro � casto, ao menos na inten��o; na inten��o � castissimo. Mas v� l�; ou se ha de dizer tudo ou nada. A que me captivou foi uma dama hespanhola, Marcella, a �linda Marcella�, como lhe chamavam os rapazes do tempo. E tinham raz�o os rapazes. Era filha de um hortel�o das Asturias; disse-m'o ella mesma, n'um dia de sinceridade, porque a opini�o aceita � que nascera de um lettrado de Madrid, victima da invas�o franceza, ferido, encarcerado, espingardeado, quando ella tinha apenas doze annos. _Cosas de Espa�a._ Quem quer que fosse, por�m, o pae, lettrado ou hortel�o, a verdade � que Marcella n�o possuia a innocencia rustica, e mal chegava a entender a moral do codigo. Era boa mo�a, lepida, sem escrupulos, um pouco tolhida pela austeridade do tempo, que lhe n�o permittia arrastar pelas ruas os seus estouvamentos e berlindas; luxuosa, impaciente, amiga de dinheiro e de rapazes. Naquelle anno, morria ella de amores por um certo Xavier, sujeito abastado e tisico,--uma perola. Vi-a, pela primeira vez, no Rocio Grande, na noite das luminarias, logo que constou a declara��o da independencia, uma festa de primavera, um amanhecer da alma publica. Eramos dous rapazes, o povo e eu; vinhamos da infancia, com todos os arrebatamentos da juventude. Vi-a sahir de uma cadeirinha, airosa e vistosa, um corpo esbelto, ondulante, um desgarre, alguma cousa que nunca achara nas mulheres puras. --Segue-me, disse ella ao pagem. E eu segui-a, t�o pagem como o outro, como se a ordem me fosse dada, deixei-me ir namorado, vibrante, cheio das primeiras auroras. A meio caminho, chamaram-lhe �linda Marcella�, lembrou-me que ouvira tal nome a meu tio Jo�o, e fiquei, confesso que fiquei tonto. Tres dias depois perguntou-me meu tio, em segredo, se queria ir a uma ceia de mo�as, nos Cajueiros. Fomos; era em casa de Marcella. O Xavier, com todos os seus tuberculos, presidia ao banquete nocturno, em que eu pouco ou nada comi, porque s� tinha olhos para a dona da casa. Que gentil que ella estava a hespanhola! Havia mais uma meia duzia de mulheres,--todas de partido--, e bonitas, cheias de gra�a, mas a hespanhola... O enthusiasmo, alguns goles de vinho, o genio imperioso, estouvado, tudo isso me levou a fazer uma cousa unica; � sahida, � porta da rua, disse a meu tio que esperasse um instante, e tornei a subir as escadas. --Esqueceu alguma cousa? perguntou Marcella de p�, no patamar. --O len�o. Ella ia abrir-me caminho para tornar � sala; eu segurei-lhe nas m�os, puxei-a para mim, e dei-lhe um beijo. N�o sei se ella disse alguma cousa, se gritou, se chamou alguem; n�o sei nada; sei que desci outra vez as escadas, veloz como um tuf�o, e incerto como um ebrio. CAPITULO XV Marcella Gastei trinta dias para ir do Rocio Grande ao cora��o de Marcella, n�o j� cavalgando o corsel do c�go desejo, mas o asno da paci�ncia, a um tempo manhoso e teimoso. Que, na verdade, ha dous meios de grangear a vontade das mulheres: o violento, como o touro de Europa, e o insinuativo, como o cysne de Leda e a chuva de ouro de Danae, tres inventos do padre Zeus, que, por estarem f�ra da moda, ahi ficam trocados no cavallo e no asno. N�o direi as tra�as que urdi, nem as pitas, nem as alternativas de confian�a e temor, nem as esperas baldadas, nem nenhuma outra dessas cousas preliminares. Affirmo-lhes que o asno foi digno do corsel,--um asno de Sancho, deveras philosopho, que me levou � casa della, no fim do citado periodo; apeei-me, bati-lhe na anca e mandei-o pastar. Primeira commo��o da minha juventude, que doce que me foste! Tal devia ser, na crea��o biblica, o effeito do primeiro sol. Imagina tu esse effeito do primeiro sol, a bater de chapa na face de um mundo em flor. Pois foi a mesma cousa, leitor amigo, e se alguma vez contaste dezoito annos, deves lembrar-te que foi assim mesmo. Teve duas phases a nossa paix�o, ou liga��o, ou qualquer outro nome, que eu de nomes n�o curo; teve a phase consular e a phase imperial. Na primeira, que foi curta, regemos o Xavier e eu, sem que elle jamais acreditasse dividir commigo o governo de Roma; mas, quando a credulidade n�o p�de resistir � evidencia, o Xavier depoz as insignias, e eu concentrei todos os poderes na minha m�o; foi a phase cesariana. Era meu o universo; mas, ai triste! n�o o era de gra�a. Foi-me preciso colligir dinheiro, multiplical-o, invental-o. Primeiro explorei as larguezas de meu pae; elle dava-me tudo o que eu lhe pedia, sem reprehens�o, sem demora, sem frieza; dizia a todos que eu era rapaz e que elle o fora tambem. Mas a tal extremo chegou o abuso, que elle restringiu um pouco as franquezas, depois mais, depois mais. Ent�o recorri a minha m�e, e induzi-a a desviar alguma cousa, que me dava �s escondidas. Era pouco; lancei m�o de um recurso ultimo: entrei a saccar sobre a heran�a de meu pae, a assignar obriga��es, que devia resgatar um dia com usura. --Na verdade, dizia-me Marcella, quando eu lhe levava alguma seda, alguma joia; na verdade, voc� quer brigar commigo... Pois isto � cousa que se fa�a... um presente t�o caro... E, se era joia, dizia isto a contemplal-a entre os dedos, a procurar melhor luz, a ensaial-a em si, e a rir, e a beijar-me com uma reincidencia impetuosa e sincera; mas, protestando, derramava-se-lhe a felicidade dos olhos, e eu sentia-me feliz com v�l-a assim. Gostava muito das nossas antigas dobras de ouro, e eu levava-lhe quantas podia obter; Marcella juntava-as todas dentro de uma caixinha de ferro, cuja chave ninguem nunca j�mais soube onde ficava; escondia-a por medo dos escravos. A casa em que morava, nos Cajueiros, era propria. Eram solidos e bons os moveis, de jacarand� lavrado, e todas as demais alfaias, espelhos, jarras, baixella,--uma linda baixella da India, que lhe do�ra um desembargador. Baixella do diabo, deste-me grandes repell�es aos nervos. Disse-o muita vez � pr�pria dona; n�o lhe dissimulava o tedio que me faziam esses e outros despojos dos seus amores de antanho. Ella ouvia-me e ria, com uma express�o candida,--candida e outra cousa, que eu nesse tempo n�o entendia bem; mas agora, relembrando o caso, penso que era um riso mixto, como devia ter a creatura que nascesse, por exemplo, de uma bruxa de Shakespeare com um seraphim de Klopstock. N�o sei se me explico. E porque tinha noticia dos meus zelos tardios, parece que gostava de os a�ular mais. Assim foi que um dia, como eu lhe n�o pudesse dar certo collar, que ella vira n'um joalheiro, retorquiu-me que era um simples gracejo, que o nosso amor n�o precisava de t�o vulgar estimulo. --N�o lhe perd�o, se voc� fizer de mim essa triste id�a, concluiu amea�ando-me com o dedo. E logo, subita como um passarinho, espalmou as m�os, cingiu-me com ellas o rosto, puxou-me a si e fez um tregeito gracioso, um momo de crian�a. Depois, reclinada na marqueza, continuou a fallar daquillo, com simplicidade e franqueza. J�mais consentiria que lhe comprassem os affectos. Vendera muita vez as apparencias, mas a realidade, guardava-a para poucos. O Duarte, por exemplo, o alferes Duarte, que ella am�ra dev�ras, dous annos antes, s� a custo conseguia dar-lhe alguma cousa de valor, como me acontecia a mim; ella s� lhe aceitava sem reluctancia os mimos de escasso pre�o, como a cruz de ouro, que lhe deu, uma vez, de festas. --Esta cruz... Dizia isto, mettendo a m�o no seio e tirando uma cruz fina, de ouro, presa a uma fita azul e pendurada ao collo. --Mas essa cruz, observei eu, n�o me disseste que era teu pae que... Marcella abanou a cabe�a com um ar de lastima: --N�o percebeste* que era mentira, que eu dizia isso para te n�o molestar? Vem c�, _chiquito_, n�o sejas assim desconfiado commigo... Amei a outro; que importa, se acabou? Um dia, quando nos separarmos... --N�o digas isso! bradei eu. --Tudo cessa! Um dia... N�o p�de acabar; um solu�o estrangulou-lhe a voz; estendeu as m�os, tomou das minhas, conchegou-me ao seio, e sussurrou-me baixo ao ouvido:--Nunca, nunca, meu amor! Eu agradeci-lh'o com os olhos humidos. No dia seguinte levei-lhe o collar que havia recusado. --Para te lembrares de mim, quando nos separarmos, disse eu. Marcella teve primeiro um silencio indignado; depois fez um gesto magnifico: tentou atirar o collar � rua. Eu retive-lhe o bra�o; pedi-lhe muito que n�o me fizesse tal desfeita, que ficasse com a joia. Sorriu e ficou. Entretanto, pagava-me � farta os sacrif�cios; espreitava os meus mais reconditos pensamentos; n�o havia desejo a que n�o acudisse com alma, sem esfor�o, por uma especie de lei da consciencia e necessidade do cora��o. Nunca o desejo era razoavel, mas um capricho puro, uma criancice, vel-a trajar de certo modo, com taes e taes enfeites, este vestido e n�o aquelle, ir a passeio ou outra cousa assim, e ella cedia a tudo, risonha e palreira. --Voc� � das Arabias, dizia-me. E ia p�r o vestido, a renda, os brincos, com uma obediencia de encantar. CAPITULO XVI Uma reflex�o immoral Occorre-me uma reflex�o immoral, que � ao mesmo tempo uma correc��o de estylo. Cuido haver dito, no cap. XIII, que Marcella morria de amores pelo Xavier. N�o morria, vivia. Viver n�o � a mesma cousa que morrer assim o affirmam todos os joalheiros desse mundo, gente muito vista na grammatica. Bons joalheiros, que seria do amor se n�o fossem os vossos dixes e fiados? Um ter�o ou um quinto do universal commercio dos cora��es. Esta � a reflex�o immoral que eu pretendia fazer, a qual � ainda mais obscura do que immoral, porque n�o se entende bem o que eu quero dizer. O que eu quero dizer � que a mais bella testa do mundo n�o fica menos bella, se a cingir um diadema de pedras finas; nem menos bella, nem menos amada. Marcella, por exemplo, que era bem bonita, Marcella amou-me... CAPITULO XVII Do trapezio e outras cousas ... Marcella amou-me durante quinze mezes e onze contos de r�is; nada menos. Meu pae, logo que teve aragem dos onze contos, sobresaltou-se dev�ras; achou que o caso excedia as raias de um capricho juvenil. --Desta vez, disse elle, vaes para a Europa; vaes cursar uma Universidade, provavelmente Coimbra; quero-te para homem serio e n�o para arruador e gatuno. E como eu fizesse um gesto de espanto:--Gatuno, sim, senhor; n�o � outra cousa um filho que me faz isto... Saccou da algibeira os meus titulos de divida, j� resgatados por elle, e sacudiu-m'os na cara;--V�s, peralta? � assim que um mo�o deve zelar o nome dos seus? Pensas que eu e meus av�s ganh�mos o dinheiro em* casas de jogo ou a vadiar pelas ruas? Pelintra! Desta vez ou tomas juizo, ou ficas sem cousa nenhuma. Estava furioso; mas de um furor temperado e curto. Eu ouvi-o calado, e nada oppuz � ordem da viagem, como de outras vezes fizera; ruminava, a id�a de levar Marcella commigo. Fui ter com ella; expuz-lhe a crise e fiz-lhe a proposta. Marcella ouviu-me com os olhos no ar, sem responder logo; como insistisse, disse-me que ficava, que n�o podia ir para a Europa. --Porque n�o? --N�o posso, disse ella com ar dolente; n�o posso ir respirar aquelles ares, emquanto me lembrar de meu pobre pae, morto por Napole�o... --Qual delles: o hortel�o ou o advogado? Marcella franziu a testa, cantarolou uma seguidilha, entre dentes; depois queixou-se do calor, e mandou vir um copo de alu�. Trouxe-lh'o a mucama, n'uma salva de prata, que fazia parte dos meus onze contos. Marcella offereceu-me polidamente o refresco; minha resposta foi dar com a m�o no copo e na salva; entornou-se-lhe o liquido no rega�o, a preta deu um grito, eu bradei-lhe que se fosse embora. Ficando a s�s, derramei todo o desespero de meu cora��o; disse-lhe que ella era um monstro, que j�mais me tivera amor, que me deixara descer a tudo, sem ter ao menos a desculpa da sinceridade; chamei-lhe muitos nomes feios, fazendo muitos gestos descompostos. Marcella deix�ra-se estar sentada, a estalar as unhas nos dentes, fria como um peda�o de marmore. Tive impetos de a estrangular, de a humiliar ao menos, subjugando-a a meus p�s. Ia talvez fazel-o; mas a ac��o trocou-se n'outra; fui eu que me atirei aos p�s della, contricto e supplice; beijei-lh'os, recordei aquelles mezes da nossa felicidade solitaria, repeti-lhe os nomes queridos de outro tempo, sentado no ch�o, com a cabe�a entre os joelhos della, apertando-lhe muito as m�os; offegante, desvairado, pedi-lhe com lagrymas que me n�o desamparasse... Marcella esteve alguns instantes a olhar para mim, calados ambos, at� que brandamente me desviou e, com um ar enfastiado: --N�o me aborre�a, disse. Levantou-se, sacudiu o vestido, ainda molhado, e caminhou para a alcova.--N�o! bradei eu; n�o has de entrar... n�o quero... Ia a lan�ar-lhe as m�os: era tarde; ella entr�ra e fechara-se. Sahi desatinado; gastei duas mortaes horas a vaguear pelos bairros mais excentricos e desertos, onde fosse difficil dar commigo. Ia mastigando o meu desespero, com uma especie de gula morbida; evocava os dias, as horas, os instantes de delirio, e ora me comprazia em crer que elles eram eternos, que tudo aquillo era um pesadelo, ora, enganando-me a mim mesmo, tentava rejeital-os de mim, como um fardo inutil. Ent�o resolvia embarcar immediatamente para cortar a minha vida em duas metades, e deleitava-me com a id�a de que Marcella, sabendo da partida, ficaria ralada de saudades e remorsos. Que ella amara-me a tonta, devia de sentir alguma cousa, uma lembran�a qualquer, como do alferes Duarte... Nisto, o dente do ciume enterrava-se-me no cora��o; e toda a natureza me bradava que era preciso levar Marcella commigo. --Por for�a... por for�a... dizia eu ferindo o ar com uma punhada. Emfim, tive uma id�a salvadora... Ah! trapezio dos meus peccados, trapezio das concep��es abstrusas! A id�a salvadora trabalhou nelle, como a do emplasto (cap. II.). Era nada menos que fascinal-a, fascinal-a muito, deslumbral-a, arrastal-a; lembrou-me pedir-lhe por um meio mais concreto do que a supplica. N�o medi as consequencias; recorri a um derradeiro emprestimo; fui � rua dos Ourives, comprei a melhor joia da cidade, tres diamantes grandes, encastoados n'um pente de marfim; corri � casa de Marcella. Marcella estava reclinada n'uma rede, o gesto molle e can�ado, uma das pernas pendentes, a ver-se-lhe o p�sinho cal�ado de meia de seda, os cabellos soltos, derramados, o olhar quieto e somnolento. --Vem commigo, disse eu, arranjei recursos...temos muito dinheiro, ter�s tudo o que quizeres...Olha, toma. E mostrei-lhe o ponte com os diamantes, Marcella teve um leve sobresalto; a pupilla rutilou como a de um gavi�o faminto; ella ergueu metade do corpo, e, apoiada n'um cotovello, olhou para o pente durante alguns instantes curtos; depois retirou os olhos; tinha se dominado. Ent�o, eu lancei-lhe as m�os aos cabellos, colligi-os, enlacei-os � pressa, improvisei um toucado, sem nenhum alinho, e rematei-o com o pente de diamantes; recuei, tornei a aproximar-me, corrigi-lhe as madeixas, abaixei-as do um lado, busquei alguma symetria naquella desordem, tudo com unia minuciosidade e um carinho de m�e. --Prompto, disse eu. --Doudo! foi a sua primeira resposta. A segunda foi puxar-me para si, e pagar-me o sacrificio com um beijo, o mais ardente de todos. Depois tirou o pente, admirou muito a materia e o lavor, olhando a espa�os para mim, e abanando a cabe�a, com um ar de reprehens�o: --Ora voc�! dizia. --Vens commigo? Marcella reflectiu um instante. N�o gostei da express�o com que passeava os olhos de mim para a parede, e da parede para a joia; mas toda a m� impress�o se desvaneceu, quando ella me respondeu resolutamente: --Vou. Quando embarcas? --Daqui a dous ou tres dias. --Vou. Agradeci-lh'o de joelhos. Tinha achado a minha Marcella dos primeiros dias, e disse-lh'o; ella sorriu, e foi guardar a joia, emquanto eu descia a escada. CAPITULO XVIII Vis�o do corredor No fim da escada, ao fundo do corredor escuro, parei alguns instantes para respirar, apalpar-me, convocar as id�as dispersas, rehaver-me emfim no meio de tantas sensa��es profundas e contrarias. Achava-me feliz. Certo � que os diamantes corrompiam-me um pouco a felicidade; mas n�o � menos certo que uma dama bonita pode muito bem amar os gregos e os seus presentes. E depois eu confiava na minha boa Marcella; podia ter defeitos, mas amava-me... --Um anjo! murmurei eu olhando para o tecto do corredor. E ahi, como um escarneo, vi o olhar de Marcella, aquelle olhar que pouco antes me dera uma sombra de desconfian�a, o qual chispava de cima de um nariz, que era ao mesmo tempo o nariz de Bakbarah e o meu. Pobre namorado das _Mil e uma noites!_ Vi-te alli mesmo correr atraz da mulher do vizir, ao longo da galeria, ella a acenar-te com a posse, e tu a correr, a correr, a correr, at� a alameda comprida, donde sahiste � rua, onde todos os correeiros te apuparam e desancaram. Ent�o pareceu-me que o corredor de Marcella era a alameda, e que a rua era a de Bagdad. Com effeito, olhando para a porta, vi na cal�ada, tres dos correeiros, um de batina, outro de libr�, outro � paisana, os quaes todos tres entraram no corredor, tomaram-me pelos bra�os, metteram-me n'uma sege, meu pae � direita, meu tio conego � esquerda, o da libr� na bol�a, e l� me levaram � casa do intendente de policia, donde fui transportado a uma galera que devia seguir para Lisboa. Imaginem se resisti; mas toda a resistencia era inutil. Tres dias depois segui barra f�ra, abatido e mudo. N�o chorava sequer; tinha uma id�a fixa... Malditas id�as fixas! A dessa occasi�o era dar um mergulho no oceano, repetindo o nome de Marcella. CAPITULO XIX A bordo Eramos onze passageiros, um homem doudo, acompanhado pela mulher, dous rapazes que iam a passeio, quatro commerciantes e dous criados. Meu pae recommendou-me a todos, come�ando pelo capit�o do navio, que ali�s tinha muito que cuidar de si, porque, al�m do mais, levava a mulher tisica em ultimo gr�u. N�o sei se o capit�o suspeitou alguma cousa do meu funebre projecto, ou se meu pae o poz de sobreaviso; sei que n�o me tirava os olhos de cima; chamava-me para toda a parte. Quando n�o podia estar commigo, levava-me para a mulher. A mulher ia quasi sempre n'uma camilha raza, a tossir muito, e a afian�ar que me havia de mostrar os arredores de Lisboa. N�o estava magra, estava transparente; era impossivel que n�o morresse de uma hora para outra. O capit�o fingia n�o crer na morte proxima, talvez por enganar-se a si mesmo. Eu n�o sabia nem pensava nada. Que me importava a mim o destino de uma mulher tisica, no meio do oceano? O mundo para mim era Marcella. Uma noite, logo no fim do uma semana, achei ensejo propicio para morrer. Subi cauteloso, mas encontrei o capit�o, que junto � amurada, tinha os olhos fitos no horizonte. --Algum temporal? disse eu. --N�o, respondeu elle estremecendo; n�o; admiro o explendor da noite. Veja; est� celestial! O estylo desmentia da pessoa, assaz rude e apparentemente alheia a locu��es rebuscadas. Fitei-o; elle pareceu saborear o meu espanto. No fim de alguns segundos, pegou-me na m�o e apontou para a lua, perguntando-me porque n�o fazia uma ode � noite; respondi-lhe que n�o era poeta. O capit�o rosnou alguma cousa, deu dous passos, metteu a m�o no bolso, saccou um peda�o de papel, muito amarrotado; depois, � luz de uma lanterna, leu uma ode horaciana sobre a liberdade da* vida maritima. Eram versos delle. --Que tal? N�o me lembra o que lhe disse; lembra-me que elle me apertou a m�o com muita for�a e muitos agradecimentos; logo depois recitou-me dous sonetos; ia recitar-me outro, quando o vieram chamar da parte da mulher.--L� vou, disse elle; e recitou-me o terceiro soneto, com pausa, com amor. Fiquei s�; mas a musa do capit�o varrera-me do espirito os pensamentos m�us; preferi dormir, que � modo interino de morrer. No dia seguinte, acordamos debaixo de um temporal, que metteu medo a toda a gente, menos ao doudo; esse entrou a dar pulos, a dizer que a filha o mandava buscar, n'uma berlinda; a morte de uma filha f�ra a causa da loucura. N�o, nunca me ha de esquecer a figura hedionda do pobre homem, no meio do tumulto das gentes e dos uivos do furac�o, a cantarolar e a bailar, com os olhos a saltarem-lhe da cara, pallido, a coma hirsuta, descomposta. �s* vezes parava, erguia ao ar as m�os ossudas, fazia umas cruzes com os dedos, depois um xadrez, depois umas argolas, e ria muito, desesperadamente. A mulher n�o podia j� cuidar delle; entregue ao terror da morte, rezava por si mesma a todos os santos do c�u.* Emfim, a tempestade amainou depois de longas horas; e confesso que foi uma divers�o excellente � tempestade do meu cora��o. Eu, que meditava ir ter com a morte, n�o ousei fital-a quando ella veiu ter commigo. Amainou o temporal, o capit�o veiu perguntar-me se tivera medo, se estivera em risco, se n�o ach�ra sublime o expectaculo; tudo isso com um interesse de amigo. Naturalmente a conversa versou sobre a vida do mar; o capit�o perguntou-me se n�o gostava de idyllios piscatorios; eu respondi-lhe ingenuamente que n�o sabia o que era. --Vae ver, respondeu elle. E recitou-me um poemasinho, depois outro,--uma egloga,--e emfim cinco sonetos, com os quaes rematou nesse dia a confidencia litteraria. No dia seguinte, antes de me recitar nada, explicou-me o capit�o que s� por motivos graves abra�ara a profiss�o maritima, porque a av� queria que elle fosse padre, e com effeito possuia algumas lettras latinas; n�o chegou a ser padre, mas n�o deixou de ser poeta, que era a sua voca��o natural; e em prova de que tal era a sua voca��o, recitou-me logo, de corpo presente, uma centena de versos. Notei um phenomeno: os ademanes que elle usava eram taes, que uma vez me fizeram rir; mas o capit�o, quando recitava, de tal sorte olhava para dentro de si mesmo, que n�o viu nem ouviu nada. Os dias passavam, e as aguas, e os versos, e com elles ia tambem passando a vida da mulher. Estava por pouco. Um dia, logo depois do almo�o, disse-me o capit�o que a enferma talvez n�o chegasse ao fim da semana. --J�! exclamei. --Passou muito mal a noite. Fui vel-a; achei-a, na verdade, quasi moribunda, mas fallando ainda de descan�ar em Lisboa alguns dias, antes de ir commigo a Coimbra, porque era seu proposito levar-me � Universidade. Deixei-a consternado; fui achar o marido a olhar para as vagas, que vinham morrer na costado do navio, e tratei de o consolar; elle agradeceu-me, relatou-me a historia dos seus amores, elogiou a fidelidade e a dedica��o da mulher, relembrou os versos que lhe fez, e recitou-m'os. Neste ponto vieram buscal-o da parte della; corremos ambos; era uma crise. Esse e o dia seguinte foram crueis; o terceiro foi o da morte; eu fugi ao expectaculo, tinha-lhe repugnancia. Meia hora depois encontrei o capit�o, sentado n'um m�lho de cabos, com a cabe�a nas m�os; disse-lhe alguma cousa de conforto. --Morreu como uma santa, respondeu elle; e, para que estas palavras n�o pudessem ser levadas � conta de fraqueza, ergueu-se logo, sacudiu a cabe�a, e fitou o horizonte, com um gesto longo e profundo.--Vamos, continuou, entreguemol-a � cova que nunca mais se abre. Effectivamente, poucas horas depois, era o cadaver lan�ado ao mar, com as ceremonias do costume. A tristeza murch�ra todos os rostos; o do viuvo trazia a express�o de um cabe�o rijamente lascado pelo raio. Grande silencio. A vaga abriu o ventre, acolheu o despojo, fechou-se,--uma leve ruga,--e a galera foi andando. Eu deixei-me estar alguns minutos, � popa, com os olhos naquelle ponto incerto do mar em que ficava um de n�s... Fui dalli ter com o capit�o, para distrahil-o. --Obrigado, disse-me elle comprehendendo a inten��o; creia que nunca me esquecerei dos seus bons servi�os. Deus � que lh'os ha de pagar. Pobre Leocadia! tu te lembrar�s de n�s no ceu. Enxugou com a manga uma lagrima importuna; eu busquei um derivativo na poesia, que era a paix�o delle. Fallei-lhe dos versos, que me lera, e offereci-me para imprimil-os. Os olhos do capit�o animaram-se um pouco.--Talvez aceite, disse elle; mas n�o sei... s�o bem frouxos versos. Jurei-lhe que n�o; pedi que os reunisse e me d�sse antes do desembarque. --Pobre Leocadia! murmurou elle sem responder ao pedido. Um cadaver... o mar... o ceu... o navio... No dia seguinte veiu ler-me um epicedio composto de fresco, em que estavam memoradas as circumstancias da morte e da sepultura da mulher; leu-m'o com a voz commovida dev�ras, e a m�o tremula; no fim perguntou-me se os versos eram dignos do thesouro que perdera. --S�o, disse eu. --N�o haver� estro, ponderou elle, no fim de um instante, mas ninguem me negar� sentimento, se n�o � que o proprio sentimento prejudicou a perfei��o.... --N�o me parece; acho os versos perfeitos. --Sim, eu creio que... Versos de marujo. --De marujo poeta. Elle levantou os hombros, olhou para o papel, e tornou a recitar a composi��o, mas j� ent�o sem tremuras, accentuando as inten��es litterarias, dando relevo �s imagens e melodia aos versos. No fim, confessou-me que era a sua obra mais acabada, eu disse-lhe que sim; elle apertou-me muito a m�o e predisse-me um grande futuro. CAPITULO XX Bacharelo-me Um grande futuro! Em quanto esta palavra me batia no ouvido, devolvia eu os olhos, ao longe, no horizonte mysterioso e vago. Uma id�a expellia outra, a ambi��o desmontava Marcella. Um grande futuro? Talvez naturalista, litterato, archeologo, banqueiro, politico, ou at� bispo,--bispo que fosse,--uma vez que fosse um cargo, uma preeminencia, uma grande reputa��o, uma posi��o superior. A ambi��o, dado que fosse aguia, quebrou nessa occasi�o o ovo, e desvendou a pupilla fulva e penetrante. Adeus, amores; adeus, Marcella; dias de delirio, joias sem pre�o, vida sem regimen, adeus. C� me vou �s fadigas e � gloria; deixo-vos com as calcinhas da primeira edade. E foi assim que desembarquei em Lisboa e segui para Coimbra. A Universidade esperava-me com as suas materias arduas, e n�o sei se profundas; estudei-as muito mediocremente, e nem por isso perdi o gr�u de bacharel; deram-m'o com a solemnidade do estylo, ap�s os annos da lei; uma bella festa que me encheu de orgulho e de saudades,--principalmente de saudades. Tinha eu conquistado em Coimbra uma grande nomeada de foli�o; era um academico estroina, superficial, tumultuario e petulante, dado �s aventuras, fazendo romantismo pratico e liberalismo theorico, vivendo na pura f� dos olhos pretos e das constitui��es escriptas. No dia em que a Universidade me attestou, em pergaminho, uma sciencia que eu estava longe de trazer arraigada no cerebro, confesso que me achei de de algum modo logrado, ainda que orgulhoso. Explico-me: o diploma era uma carta de alforria; se me dava a liberdade, dava-me a responsabilidade. Guardei-o, deixei as margens do Mondego, e vim por alli f�ra assaz desconsolado, mas sentindo j� uns impetos, uma curiosidade, um desejo de acotovellar os outros, de influir, de gozar, de viver,--de prolongar a Universidade pela vida adeante... CAPITULO XXI O almocreve Vae ent�o, empacou o jumento em que eu vinha montado; fustiguei-o, elle deu dous corcovos, depois mais tres, emfim mais um, que me sacudiu f�ra da sella, e com tal desastre, que o p� esquerdo me ficou preso no estribo; tento agarrar-me ao ventre do animal, mas j� ent�o, espantado, disparou pela estrada f�ra. Digo mal: tentou disparar, e effectivamente deu dous saltos, mas um almocreve, que alli estava, acudiu atempo de lhe pegar na redea e detel-o, n�o sem esfor�o nem perigo. Dominado o bruto, desvencilhei-me do estribo e puz-me de p�. --Olhe do que vosmec� escapou, disse o almocreve. E era verdade; se o jumento corre por alli f�ra, contundia-me dev�ras, e n�o sei se a morte n�o estaria no fim do desastre; cabe�a partida, uma congest�o, qualquer transtorno c� dentro; e l� se me ia a bacharelice em flor. O almocreve salvara-me talvez a vida; era positivo; eu sentia-o no sangue que me agitava o cora��o. Bom almocreve! emquanto eu tornava � consciencia de mim mesmo, elle cuidava de concertar os arreios do jumento, com muito zelo e arte. Resolvi dar-lho tres moedas de ouro das cinco que trazia commigo; n�o porque tal fosse o pre�o da minha vida,--essa era inestimavel; mas por que era uma recompensa digna da dedica��o com que elle me salvou. Est� dito, dou-lhe as tres moedas. --Prompto, disse elle apresentando-me a redea da cavalgadura. --Daqui a nada, respondi; deixa-me, que ainda n�o estou em mim... --Ora qual! --Pois n�o � certo que ia morrendo? --Se o jumento corre por ahi f�ra, � possivel; mas, com a ajuda do Senhor, viu vosmec� que n�o aconteceu nada. Fui aos alforges, tirei um collete velho, em cujo bolso trazia as cinco moedas de ouro, e durante esse tempo cogitei se n�o era excessiva a gratifica��o, se n�o bastavam duas moedas. Talvez uma. Com effeito, uma moeda era bastante para lhe dar estreme��es de alegria. Examinei-lhe a roupa; era um pobre diabo, que nunca jamais vira uma moeda de ouro. Portanto, uma moeda. Tirei-a, vi-a reluzir � luz do sol; n�o a viu o almocreve, por que eu tinha-lhe voltado as costas; mas suspeitou-o talvez, entrou a fallar ao jumento de um modo significativo; dava-lhe conselhos, dizia-lhe que tomasse juizo, que o �senhor doutor� podia castigal-o; um monologo paternal. Valha-me Deus! at� ouvi estalar um beijo: era o almocreve que lhe beijava a testa. --Ol�! exclamei. --Queira vosmec� perdoar, mas o diabo do bicho est� a olhar para a gente com tanta gra�a... Ri-me, hesitei, metti-lhe na m�o um cruzado em prata, cavalguei o jumento, e segui a trote largo, um pouco vexado, melhor direi um pouco incerto do effeito da pratinha. Mas a algumas bra�as de distancia, olhei para traz, o almocreve fazia-me grandes cortezias, com evidentes mostras de contentamento. Adverti que devia ser assim mesmo; eu pagara-lhe bem, pagara-lhe talvez de mais. Metti os dedos no bolso do collete que trazia no corpo e senti umas moedas de cobre; eram os vintens que eu devera ter dado ao almocreve, em logar do cruzado em prata. Porque, emfim, elle n�o levou em mira nenhuma recompensa ou virtude, cedeu a um impulso natural, ao temperamento, aos habitos do officio; accresce que a circumstancia de estar, n�o mais adeante nem mais atraz, mas justamente no ponto do desastre, parecia constituil-o simples instrumento de Providencia; e de um ou de outro modo, o merito do acto era positivamente nenhum. Fiquei desconsolado com esta reflex�o, chamei-me prodigo, lancei o cruzado � conta das minhas dissipa��es antigas; tive (porque n�o direi tudo?) tive remorsos. CAPITULO XXII Volta ao Rio Jumento de uma figa, cortaste-me o fio �s reflex�es. J� agora n�o digo o que pensei dalli at� Lisboa, nem o que fiz em Lisboa, na peninsula e em outros logares da Europa, da velha Europa, que nesse tempo parecia remo�ar. N�o, n�o direi que assisti �s alvoradas do romantismo, que tambem eu fui fazer poesia effectiva no rega�o da Italia; n�o direi cousa nenhuma. Teria de escrever um diario de viagem e n�o umas memorias, como estas s�o, nas quaes s� entra a substancia da vida. Ao cabo de alguns annos de peregrina��o attendi �s supplicas de meu pae:--�Vem, dizia elle na ultima carta; se n�o vieres depressa, achar�s tua m�e morta!� Esta ultima palavra foi para mim um golpe. Eu amava minha m�e; tinha ainda deante dos olhos as circumstancias da ultima ben��o que ella me dera, a bordo do navio. �Meu triste filho, nunca mais te verei�, solu�ava a pobre senhora apertando-me ao peito. E essas palavras resoavam-me agora, como uma prophecia realizada. Note-se que eu estava em Veneza, ainda rescendente aos versos de lord Byron; l� estava, mergulhado em pleno sonho, revivendo o preterito, crendo-me na Serenissima Republica. � verdade; uma vez aconteceu-me perguntar ao locandeiro se o doge ia a passeio nesse dia.--Que doge, _signor mio?_ Cahi em mim, mas n�o confessei a illus�o; disse-lhe que a minha pergunta era um genero de charada americana; elle mostrou comprehender, e accrescentou que gostava muito das charadas americanas. Era um locandeiro. Pois deixei tudo isso, o locandeiro, o doge, a ponte dos Suspiros, a gondola, os versos do lord, as damas do Rialto, deixei tudo, e disparei como uma bala na direc��o do Rio de Janeiro. Vim... Mas n�o; n�o alonguemos este capitulo. �s vezes, esque�o-me a escrever, e a penna vae comendo papel, com grave prejuizo meu, que sou autor. Capitulos compridos quadram melhor a leitores pesad�es; e n�s n�o somos um publico _in-folio_, mas _in_-12, pouco texto, larga margem, typo elegante, corte dourado e vinhetas... principalmente vinhetas... N�o, n�o alonguemos o capitulo. CAPITULO XXIII Triste, mas curto Vim; e n�o nego que, ao avistar a cidade natal, tive uma sensa��o nova. N�o era effeito da minha patria politica; era-o do logar da infancia, a rua, a torre, o chafariz da esquina, a mulher de mantilha, o preto do ganho, as cousas e scenas da meninice, buriladas na memoria. Nada menos que uma renascen�a. O espirito, como um passaro, n�o se lhe deu da corrente dos annos, arrepiou o v�o na direc��o da fonte original, e foi beber da agua fresca e pura, ainda n�o mesclada do enxurro da vida. Reparando bem, ha ahi um logar-commum. Outro logar-commum, tristemente commum, foi a consterna��o da familia. Meu pae abra�ou-me com lagrimas.--Tua m�e n�o p�de viver, disse-me elle. Com effeito, n�o era j� o rheumatismo que a matava, era um cancro no estomago. A infeliz padecia de um modo cr�, porque o cancro � indifferente �s virtudes do sujeito; quando r�e, r�e; roer � o seu officio. Minha irm� Sabina, j� ent�o casada com o Cotrim, andava a cair de fadiga. Pobre mo�a! dormia tres horas por noite, nada mais. O proprio tio Jo�o estava abatido e triste. D. Eusebia e algumas outras senhoras l� estavam tambem, n�o menos tristes e n�o menos dedicadas. --Meu filho! A dor suspendeu por um pouco as tenazes; um sorriso allumiou o rosto da enferma, sobre o qual a morte batia a aza eterna. Era menos um rosto do que uma caveira; a belleza pass�ra, como um dia brilhante; restavam os ossos, que n�o emmagrecem nunca. Mal poderia conhecel-a; havia oito ou nove annos que nos n�o viamos. Ajoelhado, ao p� da cama, com as m�os della entre as minhas, fiquei mudo e quieto, sem ousar fallar, porque cada palavra seria um solu�o, e n�s temiamos avisal-a do fim. V�o temor! Ella sabia que estava prestes a acabar; disse-m'o; verificamol-o na seguinte manh�. Longa foi a agonia, longa e cruel, de uma crueldade minuciosa, fria, repisada, que me encheu de dor e estupefac��o. Era a primeira vez que eu via morrer alguem. Conhecia a morte de outiva; quando muito, tinha-a visto j� petrificada no rosto de algum cadaver, que acompanhei ao cemiterio, ou trazia-lhe a id�a embrulhada nas amplifica��es de rhetorica dos professores de cousas antigas,--a morte aleivosa de Cesar, a austera de Socrates, a orgulhosa de Cat�o. Mas esse duello do ser e do n�o ser, a morte em ac��o, dolorida, contrahida, convulsa, sem apparelho politico ou philosophico, a morte de uma pessoa amada, essa foi a primeira vez que a pude encarar. N�o chorei; lembra-me que n�o chorei durante o expectaculo; tinha os olhos estupidos, a garganta presa, a consci�ncia boquiaberta. Que? uma creatura t�o docil, t�o meiga, t�o santa, que nunca jamais fizera verter uma lagrima de desgosto, m�e carinhosa, esposa immaculada, era for�a que morresse assim, trateada, mordida pelo dente tenaz de uma doen�a sem misericordia? Confesso que tudo aquillo me pareceu obscuro, incongruente, insano... Triste capitulo; passemos a outro mais alegre. CAPITULO XXIV Curto, mas alegro Fiquei prostrado. E comtudo era eu, nesse tempo, um fiel compendio de trivialidade e presump��o. Jamais o problema da vida e da morte me opprimira o cerebro; nunca at� esse dia me debru�ara sobre o abysmo do Inexplicavel; faltava-me o essencial, que � o estimulo, a vertigem... Para lhes dizer a verdade toda, eu reflectia as opini�es de um cabelleireiro, que achei em Modena, o qual se distinguia por n�o as ter absolutamente. Era a flor dois cabelleireiros; por mais demorada que fosse a opera��o do toucado, n�o enfadava nunca; elle intercalava as penteadelas com muitos motes e pulhas, cheios de um pico, de um sabor... E n�o tinha outra philosophia. Nem eu. N�o digo que a Universidade me n�o tivesse ensinado alguma; mas eu decorei-lhe s� as formulas, o vocabulario, o esqueleto. Tratei-a, como tratei o latim: embolsei tres versos de Virgilio, dous de Horacio, uma duzia de locu��es moraes e politicas, para as despezas da conversa��o. Tratei-os como tratei a historia e a jurisprudencia. Colhi de todas as cousas a phraseologia, a casca, a ornamenta��o, que eram para o meu espirito, vaidoso e nu, o mesmo que, para o peito do selvagem, s�o as conchas do mar e os dentes de pessoa morta. Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e real�o a minha mediocridade; advirta que a franqueza � a primeira virtude de um defunto. Na vida, o olhar da opini�o, o contraste dos interesses, a luta das cobi�as obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfar�ar os rasg�es e os remendos, a n�o estender ao mundo as revela��es que faz � consci�ncia; e o melhor da obriga��o � quando, � for�a de emba�ar os outros, emba�a-se um homem a si mesmo, porque em tal caso poupa-se o vexame, que � uma sensa��o penosa, e a hypocrisia, que � um vicio hediondo. Mas, na morte, que differen�a! que desabafo! que liberdade! Como a gente p�de sacudir f�ra a capa, deitar ao fosso as lentejoulas, despregar-se, despintar-se, desaffeitar-se, confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser! Porque, em summa, j� n�o ha visinhos, nem amigos, nem inimigos, nem conhecidos, nem extranhos; n�o ha plat�a. O olhar da opini�o, esse olhar agudo e judicial, perde a virtude, logo que pisamos o territorio da morte; n�o digo que elle se n�o estenda para c�, e nos n�o examine e julgue; mas a n�s � que n�o se nos d� do exame nem do julgamento. Senhores vivos, n�o ha nada t�o incommensuravel como o desdem dos finados. CAPITULO XXV Na Tijuca Ui! l� me ia a penna a escorregar para o emphatico. Sejamos simples, como era simples a vida que levei na Tijuca, durante as primeiras semanas depois da morte de minha m�e. No setimo dia, acabada a missa funebre, travei de uma espingarda, alguns livros, roupa, charutos, um moleque,--o Prudencio da capitulo XI,--e fui metter-me n'uma velha, casa de nossa propriedade. Meu pae forcejou por me torcer a resolu��o, mas eu � que n�o podia nem queria obedecer-lhe. Sabina desejava que eu fosse morar com ella algum tempo,--duas semanas, ao menos; meu cunhado esteve a ponto de me levar � fina for�a. Era um bom rapaz este Cotrim; pass�ra de estroina a circumspecto. Agora commerciava em generos de estiva, labutava de manh� at� � noite, com ardor, com perseveran�a. De noite, sentado � janella, a encaracolar as sui�as, n�o pensava em outra cousa. Amava a mulher e um filho, que ent�o tinha, e que lhe morreu alguns annos depois. Diziam que era avaro. Renunciei tudo; tinha o espirito attonito. Creio que por ent�o � que come�ou a desabotoar em mim a hypocondria, essa flor amarella, solitaria e morbida, de um cheiro inebriante e subtil.--�Que bom que � estar triste e n�o dizer cousa nenhuma!�--Quando esta palavra de Shakespeare me chamou a atten��o, confesso que senti em mim um echo, um echo delicioso. Lembra-me que estava sentado, debaixo de um tamarineiro, com o livro do poeta aberto nas m�os, e o espirito ainda mais cabisbaixo do que a figura,--ou jurur�, como dizemos das gallinhas tristes. Apertava ao peito a minha dor taciturna, com uma sensa��o unica, uma cousa a que poderia chamar volupia do aborrecimento. Volupia do aborrecimento: decora esta express�o, leitor; guarda-a, examina-a, e se n�o chegares a entendel-a, podes concluir que ignoras uma das sensa��es mais subtis desse mundo e daquelle tempo. �s vezes ca�ava, outras dormia, outras lia,--lia muito,--outras emfim n�o fazia nada; deixava-me atoar de id�a em id�a, de imagina��o em imagina��o, como uma borboleta vadia ou faminta; e as horas iam pingando uma a uma, o sol cahia, as sombras da noite velavam a montanha e a cidade. Ninguem me visitava; recommendei expressamente que me deixassem s�. Um dia, dous dias, tres dias, uma semana inteira passada assim, sem dizer palavra, era bastante para sacudir-me da Tijuca f�ra e restituir-me ao bulicio. Com effeito, ao cabo de sete dias, estava farto da solid�o; a dor applac�ra; o espirito j� se n�o contentava com o uso da espingarda e dos livros, nem com a vista do arvoredo e do ceu. Reagia a mocidade, era preciso viver. Metti no bah� o problema da vida e da morte, os hypocondriacos do poeta, as camisas, as medita��es, as gravatas, e ia fechal-o, quando o moleque Prudencio me disse que uma pessoa do meu conhecimento se mud�ra na vespera para uma casa roxa, situada a duzentos passos da nossa. --Quem? --Nhonh� talvez n�o se lembre mais de D. Eusebia... --Lembra-me... � ella? --Ella e a filha. Vieram hontem de manh�. Occorreu-me logo o episodio de 1814, e senti-me vexado; mas adverti que os acontecimentos tinham-me dado raz�o. Na verdade, f�ra impossivel evitar as rela��es intimas do Villa�a com a irm� do sargento-m�r; antes mesmo do meu embarque, j� se boquejava mysteriosamente no nascimento de uma menina. Meu tio Jo�o mandou-me dizer depois que o Villa�a, ao morrer, deixara um bom legado a D. Eusebia, cousa que deu muito que fallar em todo o bairro. O proprio tio Jo�o, guloso de escandalos, n�o tratou de outro assumpto na carta, ali�s de muitas folhas. Tinham-me dado raz�o os acontecimentos. Ainda por�m que m'a n�o dessem, 1814 l� ia longe, e, com elle, a travessura, e o Villa�a, e o beijo da moita; finalmente, nenhumas rela��es estreitas existiam entre mim e ella. Fiz commigo essa reflex�o e acabei de fechar o bah�. --Nhonh� n�o vae visitar sinh� D. Eusebia? perguntou-me o Prudencio. Foi ella quem vestiu o corpo da minha defunta senhora. Lembrei-me que a vira, entre outras senhoras, por occasi�o da morte e do enterro; ignorava por�m que ella houvesse prestado a minha m�e esse derradeiro obsequio. A pondera��o do moleque era razoavel; eu devia-lhe uma visita; determinei fazel-a immediatamente, e descer. CAPITULO XXVI O autor hesita S�bito ou�o uma voz:--Ol�, meu rapaz, isto n�o � vida! Era meu pae, que chegava com duas propostas na algibeira. Sentei-me no bah� e recebi-o sem alvoro�o. Elle esteve alguns instantes de p�, a olhar para mim; depois estendeu-me a m�o com um gesto commovido: --Meu filho, conforma-te com a vontade de Deus. --J� me conformei, foi a minha resposta, e beijei-lhe a m�o. N�o tinha almo�ado; almo��mos juntos. Nenhum de n�s alludiu ao triste motivo da minha reclus�o. Uma s� vez fall�mos nisso, de passagem, quando meu pae fez recahir a conversa na Regencia; foi ent�o que alludiu � carta de pezames que um dos Regentes lhe mandara. Trazia a carta comsigo, j� bastante amarrotada, talvez por havel-a lido a muitas outras pessoas. Creio haver dito que era de um dos Regentes. Leu-m'a duas vezes. --J� lhe fui agradecer este signal de considera��o, concluiu meu pae, e acho que deves ir tambem... --Eu? --Tu; � um homem notavel, faz hoje as vezes de Imperador. Demais trago commigo uma id�a, um projecto, ou... sim, digo-te tudo; trago dous projectos, um logar de deputado e um casamento. Meu pae disse isto com pausa, e n�o no mesmo tom, mas dando �s palavras um geito e disposi��o, cujo fim era caval-as mais profundamente no meu espirito. A proposta, por�m, desdizia tanto das minhas sensa��es ultimas, que eu cheguei a n�o entendel-a bem. Meu pae n�o fraqueou e repetiu-a; encareceu o logar e a noiva. --Aceitas? --N�o entendo de politica, disse eu depois de um instante; quanto � noiva... deixe-me viver como um urso, que sou. --Mas os ursos casam-se, replicou elle. --Pois traga-me uma ursa. Olhe, a Ursa-Maior. Riu-se meu pae, e depois de rir, tornou a fallar serio. Era-me necessaria a carreira politica, dizia elle, por vinte e tantas raz�es, que deduziu com singular volubilidade, illustrando-as com exemplos de pessoas do nosso conhecimento. Quanto � noiva, bastava que eu a visse; se a visse, iria logo pedil-a ao pae, logo, sem demora de um dia. Experimentou assim a fascina��o, depois a persuas�o, depois a intima��o; eu n�o dava resposta, afiava a ponta de um palito ou fazia bolas de miolo de p�o, a sorrir ou a reflectir; e, para tudo dizer, nem docil nem rebelde � proposta. Sentia-me aturdido. Uma parte de mim mesmo dizia que sim, que uma esposa formosa e uma posi��o politica eram bens dignos de apre�o; outra dizia que n�o; e a morte de minha m�e me apparecia como um exemplo da fragilidade das cousas, das affei��es, da familia... --N�o vou daqui sem uma resposta definitiva, disse meu pae. De-fi-ni-ti-va! repetiu, batendo as syllabas com o dedo. Bebeu o ultimo gole de caf�; repotreou-se, e entrou a fallar de tudo, do senado, da camara, da Regencia, da restaura��o, do Evaristo, de um coche que pretendia comprar, da nossa casa de Matta-cavallos... Eu deixava-me estar ao canto da mesa, a escrever desvairadamente n'um peda�o de papel, com uma ponta de lapis; tra�ava uma palavra, uma phrase, um verso, um nariz, um triangulo, e repetia-os muitas vezes, sem ordem, ao acaso, assim: arma virumque cano A Arma virumque cano arma virumque cano arma virumque arma virumque cano virumque Machinalmente tudo isto; e, n�o obstante, havia certa l�gica, certa deduc��o; por exemplo, foi o _virumque_ que me fez chegar ao nome do proprio poeta, por causa da primeira syllaba; ia a escrever _virumque_--e sae-me _Virgilio_, ent�o continuei: Vir Virgilio Virgilio Virgilio Virgilio Virgilio Meu pae, um pouco despeitado com aquella indifferen�a, ergueu-se, veiu a mim, lan�ou os olhos ao papel... --Virgilio! exclamou. �s tu, meu rapaz; a tua noiva chama-se justamente Virgilia. CAPITULO XXVII Virgilia? Virgilia? Mas ent�o era a mesma senhora que alguns annos depois...? A mesma; era justamente a senhora, que em 1869 devia assistir aos meus ultimos dias, e que antes, muito antes, teve larga parte nas minhas mais intimas sensa��es. Naquelle tempo contava apenas uns quinze ou dezeseis annos, e era talvez a mais atrevida creatura da nossa ra�a, e, com certeza, a mais voluntariosa. N�o digo que j� lhe coubesse a primazia da belleza, entre as mocinhas do tempo, porque isto n�o � romance, em que o autor sobredoura a realidade e fecha os olhos �s sardas e espinhas; mas tambem n�o digo que lhe maculasse o rosto nenhuma sarda ou espinha; n�o. Era bonita, fresca, sahia das m�os da natureza, cheia daquelle feiti�o, precario e eterno, que o individuo passa a outro individuo, para os fins secretos da crea��o. Era isto Virgilia, e era clara, muito clara, faceira, ignorante, pueril, cheia de uns impetos mysteriosos; muita pregui�a e alguma devo��o,--devo��o, ou talvez medo; creio que medo. Ahi tem o leitor, em poucas linhas, o retrato physico e moral da pessoa que devia influir mais tarde na minha vida; era aquillo com dezeseis annos. Tu que me l�s, se ainda fores viva, quando estas paginas vierem � luz,--tu que me l�s, Virgilia amada, n�o reparas na differen�a entre a linguagem de hoje e a que primeiro empreguei quando te vi? Cr� que era t�o sincero ent�o como agora; a morte n�o me tornou rabujento, nem injusto. --Mas, dir�s tu, se voc� n�o guardou na retina da memoria a imagem do que fui, como � que p�de assim discernir a verdade daquelle tempo, e exprimil-a depois de tantos annos? Ah! indiscreta! ah! ignorantona! Mas � isso mesmo que nos faz senhores da terra, � esse poder de restaurar o passado, para tocar a instabilidade das nossas impress�es e a vaidade dos nossos affectos. Deixa l� dizer o Pascal que o homem � um cani�o pensante. N�o; � uma errata pensante, isso sim. Cada esta��o da vida � uma edi��o, que corrige a anterior, e que ser� corrigida tambem, at� a edi��o definitiva, que o editor d� de gra�a aos vermes. CAPITULO XXVIII Contanto que... --Virgilia? interrompi eu. --Sim, senhor; � o nome da noiva. Um anjo, meu pateta, um anjo sem azas. Imagina uma mo�a assim, desta altura, viva como um azougue, e uns olhos... filha do Dutra... --Que Dutra? --O Conselheiro Dutra; n�o conheces; uma influencia politica. Vamos l�; aceitas? N�o respondi logo; fitei por alguns segundos a ponta do botim; declarei depois que estava disposto a examinar as duas cousas, a candidatura e o casamento, comtanto que... --Comtanto que? --Comtanto que n�o fique obrigado a aceitar as duas; creio que posso ser separadamente homem casado ou homem publico... --Todo o homem publico deve ser casado, interrompeu sentenciosamente meu pae. Mas seja como queres; estou por tudo; fico certo de que a vista far� f�. Demais, a noiva e o casamento s�o a mesma cousa... isto �, n�o... saber�s depois... V�; aceito a dila��o, comtanto que... --Comtanto que?.. interrompi eu imitando-lhe a voz. --Ah! brejeiro! Comtanto que n�o te deixes ficar ahi inutil, obscuro, e triste; n�o gastei dinheiro, cuidados, empenhos, para te n�o ver brilhar, como deves, e te convem, e a todos n�s; � preciso continuar o nosso nome, continual-o e illustral-o ainda mais. Olha, estou com sessenta annos, mas se fosse necess�rio come�ar vida nova, come�ava-a sem hesitar um s� minuto. Teme a obscuridade, Braz; foge do que � infimo. Olha que os homens valem por differentes modos, e que o mais seguro de todos � valer pela opini�o dos outros homens. N�o estragues as vantagens da tua posi��o, os teus meios... E foi por deante o magico, a agitar deante de mim um chocalho, como me faziam, em pequeno, para eu andar depressa, e a flor da hypocondria recolheu-se ao bot�o para deixar a outra flor menos amarella, e nada morbida,--o amor da nomeada, o emplasto Braz Cubas. CAPITULO XXIX A visita Vencera meu pae; dispuz-me a aceitar o diploma e o casamento, Virgilia e a camara dos deputados.--As duas Virgilias, disse elle n'um assomo de ternura politica. Aceitei-os; meu pae deu-me dous fortes abra�os. Era o seu proprio sangue que elle, emfim, reconhecia. Rigorosamente, o filho delle acabava de desembarcar naquelle instante, de rodaque de linho e m�os nos bolsos. Havia ent�o nos olhos de meu pae alguma cousa do velho Cid; era a alma que colligira n'uma s� flamma todas as ultimas scentelhas. --Desces commigo? --Des�o amanh�. Vou fazer primeiramente uma visita a D. Eusebia... Meu pae torceu o nariz, mas n�o disse nada; despediu-se e desceu. Eu, na tarde desse mesmo dia, fui visitar D. Eusebia. Achei-a a reprehender um preto jardineiro, mas deixou tudo para vir fallar-me, com um alvoro�o, um prazer t�o sincero, que me desacanhou logo. Creio que chegou a cingir-me com o seu par de bra�os robustos. Fez-me sentar ao p� de si, na varanda, entre muitas exclama��es de contentamento. --Ora, o Br�zinho! Um homem! Quem diria, ha annos... Um homemzarr�o! E bonito! Qual! Voc� n�o se lembra bem de mim... Disse-lhe que sim, que n�o era possivel esquecer uma amiga t�o familiar de nossa casa. D. Eusebia come�ou a fallar de minha m�e, com muitas saudades, com tantas saudades, que me captivou logo, posto me entristecesse. Ella percebeu-o nos meus olhos, e torceu a r�dea � conversa��o; pediu-me que lhe contasse a viagem, os estudos, os namoros... Sim, os namoros tambem; confessou-me que era uma velha patusca. Nisto recordei-me do episodio de 1814, ella, o Villa�a, a moita, o beijo, o meu grito; e estando a recordal-o, ou�o um ranger de porta, um farfalhar de saias e esta palavra: --Mam�e... mam�e... CAPITULO XXX A flor da moita A voz e as saias pertenciam a uma mocinha morena, que se deteve � porta, alguns instantes, ao ver gente extranha. Silencio curto e constrangido. D. Eusebia quebrou-o, enfim, com resolu��o e franqueza: --Vem c�, Eugenia, disse ella, comprimenta o Dr. Braz Cubas, filho do Sr. Cubas; veiu da Europa. E voltando-se para mim: --Minha filha Eugenia. Eugenia, a flor da moita, mal respondeu ao gesto de cortezia que lhe fiz; olhou-me admirada e acanhada, e lentamente se aproximou da cadeira da m�e. A m�e arranjou-lhe uma das tran�as do cabello, cuja ponta se desmanchara.--Ah! travessa! dizia. N�o imagina, doutor, o que isto �... E beijou-a com t�o expansiva ternura que me commoveu um pouco; lembrou-me minha m�e, e,--direi tudo,--tive umas cocegas de ser pae. --Trav�ssa? disse eu. Pois j� n�o est� em edade propria, ao que parece. --Quantos lhe d�? --Dezesete. --Menos um. --Dezeseis. Pois ent�o! � uma mo�a. N�o p�de Eugenia encobrir a satisfa��o que sentia com esta minha palavra, mas emendou-se logo, e ficou como d'antes, erecta, fria e muda. Na verdade, ella parecia ainda mais mulher do que era; seria crian�a nos seus folgares de mo�a; mas assim quieta, impassivel, tinha a compostura da mulher casada. Talvez essa circumstancia lhe diminuia um pouco da gra�a virginal. Depressa nos familiaris�mos; a m�e fazia-lhe grandes elogios, eu escutava-os de boa sombra; e ella sorria, com os olhos fulgidos, como se l� dentro do cerebro lhe estivesse a voar uma borboletinha de azas de ouro e olhos de diamante... Digo l� dentro, porque c� f�ra o que esvoa�ou foi uma borboleta preta, que subitamente penetrou na varanda, e come�ou a bater as azas em derredor de D. Eusebia. D. Eusebia deu um grito, levantou-se, praguejou umas palavras soltas:--T'esconjuro!... s�e, diabo!... Virgem Nossa Senhora!... --N�o tenha medo, disse eu; e, tirando o len�o, expelli a borboleta. D. Eusebia sentou-se outra vez, offegante, um pouco envergonhada; a filha, pode ser que pallida de medo, dissimulava a impress�o com muita for�a de vontade. Apertei-lhes a m�o e sa�, a rir commigo da supersti��o das duas mulheres, um rir philosophico, desinteressado, superior. De tarde, vi passar a cavallo afilha de D. Eusebia, seguida de um pagem; fez-me um comprimento com a ponta do chicote; e confesso que me lisongeei com a id�a de que, alguns passos adeante, ella voltaria a cabe�a para traz; mas n�o voltou. CAPITULO XXXI A borboleta preta No dia seguinte, como eu estivesse a preparar-me para descer, entrou no meu quarto uma borboleta, t�o negra como a outra, e muito maior do que ella. Lembrou-me o caso da vespera, e ri-me; entrei logo a pensar na filha de D. Eusebia, no susto que tivera, e na dignidade que, apezar delle, soube conservar. A borboleta, depois de esvoa�ar muito em torno de mim, pousou-me na testa. Sacudi-a, ella foi pousar na vidra�a; e, porque eu a sacudisse de novo, sa�u* dalli e veiu parar em cima de um velho retrato de meu pae. Era negra como a noite; e o gesto brando com que, uma vez posta, come�ou a mover as azas, tinha um certo ar escarninho, uma especie de ironia mephistophelica, que me aborreceu muito. Dei de hombros, sa� do quarto; mas tornando l�, minutos depois, e achando-a ainda no mesmo logar, senti um repell�o dos nervos, lancei m�o de uma toalha, bati-lhe e ella ca�u. N�o ca�u morta; ainda torcia o corpo e movia as farpinhas da cabe�a. Apiedei-me; tomei-a na palma da m�o e fui depol-a no peitoril da janella. Era tarde; a infeliz expirou dentro de alguns segundos. Fiquei um pouco aborrecido, incommodado. --Tambem porque diabo n�o era ella azul? disse eu commigo. E esta reflex�o,--uma das mais profundas que se tem feito, desde a inven��o das borboletas,--me consolou do maleficio, e me reconciliou commigo mesmo. Deixei-me estar a contemplar o cadaver, com alguma sympathia, confesso. Imaginei que ella sa�ra do mato, almo�ada e feliz. A manh� era linda. Veiu por alli f�ra, modesta e negra, espairecendo as suas borboletices sob a vasta cupula de um c�o azul, que � sempre azul, para todas as azas. Passa pela minha janella, entra e d� commigo. Supponho que nunca teria visto um homem; n�o-sabia, portanto, o que era o homem; descreveu infinitas voltas em torno do meu corpo, e viu que me movia, que tinha olhos, bra�os, pernas, um ar divino, uma estatura collossal. Ent�o disse comsigo: �Este � provavelmente o inventor das borboletas.� A id�a subjugou-a, aterrou-a; mas o medo, que � tambem suggestivo, insinuou-lhe que o melhor modo de agradar ao seu creador era beijal-o na testa; e ella beijou-me na testa. Quando enxotada por mim, foi pousar na vidra�a, viu dalli o retrato de meu pae, e n�o � impossivel que descobrisse meia verdade, a saber, que estava alli o pae do inventor das borboletas, e voou a pedir-lhe misericordia. Pois um golpe de toalha rematou a aventura. N�o lhe valeu a immensidade azul, nem a alegria das flores, nem a pompa das folhas verdes, contra uma toalha de rosto, dous palmos de linho cr�. Vejam como � bom ser superior �s borboletas! Porque, �* justo dizel-o, se ella fosse azul, ou c�r de laranja, n�o teria mais segura a vida; n�o era impossivel que eu a atravessasse com um alfinete, para recreio dos olhos. N�o era. Esta ultima id�a restituiu-me a consola��o, uni o dedo grande ao polegar, despedi um piparote e o cadaver caiu no jardim. Era tempo; ahi vinham j� as providas formigas... N�o, volto � primeira id�a; creio que para ella era melhor ter nascido azul. CAPITULO XXXII Coxa de nascen�a Fui dalli acabar os preparativos da viagem. J� agora n�o me demoro mais. Des�o immediatamente; des�o ainda que algum leitor circumspecto me detenha para perguntar se o capitulo passado � apenas uma sensaboria ou se chega a empulha��o... Ai de mim! N�o contava com D. Eusebia. Estava prompto, quando me entrou por casa. Vinha convidar-me para transferir a descida, e ir l� jantar nesse dia. Cheguei a recusar; mas instou tanto, tanto, tanto, que n�o pude deixar de aceitar; demais, era-lhe devida aquella compensa��o; fui. Eugenia desataviou-se nesse dia por minha causa. Creio que foi por minha causa,--se � que n�o andava muita vez assim. Nem as bichas de ouro, que trazia na vespera, lhe pendiam agora das orelhas, duas orelhas finamente recortadas n'uma cabe�a de nympha. Um simples vestido branco, de cassa, sem enfeites, tendo ao collo, em vez de broche, um bot�o de madreperola, e outro bot�o nos punhos, fechando as mangas, e nem sombra de pulseira. Era isso no corpo; n�o era outra cousa no espirito. Id�as claras, maneiras ch�s, certa gra�a natural, um ar de senhora, e n�o sei se alguma outra cousa; sim, a boca, exactamente a boca da m�e, a qual me lembrava o episodio de 1814, e ent�o dava-me impetos de glosar o mesmo mote � filha... --Agora vou mostrar-lhe a chacara, disse a m�e, logo que exgot�mos o ultimo gole de caf�. Sa�mos � varanda, dalli � chacara; e foi ent�o que notei uma circumstancia. Eugenia coxeava um pouco, t�o pouco, que eu cheguei a perguntar-lhe se machucara o p�. A m�e calou-se; a filha respondeu sem titubear: --N�o, senhor, sou coxa de nascen�a. Mandei-me a todos os diabos; chamei-me desastrado, grosseir�o. Com effeito, a simples possibilidade de ser coxa era bastante para lhe n�o perguntar nada. Ent�o lembrou-me que da primeira vez que a vi na vespera--a mo�a cheg�ra-se lentamente � cadeira da m�e, e que naquelle dia j� a achei � mesa de jantar. Talvez fosse para encobrir o defeito; mas por que raz�o o confessava agora? Olhei para ella e reparei que ia triste. Tratei de apagar os vestigios de meu desaso;--n�o me foi difficil, por que a m�e era, segundo confessara, uma velha patusca, e promptamente travou de conversa commigo. Vimos toda a chacara, arvores, flores, tanque de patos, tanque de lavar, uma infinidade de cousas, que ella me ia mostrando, e commentando, ao passo que eu, de soslaio, perscrutava os olhos de Eugenia... Palavra que o olhar de Eugenia n�o era coxo, mas direito, perfeitamente s�o; vinha de uns olhos pretos e tranquillos. Creio que duas ou tres vezes baixaram elles a terra, um pouco turvados; mas duas ou tres vezes s�mente; em geral, fitavam-me com franqueza, sem temeridade, nem biocos. CAPITULO XXXIII Bemaventurados os que n�o descem O peor � que era coxa. Uns olhos t�o l�cidos, uma boca t�o fresca, uma compostura t�o senhoril; e coxa! Esse contraste faria suspeitar que a natureza � �s vezes um immenso escarneo. Porque bonita, se coxa? porque coxa, se bonita? Tal era a pergunta que eu vinha fazendo a mim mesmo ao voltar para casa, de noite; e n�o atinava com a solu��o do enigma. O melhor que ha, quando se n�o resolve um enigma, � sacudil-o pela janella f�ra; foi o que eu fiz; lancei m�o de uma toalha e enxotei essa outra borboleta preta, que me adejava no cerebro. Fiquei alliviado e fui dormir. Mas o sonho, que � uma fresta do espirito, deixou novamente entrar o bichinho, e ahi fiquei eu a noite toda a cavar o mysterio, sem explical-o. Amanheceu chovendo, transferi a descida; mas no outro dia, a manh� era limpida e azul, e apezar disso deixei-me ficar, n�o menos que no terceiro dia, e no quarto, at� o fim da semana. Manh�s bonitas, frescas, convidativas; l� em baixo a familia a chamar-me, e a noiva, e o parlamento, e eu sem acudir a cousa nenhuma, enlevado ao p� da minha Venus Manca. Enlevado � uma maneira de real�ar o estylo; n�o havia enlevo, mas gosto, uma certa satisfa��o physica e moral. Queria-lhe, � verdade; ao p� dessa creatura t�o singela, filha espuria e coxa, feita de amor e desprezo, ao p� della sentia-me bem, e ella creio que ainda se sentia melhor ao p� de mim. E isto na Tijuca. Uma simples egloga. D. Eusebia vigiava-nos, mas pouco; temperava a necessidade com a conveniencia; e a filha, nessa primeira explos�o da natureza, entregava-me a alma em fl�r. --O senhor desce amanh�? disse-me ella no sabbado. --Pretendo. --N�o des�a. N�o desci; e accrescentei um versiculo ao Evangelho:--Bemaventurados os que n�o descem, porque delles � o primeiro beijo das damas. Com effeito, foi no domingo esse primeiro beijo de Eugenia,--o primeiro que nenhum outro var�o jamais lhe tom�ra, e n�o furtado ou arrebatado, mas candidamente entregue, como um devedor honesto paga uma divida. Pobre Eugenia! Se tu soubesses que id�as me vagavam pela mente f�ra n'aquella occasi�o! Tu, tremula de commo��o, com os bra�os nos meus hombros, a contemplar em mim o teu bemvindo esposo, e eu com os olhos em 1814, na moita, no Villa�a, e a suspeitar que n�o podias mentir ao teu sangue, � tua origem... D. Eusebia entrou inesperadamente, mas n�o t�o subita, que nos apanhasse ao p� um do outro. Eu fui at� � janella: Eugenia sentou-se a concertar uma das tran�as. Que dissimula��o graciosa! que arte infinita e delicada! que tartufice profunda! e tudo isso natural vivo, n�o estudado, natural como o appetite, natural como o somno. Tanto melhor! D. Eusebia n�o suspeitou nada. CAPITULO XXXIV A uma alma sensivel Ha ahi, entre as cinco ou dez pessoas que me leem, ha ahi uma alma sensivel, que est� de certo um pouquito agastada com o capitulo anterior, come�a a tremer pela sorte de Eugenia, e talvez... sim, talvez, l� no fundo de si mesma, me chame cynico. Eu cynico, alma sensivel? Pela coxa de Diana! esta injuria merecia ser lavada com sangue, se o sangue lavasse alguma cousa nesse mundo. N�o, alma sensivel, eu n�o sou cynico, eu fui homem; meu cerebro foi um tablado em que se deram pe�as de todo o genero, o drama sacro, o austero, o piegas, a comedia lou��, a desgrenhada far�a, os autos, as bufonerias, um pandemonium, alma sens�vel, uma barafunda de cousas e pessoas, em que podias ver tudo, desde a rosa de Smyrna at� a arruda do teu quintal, desde o magnifico leito de Cleopatra at� o recanto da praia em que o mendigo tirita o seu somno. Cruzavam-se nelle pensamentos de varia casta e fei��o. N�o havia alli a atmosphera s�mente da aguia e do beija-flor, havia tambem a da lesma e do sapo. Retira, pois, a express�o, alma sensivel, castiga os nervos, limpa os oculos,--que isso �s vezes � dos oculos,--e acabemos de uma vez com esta flor da moita. CAPITULO XXXV O caminho de damasco Ora aconteceu, que, oito dias depois, como eu estivesse no caminho de Damasco, ouvi uma voz misteriosa, que me sussurrou as palavras da Escriptura (_Act._, IX, 7): �Levanta-te, e entra na cidade.� Essa voz saia de mim mesmo, e tinha duas origens: a piedade, que me desarmava ante a candura da pequena, e o terror de vir a amar dev�ras, e desposal-a. Uma mulher coxa! Quanto a este motivo da minha descida, n�o ha duvidar que ella o achou e m'o disse. Foi na varanda, na tarde de uma segunda-feira, ao annunciar-lhe que na seguinte manh� viria para baixo.--Adeus, suspirou ella estendendo-me a m�o com simplicidade; faz bem.--E como eu nada dissesse, continuou:--Faz bem em fugir ao rid�culo de casar commigo. Ia dizer-lhe que n�o; ella retirou-se lentamente, engolindo as lagrimas. Alcancei-a a poucos passos, e jurei-lhe por todos os santos do ceu que eu era obrigado a descer, mas que n�o deixava de lhe querer e muito; tudo hyperboles frias, que ella escutou sem dizer nada. --Acredita-me? perguntei eu no fim. --N�o; e digo-lhe que faz bem. Quiz retel-a, mas o olhar que me lan�ou n�o foi j� de supplica, sen�o de imperio. Eu desci da Tijuca, na manh� seguinte, um pouco amargurado, outro pouco satisfeito; e vinha dizendo a mim mesmo que era justo obedecer a meu pae, que era conveniente abra�ar a carreira politica... que a constitui��o... que a minha noiva... que o meu cavallo... CAPITULO XXXVI A proposito de botas Meu pae, que me n�o esperava, abra�ou-me cheio de ternura e agradecimento.--Agora � dev�ras? disse elle. Posso emfim....? Deixei-o nessa reticencia, e fui descal�ar as botas, que estavam apertadas. Uma vez alliviado, respirei � larga, e deitei-me a fio comprido, emquanto os p�s, e todo eu atraz delles, entravamos n'uma relativa bem-aventuran�a. Ent�o considerei que as botas apertadas s�o uma das maiores venturas da terra, porque, fazendo doer os p�s, d�o azo ao prazer de as descal�ar. Mortifica os p�s, desgra�ado, desmortifica-os depois, e ahi tens a felicidade barata, ao sabor dos sapateiros e de Epicuro. Emquanto esta id�a me trabalhava no famoso trapezio, lan�ava eu os olhos para a Tijuca, e via a aleijadinha perder-se no horizonte do preterito, e sentia que o meu cora��o n�o tardaria tambem a descal�ar as suas botas. E descal�ou-as o lascivo. Quatro ou cinco dias depois, saboreava esse rapido, ineffavel e incoercivel momento de gozo, que succede a uma d�r pungente, a uma preoccupa��o, a um incommodo... Daqui inferi eu que a vida � o mais engenhoso dos phenomenos, porque s� agu�a a fome, com o fim de deparar a occasi�o de comer, e n�o inventou os callos, sen�o porque elles aperfei�oam a felicidade terrestre. Em verdade vos digo que toda a sabedoria humana n�o vale um par de botas curtas. Tu, minha Eugenia, � que n�o as descal�aste nunca; foste ahi pela estrada da vida, manquejando da perna e do amor, triste como os enterros pobres, solitaria, calada, laboriosa, at� que vieste tambem para esta outra margem... O que eu n�o sei � se a tua exist�ncia era muito necessaria ao s�culo. Quem sabe? Talvez um comparsa de menos fizesse patear a tragedia humana. CAPITULO XXXVII Emfim Emfim! eis aqui Virgilia. Antes de ir � casa do Conselheiro Dutra, perguntei a meu pae se havia algum ajuste pr�vio de casamento. --Nenhum ajuste. Ha tempos, conversando com elle a teu respeito, confessei-lhe o desejo que tinha de te ver deputado; e de tal modo fallei, que elle prometteu fazer alguma cousa, e creio que o far�. Quanto � noiva, � o nome que dou a uma creaturinha, que � uma joia, uma fl�r, uma estrella, uma cousa rara... � a filha delle; imaginei que, se casasses com ella, mais depressa serias deputado. --S� isto? --S� isto. Fomos dalli � casa do Dutra. Era uma perola esse homem, risonho, jovial, patriota, um pouco irritado com os males publicos, mas n�o desesperando de os curar depressa. Achou que a minha candidatura era legitima; convinha, por�m, esperar alguns mezes. E logo me apresentou � mulher,--uma estimavel senhora,--e � filha, que n�o desmentiu em nada o panegyrico de meu pae. Juro-vos que em nada. Rel�de o Cap. XXVIII. Eu, que levava id�as a respeito da pequena, fitei-a de certo modo; ella, que n�o sei se as tinha, n�o me fitou de modo differente; e o nosso olhar primeiro foi pura e simplesmente conjugal. No fim de um mez estavamos intimos. CAPITULO XXXVIII A quarta edi��o --Venha c� jantar amanh�, disse-me o Dutra uma noite. Aceitei o convite. No dia seguinte, mandei que a sege me esperasse no largo de S. Francisco de Paula, e fui dar varias voltas. Lembra-vos ainda a minha theoria das edi��es humanas? Pois sabei que, naquelle tempo, estava eu na quarta edi��o, revista e emendada, mas ainda in�ada de descuidos e barbarismos; defeito que, ali�s, achava alguma compensa��o no typo, que era elegante, e na encaderna��o, que era luxuosa. Dadas as voltas, ao passar pela rua dos Ourives, consulto o relogio e c�e-me o vidro na cal�ada. Entro na primeira loja que tinha � m�o; era um cubiculo,--pouco mais,--empoeirado e escuro. Ao fundo, por traz do balc�o, estava sentada uma mulher, cujo rosto amarello e bexiguento n�o se destacava logo, � primeira vista; mas logo que se destacava era um expectaculo curioso. N�o podia ter sido feia; ao contrario, via-se que fora bonita, e n�o pouco bonita; mas a doen�a e uma velhice precoce, destruiram-lhe a flor das gra�as. As bexigas tinham sido terriveis; os signaes, grandes e muitos, faziam saliencias e encarnas, declives e acclives; e davam uma sensa��o de lixa grossa, enormemente grossa. Eram os olhos a melhor parte do vulto, e ali�s tinham uma express�o singular e repugnante, que mudou, entretanto, logo que eu comecei a fallar. Quanto ao cabello, penteado ao desdem, estava ru�o e quasi t�o poento como os portaes do loja. N'um dos dedos da m�o esquerda fulgia-lhe um diamante. Crel-o-heis, posteros? essa mulher era Marcella. N�o a conheci logo; era difficil; ella por�m conheceu-me apenas lhe dirigi a palavra. Os olhos chisparam e trocaram a express�o usual por outra, meia doce e meia triste. Vi-lhe um movimento como para esconder-se ou fugir; era o instincto da vaidade, que n�o durou mais de um instante. Marcella accommodou-se e sorriu. --Quer comprar alguma cousa? disse ella estendendo-me a m�o. N�o respondi nada; Marcella comprehendeu a causa do meu silencio (n�o era difficil), e s� hesitou, creio eu, em decidir o que dominava mais, se o assombro do presente, se a memoria do passado. Deu-me uma cadeira, e, com o balc�o permeio, fallou-me longamente de si, da vida que lev�ra, das lagrimas que eu lhe fizera verter, das saudades, dos desastres, emfim das bexigas, que lhe escalavraram o rosto, e do tempo, que ajudou a molestia, adiantando-lhe a decadencia. Verdade � que tinha a alma decrepita. Vendera tudo, quasi tudo; um homem, que a am�ra outr'ora, e lhe morreu nos bra�os, deixara-lhe aquella loja de ourivesaria, mas, para que a desgra�a fosse completa, era agora pouco buscada a loja--talvez pela singularidade de a dirigir uma mulher. Em seguida pediu-me que lhe contasse a minha vida. Gastei pouco tempo em dizer-ll'a; n�o era longa, nem interessante. --Casou? disse Marcella no fim de minha narra��o. --Ainda n�o, respondi seccamente. Marcella lan�ou os olhos para a rua, com a atonia de quem reflecte ou relembra; eu deixei-me ir ent�o ao passado, e, no meio das recorda��es e saudades, perguntei a mim mesmo por que motivo fizera tanto desatino. N�o era esta certamente a Marcella de 1822; mas a belleza de outro tempo valia uma ter�a parte dos meus sacrificios? Era o que eu buscava saber, interrogando o rosto de Marcella. O rosto dizia-me que n�o; ao mesmo tempo os olhos me contavam que, j� outr'ora, como hoje, ardia nelles a flamma da cobi�a. Os meus � que n�o souberam ver-lh'a; eram olhos da primeira edi��o. --Mas por que entrou aqui? viu-me da rua? porguntou ella, saindo daquella especie de torpor. --N�o, suppunha entrar n'uma casa de relojoeiro; queria comprar um vidro para este relogio; vou a outra parte; desculpe-me; tenho pressa. Marcella suspirou com tristeza. A verdade � que eu me sentia pungido e aborrecido, ao mesmo tempo, e anciava por me ver f�ra daquella casa. Marcella, entretanto, chamou um moleque, deu-lhe o relogio, e, apezar da minha opposi��o, mandou-o, a uma loja na visinhan�a, comprar o vidro. N�o havia remedio; sentei-me outra vez. Disse ella ent�o que desejava ter a protec��o dos conhecidos de outro tempo; ponderou que mais tarde ou mais cedo era natural que me casasse, e afian�ou que me daria finas joias por pre�os baratos. N�o disse _pre�os baratos_, mas usou uma metaphora delicada e transparente. Entrei a desconfiar que n�o padecera nenhum desastre (salvo a molestia), que tinha o dinheiro a bom recado, e que negociava com o unico fim de acudir � paix�o do lucro, que era o verme roedor daquella existencia; foi isso mesmo que me disseram depois. CAPITULO XXXIX O visinho Emquanto eu fazia commigo mesmo aquella reflex�o, entrou na loja um sujeito baixo, sem chapeu, trazendo pela m�o uma menina de quatro annos. --Como passou de hoje de manh�? disse elle a Marcella. --Assim, assim. Vem c�, Maricota. O sujeito levantou a crian�a pelos bra�os e passou-a para dentro do balc�o. --Anda, disse elle; pergunta a D. Marcella como passou a noite. Estava anciosa por vir c�, mas a m�e n�o tinha podido vestil-a... Ent�o, Maricota? Toma a ben��o. .. Olha a vara de marmelo! Assim... N�o imagina o que ella � l� em casa; falla na senhora a todos os instantes, e aqui parece uma pamonha. Ainda hontem... Digo, Maricota? --N�o, diga, n�o, papae. --Ent�o foi alguma cousa feia? perguntou Marcella batendo na cara da menina. --Eu lhe digo; a m�e ensina-lhe a rezar todas as noites um padre-nosso e uma ave-maria, offerecidos a Nossa Senhora; mas a pequena hontem veiu pedir-me com voz muito humilde... imagine o que?... que queria offerecel-os a Santa Marcella. --Coitadinha! disse Marcella beijando-a. --� um namoro, uma paix�o, como a senhora n�o imagina ... A m�e diz que � feiti�o... Contou mais algumas cousas o sujeito, todas mui agradaveis, at� que saiu levando a menina, n�o sem deitar-me um olhar interrogativo ou suspeitoso. Perguntei a Marcella quem era elle. --� um relojoeiro de visinhan�a, um bom homem; a mulher tambem; e a filha � galante, n�o? Parecem gostar muito de mim... � boa gente. Ao proferir estas palavras havia um tremor de alegria na voz de Marcella; e no rosto como que se lhe espraiou uma onda de ventura... CAPITULO XL Na sege Nisto entrou o moleque trazendo o relogio com o vidro novo. Era tempo; j� me custava estar alli; dei uma moedinha de prata ao moleque; disse a Marcella que voltaria n'outra occasi�o, e sa� a passo largo. Para dizer tudo, devo confessar que o cora��o me batia um pouco; mas era uma especie de dobre de finados. O espirito ia travado de impress�es oppostas. Notem que aquelle dia amanhecera alegre para mim. Meu pae, ao almo�o, repetiu-me, por anticipa��o, o primeiro discurso que eu tinha de proferir na camara dos deputados; rimo-nos muito, e o sol tambem, que estava brilhante, como nos mais bellos dias do mundo; do mesmo modo que Virgilia devia rir, quando eu lhe contasse as nossas fantasias do almo�o. Vae se n�o quando, c�e-me o vidro do relogio; entro na primeira loja que me fica � m�o; e eis me surge o passado, eil-o que me lacera e beija; eil-o que me interroga, com um rosto cortado de saudades e bexigas... L� o deixei; metti-me �s pressas na sege, que me esperava no largo do S. Francisco de Paula, e ordenei ao boleeiro que rodasse pelas ruas f�ra. O boleeiro ati�ou as bestas, a sege entrou a sacolejar-me, as molas gemiam, as rodas sulcavam rapidamente a lama que deixara a chuva recente, e tudo isso me parecia estar parado. N�o ha, �s vezes, um certo vento, morno que n�o bochorno, n�o forte nem aspero, mas abafadi�o, que nos n�o leva o chap�o da cabe�a, nem rodomoinha nas saias das mulheres, e todavia � ou parece ser peior do que se fizesse uma e outra cousa, porque abate, afrouxa, e como que dissolve os espiritos? Pois eu tinha esse vento commigo; e, certo de que elle me soprava por achar-me naquella especie de garganta entre o passado e o presente, almejava por sair � planicie do futuro. O peior � que a sege n�o andava. --Jo�o, bradei eu ao boleeiro. Esta sege anda ou n�o anda? --U�! nhonh�! J� estamos parados na porta de sinh� Conselheiro. CAPITULO XLI A allucina��o E era verdade. Entrei apressado; achei Virgilia anciosa, mau humor, fronte nublada. A m�e, que era surda, estava na sala com ella. No fim dos comprimentos disse-me a mo�a com sequid�o: --Esperavamos que viesse mais cedo. Defendi-me do melhor modo; fallei do cavallo que empacara, e de um amigo, que me detivera. De repente morre-me a voz nos labios, fico tolhido de assombro. Virgilia... seria Virgilia aquella mo�a? Fitei-a muito; e a sensa��o foi t�o penosa, que recuei um passo e desviei a vista. Tornei a olhal-a. As bexigas tinham-lhe comido o rosto; a pelle, ainda na vespera t�o fina, rosada e pura, apparecia-me agora amarella, stigmada pelo mesmo flagello, que devastara o rosto da hespanhola. Os olhos, que eram travessos, fizeram-se murchos; tinha o labio triste e a attitude can�ada. Olhei-a bem; peguei-lhe na m�o, e chamei-a brandamente a mim. N�o me enganava; eram as bexigas. Creio que fiz um gesto de repulsa. Virgilia afastou-se, e foi sentar-se no soph�. Eu fiquei algum tempo a olhar para os meus proprios p�s. Devia, sair ou ficar? Rejeitei o primeiro alvitre, que era simplesmente absurdo, e encaminhei-me para Virgilia, que l� estava sentada e calada. Ceus! Era outra vez a fresca, a juvenil, a florida Virgilia. Em v�o procurei no rosto delia algum vestigio da doen�a; nenhum havia; era a pelle fina e branca do costume. --Nunca me viu? perguntou Virgilia, vendo que a encarava com insist�ncia. --T�o bonita, nunca. Sentei-me, emquanto Virgilia, calada, fazia estalar as unhas. Seguiram-se alguns segundos de pausa. Fallei-lhe de cousas extranhas ao incidente; ella por�m n�o me respondia nada, nem olhava para mim. Menos o estalido, era a estatua do Silencio. Uma s� vez me deitou os olhos, mas muito de cima, soerguendo a pontinha esquerda do labio, contrahindo as sobrancelhas, ao ponto de as unir; e todo esse conjuncto de cousas dava-lhe ao rosto uma express�o media, entre comica e tragica. Havia alguma affecta��o naquelle desdem; era um arrebique do gesto. L� dentro, ella padecia, e n�o pouco,--ou fosse magua pura, ou s� despeito; e porque a dor que se dissimula d�e mais, � mui prov�vel que Virgilia padecesse em dobro do que realmente devia padecer. Creio que isto � metaphysica. CAPITULO XLII Que escapou a Aristoteles Outra cousa que tambem me parece metaphysica � isto:--D�-se movimento a uma bola, por exemplo; r�la esta, encontra outra bola, transmitte-lhe o impulso, e eis a segunda bola a rolar como a primeira rolou. Supponhamos que a primeira bola se chama... Marcella,--� uma simples supposi��o; a segunda, Braz Cubas;--a terceira, Virgilia. Temos que Marcella, recebendo um piparote do passado rolou at� tocar em Braz Cubas,--o qual, cedendo � for�a impulsiva, entrou a rolar tambem at� esbarrar em Virgilia, que n�o tinha nada com a primeira bola; e eis ahi como, pela simples transmiss�o de uma for�a, se tocam os extremos sociaes, e se estabelece uma cousa que poderemos chamar--solidariedade do aborrecimento humano. Como � que este capitulo escapou a Aristoteles? CAPITULO XLIII Marqueza, porque eu serei marquez Positivamente, era um diabrete Virgilia, um diabrete angelico, se querem, mas era-o, e ent�o... E ent�o appareceu o Lobo Neves, um homem que n�o era mais esbelto do que eu, nem mais elegante, nem mais lido, nem mais sympathico, e todavia foi quem me arrebatou Virgilia e a candidatura, dentro de poucas semanas, com um impeto verdadeiramente cesariano. N�o precedeu nenhum despeito; n�o houve a menor violencia de familia. O Dutra veiu dizer-me, um dia, que esperasse outra aragem, porque a candidatura de Lobo Neves era apoiada por grandes influencias. Cedi; e tal foi o come�o da minha derrota. Uma semana depois, Virgilia perguntou ao Lobo Neves, a sorrir, quando seria elle ministro. --Pela minha vontade, j�; pela dos outros, daqui a um anno. Virgilia replicou: --Promette que algum dia me far� baroneza? --Marqueza, porque eu serei marquez. Desde ent�o fiquei perdido. Virgilia comparou a aguia e o pav�o, e elegeu a aguia, deixando o pav�o com o seu espanto, o seu despeito, e tres ou quatro beijos que lhe dera. Talvez cinco beijos; mas dez que fossem n�o queria dizer cousa nenhuma. O labio do homem n�o � como a pata do cavallo de Attila que esterilisava o solo em que batia; � justamente o contrario. CAPITULO XLIV Um Cubas! Meu pae ficou attonito com o desenlace, e quer-me parecer que n�o morreu de outra cousa. Eram tantos os castellos que engenh�ra, tantos e tantissimos os sonhos, que n�o podia vel-os assim esboroados, sem padecer um forte abalo no organismo. A principio n�o quiz crel-o. Um Cubas! um galho da arvore illustre dos Cubas! E dizia isto com tal convic��o, que eu, j� ent�o informado da nossa tanoaria, esqueci um instante a voluvel dama, para s� contemplar aquelle phenomeno, n�o raro, mas curioso: uma imagina��o graduada em consci�ncia. --Um Cubas! repetia-me elle na seguinte manh�, ao almo�o. N�o foi alegre o almo�o; eu proprio estava a ca�r de somno. Tinha velado uma parte da noite. De amor? Era impossivel; n�o se ama duas vezes a mesma mulher, e eu, que tinha de amar aquella, tempos depois, n�o lhe estava agora preso por nenhum outro vinculo, al�m de uma phantasia passageira, alguma obediencia e muita fatuidade. E isto basta a explicar a vigilia; era despeito, um despeitosinho agudo como ponta de alfinete, o qual se desfez, com charutos, murros, leituras truncadas, at� romper a aurora, a mais tranquilla das auroras. Mas eu era mo�o, tinha o remedio em mim mesmo. Meu pae � que n�o p�de supportar facilmente a pancada. Pensando bem, pode ser que n�o morresse precisamente do desastre; mas que o desastre lhe complicou as ultimas dores, � positivo. Morreu dahi a quatro mezes,--acabrunhado, triste, com uma preoccupa��o intensa e continua, � semelhan�a de remorso, um desencanto mortal, que lhe substituiu os rheumatismos e tosses. Teve ainda uma meia hora de alegria; foi quando um dos ministros o visitou. Vi-lhe,--lembra-me bem,--vi-lhe o grato sorriso de outro tempo, e nos olhos uma concentra��o de luz, que era, por assim dizer, o ultimo lampejo da alma expirante. Mas a tristeza tornou logo, a tristeza de morrer sem me ver posto em algum logar alto, como ali�s me cabia. --Um Cubas! Morreu alguns dias depois da visita do ministro, uma manh� de maio, entre os dois filhos, Sabina e eu, e mais o tio Ildefonso e meu cunhado. Morreu sem lhe poder valer a sciencia dos medicos, nem o nosso amor, nem os cuidados, que foram muitos, nem cousa nenhuma; tinha de morrer, morreu. --Um Cubas! CAPITULO XLV Notas Solu�os, lagrimas, casa armada, velludo preto nos portaes, um homem que veiu vestir o cadaver, outro que tomou a medida do caix�o, caix�o, e�a, tocheiros, convites, convidados que entravam, lentamente, a passo surdo, e apertavam a m�o � familia, alguns tristes, todos serios e calados, padre e sacrist�o, rezas, aspers�es d'agua benta, o fechar do caix�o, a prego e martello, seis pessoas que o tomam da e�a, e o levantam, e o descem a custo pela escada, n�o obstante os gritos, solu�os e novas lagrimas da familia, e v�o at� o coche funebre, e o collocam em cima, e traspassam e apertam as corr�as, o rodar do coche, o rodar dos carros, um a um... Isto que parece um simples inventario, eram notas que eu havia tomado para um capitulo extremamente succulento, em que provava que a terra deve continuar a girar em volta do sol; porquanto:--_a_) a natureza n�o inventou a morte, sen�o com o fim de dar vida a algumas industrias,--armadores, segeiros, emprezas funerarias, typographias, e outras que ella sagazmente previu;--_b_) mortas essas industrias, pela ausencia da morte humana, n�o � improvavel que viessem a morrer os respectivos industriaes; o que dava na mesma. Mas tudo isto s�o apenas notas de um capitulo, que n�o escrevo. CAPITULO XLVI A heran�a Veja-nos agora o leitor, oito dias depois da morte de meu pae,--minha irm� sentada n'um soph�,--pouco adiante, o Cotrim, de p�, encostado a um consolo, com os bra�os cruzados e a morder o bigode,--eu a passeiar de um lado para outro, com os olhos no ch�o. Luto pezado. Profundo silencio. --Mas afinal, disse o Cotrim; esta casa pouco mais p�de valer de trinta contos; demos que valha trinta e cinco... --Vale cincoenta, ponderei; a Sabina sabe que custou cincoenta e oito... --Podia custar at� sessenta, tornou o Cotrim; mas n�o se segue que os valesse, e menos ainda que os valha hoje. Voc� sabe que as casas, aqui ha annos, baixaram muito. Olhe, se esta vale os cincoenta contos, quantos n�o vale a que voc� deseja para si, a do Campo? --N�o fale nisso! Uma casa velha. --Velha! exclamou Sabina, levantando as m�os ao tecto. --Parece-lhe nova, aposto? --Ora, mano, deixe-se dessas cousas, disse Sabina, erguendo-se do soph�; podemos arranjar tudo em boa amizade, e com lisura. Por exemplo, o Cotrim n�o aceita os pretos, quer s� o boleeiro de papae e o Paulo... --O boleeiro n�o, acudi eu; fico com a sege e n�o hei de ir comprar outro. --Bem; fico com o Paulo e o Prudencio. --O Prudencio est� livre. --Livre? --Ha dois annos. --Livre? Como seu pae arranjava estas cousas c� por casa, sem dar parte a ninguem! Est� direito. Quanto � prata... creio que n�o libertou a prata? Tinhamos falado na prata, a velha prataria do tempo de D. Jos� I, a por��o mais grave da heran�a, j� pelo lavor, j� pela vetustez, j� pela origem da propriedade; dizia meu pae que o conde da Cunha, quando vice-rei do Brazil, a dera de presente a meu bisav� Luiz Cubas. --Quanto � prata, continuou o Cotrim, eu n�o faria quest�o nenhuma, se n�o fosse o desejo que sua irm� tem de ficar com ella; e acho-lhe raz�o. Sabina � casada, e precisa de uma copa digna, apresentavel. Voc� � solteiro, n�o recebe, n�o... --Mas posso casar. --Para que? interrompeu Sabina. Era t�o sublime esta pergunta, que por alguns instantes me fez esquecer os interesses. Sorri; peguei na m�o de Sabina, bati-lhe levemente na palma, tudo isso com t�o boa sombra, que o Cotrim interpretou o gesto como de acquiescencia, e agradeceu-m'o. --Que � l�? redargui; n�o cedi cousa nenhuma, nem cedo. --Nem cede? Abanei a cabe�a. --Deixa, Cotrim, disse minha irm� ao marido; v� se elle quer ficar tambem com a nossa roupa do corpo; � s� o que falta. --N�o falta mais nada. Quer a sege, quer o boleeiro, quer a prata, quer tudo. Olhe, � muito mais summario citar-nos a juizo e provar com testemunhas que Sabina n�o � sua irm�, que eu n�o sou seu cunhado, e que Deus n�o � Deus. Fa�a isto, e n�o perde nada, nem uma colherinha. Ora, meu amigo, outro officio! Estava t�o agastado, e eu n�o menos, que entendi offerecer um meio de concilia��o; dividir a prata. Riu-se e perguntou-me a quem caberia o bule e a quem o assucareiro; e depois desta pergunta, declarou que teriamos tempo de liquidar a preten��o, quando menos em juizo. Entretanto, Sabina f�ra at� � janella que dava para a chacara,--e depois de um instante, voltou, e propoz ceder o Paulo e outro preto, com a condi��o de ficar com a prata; eu ia dizer que n�o me convinha, mas o Cotrim adiantou-se e disse a mesma cousa. --Isso nunca! n�o fa�o esmolas! disse elle. Jant�mos tristes. Meu tio conego appareceu � sobremeza, e ainda presenciou uma pequena alterca��o. --Meus filhos, disse elle, lembrem-se que meu irm�o deixou um p�o bem grande para ser repartido por todos. Mas o Cotrim: --Creio, creio. A quest�o, porem, n�o � de p�o, � de manteiga. P�o secco � que eu n�o engulo. Fizeram-se finalmente as partilhas, mas n�s estavamos brigados. E digo-lhes que, ainda assim, custou-me muito a brigar com Sabina. Eramos t�o amigos! Jogos pueris, furias de crian�a, risos e tristezas da edade adulta, dividimos muita vez esse p�o da alegria e da miseria, irm�mente, como bons irm�os que eramos. Mas estavamos brigados. Tal qual a belleza de Marcella, que se esvaiu com as bexigas. CAPITULO XLVII O recluso Marcella, Sabina, Virgilia... ahi estou eu a fundir todos os contrastes, como se esses nomes e pessoas n�o fossem mais do que modos de ser da minha affei��o interior. Penna de m�us costumes, ata uma gravata ao teu estylo, veste-lhe um collete menos sordido; e depois sim, depois vem commigo, entra nessa casa, estira-te nessa rede que me embalou a melhor parte dos annos que decorreram desde o inventario de meu pae at� 1842. Vem; se te cheirar a algum aroma de toucador, n�o cuides que o mandei derramar para meu regalo; � um vest�gio da N. ou da Z. ou da U.--que todas essas lettras maiusculas embalaram ahi a sua elegante abjec��o. Mas, se al�m do aroma, quizeres outra cousa, fica-te com o desejo, porque eu n�o guardei retratos, nem cartas, nem memorias; a mesma commo��o esvaiu-se, e s� me ficaram as lettras iniciaes. Vivi meio recluso, indo de longe em longe a algum baile, ou theatro, ou palestra, mas a m�r parte do tempo passei-a commigo mesmo. Vivia; deixava-me ir ao curso e recurso dos successos e dos dias, ora boli�oso, ora apathico, entre a ambi��o e o desanimo. Escrevia politica e fazia litteratura. Mandava artigos e versos para as folhas publicas, e cheguei a alcan�ar certa reputa��o de polemista e de poeta. Quando me lembrava do Lobo Neves, que era j� deputado, e de Virgilia, futura marqueza, perguntava a mim mesmo porque n�o seria melhor deputado e melhor marquez do que o Lobo Neves,--eu, que valia mais, muito mais do que elle,--e dizia isto a olhar para a ponta do nariz... CAPITULO XLVIII Um primo de Virgilia --Sabe quem chegou hontem de S. Paulo? perguntou-me uma noite o Luiz Dutra. O Luiz Dutra era um primo de Virgilia, que tambem privava com as musas. Os versos delle agradavam e valiam mais do que os meus; mas elle tinha necessidade da sanc��o de alguns, que lhe confirmasse o applauso dos outros. Como fosse acanhado, n�o interrogava a ninguem; mas deleitava-se com ouvir alguma palavra de apre�o; ent�o criava novas for�as e arremettia juvenilmente ao trabalho. Pobre Luiz Dutra! Apenas publicava alguma cousa corria � minha casa, e entrava a girar em volta de mim, � espreita de um juizo, de uma palavra, de um gesto, que lhe approvasse a recente produc��o, e eu falava-lhe de mil cousas differentes,--do ultimo baile do Cattete, da discuss�o das camaras, de berlindas e cavallos,--de tudo, menos dos seus versos ou prosas. Elle respondia-me, a principio com anima��o, depois mais frouxo, torcia a redea da conversa para o seu assumpto delle, abria um livro, perguntava-me se tinha algum trabalho novo, e eu dizia-lhe que sim ou que n�o, mas torcia a redea para o outro lado, e l� ia elle atraz de mim, at� que empacava de todo e sa�a triste. Minha inten��o era fazel-o duvidar de si mesmo, desanimal-o, eliminal-o. E tudo isto a olhar para a ponta do nariz... CAPITULO XLIX A ponta do nariz Nariz, consciencia sem remorsos, tu me valeste muito na vida... J� meditaste alguma vez no destino do nariz, amado leitor? A explica��o do doutor Pangloss � que o nariz foi creado para uso dos oculos,--e tal explica��o confesso que at� certo tempo me pareceu definitiva; mas veiu um dia, em que, estando a ruminar esse e outros pontos obscuros de philosophia, atinei com a unica, verdadeira e definitiva explica��o. Com effeito, bastou-me attentar no costume do fakir. Sabe o leitor que o fakir gasta longas horas a olhar para a ponta do nariz, com o fim unico de ver a luz celeste. Quando elle finca os olhos na ponta do nariz, perde o sentimento das cousas externas, embelleza-se no invisivel, apprehende o impalpavel, desvincula-se da terra, dissolve-se, etherisa-se. Essa sublima��o do ser pela ponta do nariz � o phenomeno mais excelso do espirito; e a faculdade de a obter n�o pertence ao fakir s�mente; � universal. Cada homem tem necessidade e poder de contemplar o seu proprio nariz, para o fim de ver a luz celeste; e tal contempla��o, cujo effeito � a subordina��o do universo a um nariz s�mente, constitue o equilibrio das sociedades. Se os narizes se contemplassem exclusivamente uns aos outros, o genero humano n�o chegaria a durar dois s�culos: extinguia-se com as primeiras tribos. Ou�o daqui uma objec��o do leitor:--Como pode ser assim, diz elle, se nunca jamais ninguem n�o viu estarem os homens a contemplar o seu proprio nariz? Leitor obtuso, isso prova que nunca entraste no cerebro de um chapeleiro. Um chapeleiro passa por uma loja de chapeus; � a loja de um rival, que a abriu ha dois annos; tinha ent�o duas portas, hoje tem quatro; promette ter seis e oito. Nas vidra�as ostentam-se os chapeus do rival; pelas portas entram os freguezes do rival; e o chapeleiro compara aquella loja com a sua, que � mais antiga e tem s� duas portas, e aquelles chapeus com os seus, menos buscados, ainda que de egual pre�o. Mortifica-se naturalmente; mas vae andando, concentrado, com os olhos para baixo ou para a frente, a indagar as causas da prosperidade do outro e do seu proprio atrazo, quando elle chapeleiro � muito melhor chapeleiro do que o outro chapeleiro... Nesse instante � que os olhos se fixam na ponta do nariz. A conclus�o, portanto, � que ha duas for�as capitaes: o amor, que multiplica a especie, e o nariz, que a subordina ao individuo. Procrea��o, equilibrio. CAPITULO L Virgilia casada --Quem chegou de S. Paulo foi minha prima Virgilia, casada com o Lobo Neves, continuou o Luiz Dutra. --Ah! --E s� hoje � que eu soube uma cousa, seu magan�o... --Que foi? --Que voc� quiz casar com ella. --Id�as de meu pae. Quem lhe disse isso? --Ella mesma. Falei-lhe muito em voc�, e ella ent�o contou-me tudo. No dia seguinte, estando na rua do Ouvidor, � porta da typographia do Plancher, vi assomar, a distancia, uma mulher esplendida. Era ella; s� a reconheci a poucos passos, t�o outra estava, a tal ponto a natureza e a arte lhe haviam dado o ultimo apuro. Cortej�mo-nos; ella seguiu; entrou com o marido na carruagem, que os esperava um pouco acima; eu fiquei attonito. Oito dias depois, encontrei-a num baile; creio que cheg�mos a trocar duas ou tres palavras. Mas n'outro baile, dado dahi a um mez, em casa de uma senhora, que ornara os sal�es do primeiro reinado, e n�o desornava ent�o os do segundo, a aproxima��o foi maior e mais longa, porque convers�mos e vals�mos. A valsa � uma deliciosa cousa. Vals�mos; e n�o nego que, ao conchegar ao meu corpo aquelle corpo flexivel e magnifico, tive uma singular sensa��o, uma sensa��o de homem roubado. --Est� muito calor, disse ella, logo que acab�mos. Vamos ao terra�o? --N�o; pode constipar-se. Vamos a outra sala. Na outra sala estava o Lobo Neves, que me fez muitos comprimentos, �cerca dos meus escriptos politicos, accrescentando que nada dizia dos litterarios, por n�o entender delles; mas os politicos eram excellentes, bem pensados e bem escriptos. Respondi-lhe com eguaes esmeros de cortezia, e separ�mos-nos contentes um do outro. Cerca de tres semanas depois recebi um convite delle para uma reuni�o intima. Fui; Virgilia recebeu-me com esta graciosa palavra:--O senhor hoje ha de valsar commigo.--Na verdade, eu tinha fama e era valsista emerito; n�o admira que ella me preferisse. Vals�mos uma vez, e mais outra vez. Um livro perdeu Francesca; c� foi a valsa que nos perdeu. Creio que nessa noite apertei-lhe a m�o com muita for�a, e ella deixou-a ficar, como esquecida, e eu a abra�al-a, e todos com os olhos em n�s, e nos outros que tambem se abra�avam e giravam...Um delirio. CAPITULO LI � minha! --� minha! disse eu commigo, logo que a passei a outro cavalheiro; e confesso que durante o resto da noite, foi-se-me a id�a entranhando no espirito, n�o � for�a de martello, mas de verruma, que � mais insinuativa. --� minha! dizia eu ao chegar � porta de casa. Mas ahi, como se o destino ou o acaso, ou o que quer que fosse, se lembrasse de dar algum pasto aos meus arroubos possessorios, luziu-me no ch�o uma cousa redonda e amarella. Abaixei-me; era uma moeda de ouro, uma meia-dobra. --� minha! repeti eu a rir-me; e metti-a no bolso. Nessa noite n�o pensei mais na moeda; mas no dia seguinte, recordando o caso, senti uns repell�es da consciencia, e uma voz que me perguntava porque diabo seria minha uma moeda que eu n�o herdara nem ganhara, mas s�mente achara na rua. Evidentemente n�o era minha; era de outro, daquelle que a perdera, rico ou pobre, e talvez fosse pobre, algum operario que n�o teria com que dar de comer � mulher e aos filhos; mas se fosse rico, o meu dever ficava o mesmo. Cumpria restituir a moeda, e o melhor meio, o unico meio, era fazel-o por intermedio de um annuncio ou da policia. Enviei uma carta ao chefe de policia, remettendo-lhe o achado, e rogando-lhe que, pelos meios a seu alcance, fizesse devolvel-o �s m�os do verdadeiro dono. Mandei a carta e almocei tranquillo, posso at� dizer que jubiloso. Minha consciencia vals�ra tanto na vespera, que chegou a ficar suffocada, sem respira��o; mas a restitui��o da meia dobra foi uma janella que se abriu para o outro lado da moral; entrou uma onda de ar puro, e a pobre dama respirou � larga. Ventilae as consci�ncias! n�o vos digo mais nada. Todavia, despido de quaesquer outras circumstancias, o meu acto era bonito, porque exprimia um justo escrupulo, um sentimento de alma delicada. Era o que me dizia a minha dama interior, com um modo austero e meigo a um tempo; � o que ella me dizia, reclinada ao peitoril da janella aberta. --Fizeste bem, Cubas; andaste perfeitamente. Este ar n�o � s� puro, � balsamico, e uma transpira��o dos eternos jardins. Queres ver o que fizeste, Cubas? E a boa dama sacou um espelho e abriu-m'o deante dos olhos. Vi, claramente vista, a meia dobra da vespera, redonda, brilhante, nitida, multiplicando-se por si mesma,--ser dez--depois trinta--depois quinhentas,--exprimindo assim o beneficio que me daria na vida e na morte o simples acto da restitui��o. E eu espraiava todo o meu ser na contempla��o daquelle acto, revia-me nelle, achava-me bom, talvez grande. Uma simples moeda, hem? Vejam o que � ter valsado um poucochinho mais. Assim, eu, Braz Cubas, descobri uma lei sublime, a lei da equivalencia das janellas, e estabeleci que o modo de compensar uma janella fechada � abrir outra, afim de que a moral possa arejar continuamente a consciencia. Talvez n�o entendas o que ahi fica; talvez queiras uma cousa mais concreta, um embrulho, por exemplo, um embrulho mysterioso. Pois toma l� o embrulho mysterioso. CAPITULO LII O embrulho mysterioso Foi o caso que, alguns dias depois, indo eu a Botafogo tropecei n'um embrulho, que estava na praia. N�o digo bem; houve menos trope��o que pontap�. Vendo um embrulho, n�o grande, mas limpo e correctamente feito, atado com um barbante rijo, uma cousa que parecia alguma cousa, lembrou-me bater-lhe com o p�, assim por experiencia, e bati, e o embrulho resistiu. Relanceei os olhos em volta de mim; a praia estava deserta; ao longe uns meninos brincavam,--um pescador curava as redes ainda mais longe,--ninguem que pudesse ver a minha ac��o; inclinei-me, apanhei o embrulho e segui. Segui, mas n�o sem receio. Podia ser uma pulha de rapazes. Tive id�a de devolver o achado � praia, mas apalpei-o e rejeitei a idea. Um pouco adeante, desandei o caminho e guiei para casa. --Vejamos, disse eu ao entrar no gabinete. E hesitei um instante, creio que por vergonha; assaltou-me outra vez o receio da pulha. � certo que n�o havia alli nenhuma testemunha externa; mas eu tinha dentro de mim mesmo um garoto, que havia de assoviar, guinchar, grunhir, patear, apupar, cacarejar, fazer o diabo, se me visse abrir o embrulho e achar dentro uma duzia de len�os velhos ou duas duzias de goiabas verdes. Mas era tarde; a curiosidade estava agu�ada, como deve estar a do leitor; desfiz o embrulho, e vi... achei... contei... recontei nada menos de cinco contos de reis. Nada menos. Talvez um dez mil reis mais. Cinco contos em boas notas e dobras, tudo aceiadinho e arranjadinho, um achado raro. Embrulhei-as de novo. Ao jantar pareceu-me que um dos moleques falara a outro com os olhos. Ter-me-iam espreitado? Interroguei-os discretamente, e conclui que n�o. Sobre o jantar, fui outra vez ao gabinete, examinei o dinheiro, e ri-me dos meus cuidados maternaes a respeito de cinco contos,--eu, que era abastado. Para n�o pensar mais naquillo fui de noite � casa do Lobo Neves, que inst�ra muito commigo n�o deixasse de frequentar as recep��es da mulher. L� encontrei o chefe de policia; fui-lhe apresentado; elle lembrou-se logo da carta e da meia dobra que eu lhe remettera alguns dias antes. Aventou o caso; Virgilia pareceu saborear o meu procedimento, e cada um dos presentes acertou de contar uma anecdota analoga, que eu ouvi com impaciencias de mulher hysterica. De noite, no dia seguinte, em toda aquella semana pensei o menos que pude nos cinco contos, e at� confesso que os deixei muito quietinhos na gaveta da secretaria. Gostava de falar de todas as cousas, menos de dinheiro, e principalmente de dinheiro achado; e todavia n�o era crime achar dinheiro, era uma felicidade, um bom acaso, era talvez um lance da Providencia. N�o podia ser outra cousa. N�o se perdem cinco contos, como se perde um len�o de tabaco. Cinco contos levam-se com trinta mil sentidos, apalpam-se a miudo, n�o se lhes tiram os olhos de cima, nem as m�os, nem o pensamento, e para se perderem assim tolamente, n'uma praia, � necess�rio que... Crime � que n�o podia ser o achado; nem crime, nem deshonra, nem nada que embaciasse o caracter de um homem. Era um achado, um acerto feliz, como a sorte grande, como as apostas de cavallo, como os ganhos de um jogo honesto; e at� direi que a minha felicidade era merecida, porque eu n�o me sentia m�u, nem indigno dos beneficios da Providencia. --Estes cinco contos, dizia eu com migo, tres semanas depois, hei de empregal-os em alguma ac��o b�a, talvez um dote a alguma menina pobre, ou outra cousa assim... hei de ver... Nesse mesmo dia levei-os ao Banco do Brazil. L� me receberam com muitas e delicadas allus�es ao caso de meia dobra, cuja noticia andava j� espalhada entre as pessoas do meu conhecimento; respondi enfadado que a cousa n�o valia a pena de tamanho estrondo; louvaram-me ent�o a modestia,--e porque eu me encolerisasse, replicaram-me que era simplesmente grande. CAPITULO LIII .......... Virgilia � que j� se n�o lembrava da meia dobra; toda ella estava concentrada em mim, nos meus olhos, na minha vida, no meu pensamento;--era o que dizia, e era verdade. Ha umas plantas que nascem e crescem depressa; outras s�o tardias e pecas. O nosso amor era daquellas; brotou com tal impeto e tanta seiva, que, dentro em pouco, era a mais vasta, folhuda e exuberante creatura dos bosques. N�o lhes poderei dizer, ao certo, os dias que durou esse crescimento. Lembra-me, sim, que, em certa noite, abotoou-se a flor, ou o beijo, se assim lhe quizerem chamar, um beijo que ella me deu, tremula,--coitadinha,--tremula de medo, porque era ao port�o da chacara, � vista das estrellas,--das castas estrellas de Othello,--_you chaste stars!_ Uniu-nos esse beijo unico,--breve como a occasi�o, ardente como o amor, prologo de uma vida de delicias, de terrores, de remorsos, de prazeres que rematavam em dor, de afflic��es que desabrochavam em alegria,--uma hypocrisia paciente e systematica, unico freio de uma paix�o sem freio,--vida de agita��es, de coleras, de desesperos e de ciumes, que uma hora pagava � farta e de sobra; mas outra hora vinha e engolia aquella, como tudo mais, para deixar � tona as agita��es e o resto, e o resto do resto, que � o fastio e a saciedade: tal foi o livro daquelle prologo. CAPITULO LIV A pendula Sa� dalli a saborear o beijo. N�o pude dormir; estirei-me na cama, � certo, mas foi o mesmo que nada. Ouvi as horas todas da noite. Usualmente, quando eu perdia o somno, o bater da pendula fazia-me muito mal; esse _tic-tac_ soturno, vagaroso e secco parecia dizer a cada golpe que eu ia ter um instante menos de vida. Imaginava ent�o um velho diabo, sentado entre dous saccos, o da vida e da morte, a tirar as moedas da vida para dal-as � morte, e a contal-as assim: --Outra de menos... --Outra de menos... --Outra de menos... --Outra de menos... O mais singular � que, se o relogio parava, eu dava-lhe corda, para que elle n�o deixasse de bater nunca, e eu pudesse contar todos os meus instantes perdidos. Inven��es ha, que se transformam ou acabam; as mesmas institui��es morrem; o relogio � definitivo e perpetuo. O derradeiro homem, ao despedir-se do sol frio e gasto, hade ter um relogio na algibeira, para saber a hora exacta em que morre. Naquella noite n�o padeci essa triste sensa��o de enfado, mas outra, e deleitosa. As phantasias tumultuavam-me c� dentro, vinham umas sobre outras, � semelhan�a de devotas que se abalroam para ver o anjo-cantor das prociss�es. N�o ouvia os instantes perdidos, mas os minutos ganhados; e de certo tempo em diante n�o ouvi cousa nenhuma, porque o meu pensamento, ardiloso e traquinas, saltou pela janella f�ra e bateu as azas na direc��o da casa de Virgilia. Ahi achou ao peitoril de uma janella o pensamento de Virgilia, saudaram-se e ficaram de palestra. N�s a rolarmos na cama, talvez com frio, necessitados de repouso, e os dous vadios alli postos, a repetirem o velho dialogo de Ad�o e Eva. CAPITULO LV O velho dialogo de Ad�o e Eva BRAZ CUBAS . . . . ? VIRGILIA . . BRAZ CUBAS . . . . . . . . . . . . VIRGILIA . . . ! BRAZ CUBAS . . VIRGILIA . . . . . . . . . . . . . . ? . . . . . . . . . . . . . . . . . BRAZ CUBAS . . . . . . VIRGILIA . . . . BRAZ CUBAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ! . . . . ! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ! VIRGILIA . . . . . . . . . . . . .? BRAZ CUBAS . . . . .! VIRGILIA . . . . .! CAPITULO LVI O momento opportuno Mas, com a breca! quem me explicar� a raz�o desta differen�a? Um dia vimo-nos, trat�mos o casamento, desfizemol-o e separamo-nos, a frio, sem dor, porque n�o houvera paix�o nenhuma; mordeu-me apenas algum despeito e nada mais. Correm annos, torno a vel-a, damos tres ou quatro giros de valsa, e eis-nos a amar um ao outro com delirio. A belleza de Virgilia cheg�ra, � certo, a um alto gr�u de apuro, mas n�s eramos substancialmente os mesmos, e eu, � minha parte, n�o me torn�ra mais bonito nem mais elegante. Quem me explicar� a raz�o dessa differen�a? A raz�o n�o podia ser outra sen�o o momento opportuno. N�o era opportuno o primeiro momento, porque, se nenhum de n�s estava verde para o amor, ambos o estavamos para o _nosso_ amor: distinc��o fundamental. N�o ha amor possivel sem a opportunidade dos sujeitos. Esta explica��o achei-a eu mesmo, dous annos depois do beijo, um dia em que Virgilia se me queixava de um pintalegrete que l� ia e tenazmente a galanteava. --Que importuno! dizia ella fazendo uma careta de raiva. Estremeci, fitei-a, vi que a indigna��o era sincera; ent�o occorreu-me que talvez eu tivesse provocado alguma vez aquella mesma careta, e comprehendi logo toda a grandeza da minha evolu��o. Tinha vindo de importuno a opportuno. CAPITULO LVII Destino Sim, senhor, amavamos. Agora, que todas as leis sociaes nol-o impediam, agora � que nos amavamos dev�ras. Achavamo-nos jungi-los um ao outro, como as duas almas que o poeta encontrou no Purgatorio: Di pari, come buoi, che vanno a giogo; e digo mal, comparando-nos a bois, porque n�s eramos outra especie de animal menos tardo, mais velhaco e lascivo. Eis-nos a caminhar sem saber at� onde, nem porque estradas escusas; problema que me assustou, durante algumas semanas, mas cuja solu��o entreguei ao destino. Pobre Destino! Onde andar�s agora, grande procurador dos negocios humanos? Talvez estejas a criar pelle nova, outra cara, outras maneiras, outro nome, e n�o � impossivel que... J� me n�o lembra onde estava... Ah! nas estradas escusas. Disse eu commigo que j� agora seria o que Deus quisesse. Era a nossa sorte amar-nos; se assim n�o fora, como explicariamos a valsa e o resto? Virgilia pensava a mesma cousa. Um dia, depois de me confessar que tinha momentos de remorsos, como eu lhe dissesse que, se tinha remorsos, � porque me n�o tinha amor, Virgilia cingiu-me com os seus magnificos bra�os, murmurando: --Amo-te, � a vontade do ceu. E esta palavra n�o vinha � toa; Virgilia era um pouco religiosa. N�o ouvia missa aos domingos, � verdade, e creio at� que s� ia �s igrejas em dia de festa, e quando havia logar vago em alguma tribuna. Mas rezava todas as noites, com fervor, ou, pelo menos, com somno. Tinha medo �s trovoadas; nessas occasi�es, tapava os ouvidos, e resmoneava todas as ora��es do catecismo. Na alcova della havia um oratoriosinho de jacarand�, obra de talha, de tres palmos de altura, com tres imagens dentro; mas n�o falava delle �s amigas; ao contrario, taxava de beatas as que eram s� religiosas. Algum tempo desconfiei que havia nella certo vexame de crer, e que a sua religi�o era uma especie de camisa de flanella, preservativa e clandestina; mas evidentemente era engano meu. CAPITULO LVIII Confidencia O Lobo Neves, a principio, mettia-me grandes sustos. Pura illus�o! Como adorasse a mulher, n�o se vexava de m'o dizer muitas vezes; achava que Virgilia era a perfei��o mesma, um conjunto de qualidades solidas e finas, amoravel, elegante, austera, um modelo. E a confian�a n�o parava ahi. De fresta que era, chegou a porta escancarada. Um dia confessou-me que trazia uma triste carcoma na existencia; faltava-lhe a gloria publica. Animei-o; disse-lhe muitas cousas bonitas, que elle ouviu com aquella unc��o religiosa de um desejo que n�o quer acabar de morrer; ent�o comprehendi que a ambi��o delle andava can�ada de bater as azas, sem poder abrir o v�o. Dias depois disse-me todos os seus tedios e desfallecimentos, as amarguras engolidas, as raivas sopitadas; contou-me que a vida politica era um tecido de invejas, despeitos, intrigas, perfidias, interesses, vaidades. Evidentemente havia ahi uma crise de melancolia; tratei de combatel-a. --Sei o que lhe digo, replicou-me com tristeza. N�o p�de imaginar o que tenho passado. Entrei na politica por gosto, por familia, por ambi��o, e um pouco por vaidade. J� v� que reuni em mim s� todos os motivos que levam o homem � vida publica; faltou-me s� o interesse de outra natureza. Vira o theatro pelo lado da plat�a; e, palavra, que era bonito! Soberbo scenario, vida, movimento e gra�a na representa��o. Escripturei-me; deram-me um papel que... Mas para que o estou a fatigar com isto? Deixe-me ficar com as minhas amofina��es. Creia que tenho passado horas e dias... N�o ha const�ncia de sentimentos, n�o ha gratid�o, n�o ha nada... nada... nada... Calou-se, profundamente abatido, com os olhos no ar, parecendo n�o ouvir cousa nenhuma, a n�o ser o echo de seus proprios pensamentos. Ap�s alguns instantes, ergueu-se e estendeu-me a m�o:--O senhor ha de rir-se de mim, disse elle; mas desculpe aquelle desabafo; tinha um negocio, que me mordia o espirito. E ria, de um geito sombrio e triste; depois pediu-me que n�o referisse a ninguem o que se passara entre n�s; ponderei-lhe que a rigor n�o se passara nada. Entraram dous deputados e um chefe politico da parochia. O Lobo Neves recebeu-os com alegria, a principio um tanto posti�a, mas logo depois natural. No fim de meia hora, ninguem diria que elle n�o era o mais afortunado dos homens; conversava, chasqueava, e ria, e riam todos. CAPITULO LIX Um encontro Deve ser um vinho hem energico a politica, dizia eu commigo, ao sair da casa de Lobo Neves; e fui andando, fui andando, at� que na rua dos Barbonos vi uma sege, e dentro um dos ministros, meu antigo companheiro de collegio. Cortej�mo-nos affectuosamente, a sege seguiu, e eu fui andando... andando... andando.... --Porque n�o serei eu ministro? Esta id�a, r�tila e grande,--trajada ao bizarro, como diria o padre Bernardes,--esta id�a come�ou uma vertigem de cabriolas e eu deixei-me estar com os olhos nella, a achar-lhe gra�a. E n�o pensei mais na tristeza de Lobo Neves; senti a attrac��o do abysmo. Recordei aquelle companheiro de collegio, as correrias nos morros, as alegrias e travessuras, e comparei o menino com o homem, o perguntei a mim mesmo porque n�o seria eu como elle. Entrava ent�o no Passeio Publico; e tudo me parecia dizer a mesma cousa.--Porque n�o ser�s ministro, Cubas?--Cubas, porque n�o ser�s ministro de Estado? Ao ouvil-o, uma deliciosa sensa��o me refrescava todo o systema. Entrei, fui sentar-me n'um banco, a cavar commigo aquella id�a. E Virgilia que havia de gostar! Alguns minutos depois vejo encaminhar-se para mim uma cara, que me n�o pareceu desconhecida. Conhecia-a, fosse d'onde fosse. Imaginem um homem de trinta e oito a quarenta annos, alto, magro e pallido. As roupas, salvo o feitio, pareciam ter escapado ao captiveiro de Babylonia; o chap�u era contemporaneo do de Gessler. Imaginem agora uma sobrecasaca, mais larga do que pediam as carnes,--ou, litteralmente, os ossos da pessoa; a c�r preta ia cedendo o passo a um amarello sem brilho; o pello desapparecia aos poucos; dos oito primitivos bot�es restavam tres. As cal�as, de brim pardo, tinham duas fortes joelheiras, em quanto as bainhas eram roidas pelo tac�o de um botim sem misericordia nem graxa. Ao pesco�o fluctuavam as pontas de uma gravata de duas cores, ambas desmaiadas, apertando um collarinho de oito dias. Creio que trazia tambem collete, um collete de seda escura, roto a espa�os, e desabotoado. --Aposto que me n�o conhece, Sr. Dr. Cubas? disse elle. --N�o me lembra... --Sou o Borba, o Quincas Borba. Recuei espantado... Quem me dera agora o verbo solemne de um Bossuet ou de Vieira, para contar tamanha desola��o! Era o Quincas Borba, o gracioso menino de outro tempo, o meu companheiro de collegio, t�o intelligente e abastado. O Quincas Borba! N�o, imposs�vel; n�o pode ser. N�o podia acabar de crer que essa figura esqualida, essa barba pintada de branco, esse maltrapilho avelhentado, que toda essa ruina fosse o Quincas Borba. E era. Os olhos tinham um resto da express�o de outro tempo; e o sorriso n�o perdera certo ar escarninho, que lhe era peculiar. Entretanto, elle supportava com firmeza o meu espanto. No fim de algum tempo arredei os olhos; se a figura repellia, a compara��o acabrunhava. --N�o � preciso contar-lhe nada, disse elle emfim; o senhor adivinha tudo. Uma vida de miserias, de attribula��es e de lutas. Lembra-se das nossas festas, em que eu figurava de rei? Que trambolh�o! Acabo mendigo... E al�ando a m�o direita e os hombros, com um ar de indifferen�a, parecia resignado aos golpes da fortuna, e n�o sei at� se contente. Talvez contente. Com certeza, impassivel. N�o havia nelle a resigna��o christ�, nem a conformidade philosophica. Parece que a miseria lhe callej�ra a alma, a ponto de lhe tirar a sensa��o da lama. Arrastava os andrajos, como outr'ora a purpura: com certa gra�a indolente. --Procure-me, disse eu, poderei arranjar-lhe alguma cousa. Um sorriso magnifico lhe abriu os l�bios.--N�o � o primeiro que me promette alguma cousa, replicou; e n�o sei se ser� o ultimo que n�o me far� nada. E para que? Eu nada pe�o, a n�o ser dinheiro; dinheiro sim, porque � necessario comer, e as casas de pasto n�o fiam. Nem as quitandeiras. Uma cousa de nada, uns dous vint�ns de ang�, nem isso fiam as malditas quitandeiras.... Um inferno, meu... ia dizer meu amigo.... Um inferno! o diabo! todos os diabos! Olhe, ainda hoje n�o almocei. --N�o? --N�o; sa� muito cedo de casa. Sabe onde moro? No terceiro degr�u das escadas de S. Francisco, � esquerda de quem sobe; n�o precisa bater na porta. Casa fresca, extremamente fresca. Pois sa� cedo, e ainda n�o comi... Tirei a carteira, escolhi uma nota de cinco mil r�is,--a menos limpa,--e dei-lh'a. Elle recebeu-m'a com os olhos scintillantes de cobi�a. Levantou a nota ao ar, e agitou-a enthusiasmado. --_In hoc signo vinces!_ bradou. E depois beijou-a, com muitos ademanes de ternura, e t�o ruidosa expans�o, que me produziu um sentimento mixto de n�jo e lastima. Elle, que era arguto, entendeu-me; ficou serio, grotescamente serio, e pediu-me desculpa da alegria, dizendo que era alegria de pobre que n�o via, desde muitos annos, uma nota de cinco mil r�is. --Pois est� em suas m�os ver outras muitas, disse eu. --Sim? acudiu elle, dando um bote para mim. --Trabalhando, conclui eu. Fez um gesto de desdem; calou-se alguns instantes; depois disse-me positivamente que n�o queria trabalhar. Eu estava enjoado dessa abjec��o t�o comica e t�o triste, e preparei-me para sair. --N�o v� sem eu lhe ensinar a minha philosophia da miseria, disse elle, escarranchando-se diante de mim. CAPITULO LX O abra�o Cuidei que o pobre diabo estivesse doudo, e ia afastar-me, quando elle me pegou no pulso, e olhou alguns instantes para o brilhante que eu trazia no dedo. Senti-lhe na m�o uns estreme��es de cobi�a, uns pruridos de posse. --Magnifico! disse elle. Depois come�ou a andar � roda de mim e a examinar-me muito. --O senhor trata-se, disse elle. Joias, roupa fina, elegante e... Compare esses sapatos aos meus; que differen�a! Podera n�o! Digo-lhe que se trata. E mo�as? Como v�o ellas? Est� casado? --N�o... --Nem eu. --M�ro na rua... --N�o quero saber onde mora, atalhou o Quincas Borba. Se alguma vez nos virmos, d�-me outra nota de cinco mil r�is; mas permitta-me que n�o a v� buscar a sua casa. � uma especie de orgulho.... Agora, adeus; vejo que est� impaciente. --Adeus! --E obrigado. Deixa-me agradecer-lhe de mais perto? E dizendo isto abra�ou-me com tal impeto, que eu n�o pude evital-o. Separamo-nos finalmente, eu a passo largo, com a camisa amarrotada do abra�o, enfadado e triste. J� n�o dominava em mim a parte sympathica da sensa��o, mas a outra. Quizera ver-lhe a miseria digna. Comtudo, n�o pude deixar de comparar outra vez o homem de agora com o de outr'ora, entristecer-me, e encarar o abysmo que separa as esperan�as de um tempo da realidade de outro tempo... --Ora adeus! Vamos jantar, disse commigo. Metto a m�o no collete e n�o acho o relogio. Ultima desillus�o! o Borba furt�ra-m'o no abra�o. CAPITULO LXI Um projecto Jantei triste. N�o era a falta do relogio que me pungia, era a imagem do autor do furto, e as reminiscencias de crian�a, e outra vez a compara��o, e a conclus�o... Desde a sopa, come�ou a abrir em mim a flor amarella e morbida do cap. XXV, e ent�o jantei depressa, para correr � casa de Virgilia. Virgilia era o presente; eu queria refugiar-me nelle, para escapar �s oppress�es do passado, porque o encontro do Quincas Borba tornara-me aos olhos o passado, n�o qual fora dev�ras, mas um passado roto, abjecto, mendigo e gatuno. Sa� de casa, mas era cedo; iria achal-os � mesa. Outra vez pensei no Quincas Borba, e tive ent�o um desejo de tornar ao Passeio Publico, a ver se o achava; a id�a de o regenerar surgiu-me como uma forte necessidade. Fui; mas j� n�o o achei. Indaguei do guarda; disse-me que effectivamente �esse sujeito� ia por alli �s vezes. --A que horas? --N�o tem hora certa. N�o era impossivel encontral-o n'outra occasi�o; prometti a mim mesmo l� voltar. A necessidade de o regenerar, de o trazer ao trabalho e ao respeito de sua pess�a enchia-me o cora��o; eu come�ava a sentir um bem-estar, uma eleva��o, uma admira��o de mim proprio... Nisto ca�a a noite; fui ter com Virgilia. CAPITULO LXII O travesseiro Fui ter com Virgilia; bem depressa esqueci o Quincas Borba. Virgilia era o travesseiro do meu espirito, um travesseiro molle, tepido, aromatico, enfronhado em cambraia e bruxellas. Era alli que elle costumava repousar de todas as sensa��es m�s, simplesmente enfadonhas, ou at� dolorosas. E, bem pesadas as cousas, n�o era outra a raz�o da existencia de Virgilia; n�o podia ser. Cinco minutos bastaram para olvidar inteiramente o Quincas Borba; cinco minutos de uma contempla��o mutua, com as m�os presas umas nas outras; cinco minutos e um beijo. E l� se foi a lembran�a do Quincas Borba... Escrofula da vida, andrajo do passado, que me importa que existas, que molestes os olhos dos outros, se eu tenho dous palmos de um travesseiro divino, para fechar os olhos e dormir? CAPITULO LXIII Fujamos! Ai! nem sempre dormir. Tres semanas depois, indo � casa de Virgilia,--eram quatro horas da tarde,--achei-a triste e abatida. N�o me quiz dizer o que era; mas, como eu instasse muito: --Creio que o Dami�o desconfia alguma cousa. Noto agora umas exquisitices nelle... N�o sei... Trata-me bem, n�o ha duvida; mas o olhar parece que n�o � o mesmo. Durmo, mal; ainda esta noite acordei, aterrada; estava sonhando que elle me ia matar. Talvez seja illus�o, mas eu penso que elle desconfia... Tranquillisei-a como pude; disse que podiam ser cuidados politicos. Virgilia concordou que seriam, mas ficou ainda muito excitada e nervosa. Estavamos na sala de visitas, que dava justamente para a chacara, onde troc�ramos o beijo inicial. Uma janella aberta deixava entrar o vento, que sacudia frouxamente as cortinas; e eu fiquei a olhar para as cortinas, sem as ver. Empunh�ra o binoculo da imagina��o; lobrigava, ao longe, uma casa nossa, uma vida nossa, um mundo nosso, em que n�o havia Lobo Neves, nem casamento, nem moral, nem nenhum outro liame, que nos tolhesse a expans�o da vontade. Esta id�a embriagou-me; eliminados assim o mundo, a moral e o marido, n�o haveria mais do que penetrar naquella habita��o dos anjos. --Virgilia, disse eu, proponho-te uma cousa. --Que �? --Amas-me? --Oh! suspirou ella, cingindo-me os bra�os ao pesco�o. Virgilia amava-me com furia; aquella resposta era a verdade patente. Com os bra�os ao meu pesco�o, calada, respirando muito, deixou-se ficar a olhar para mim, com os seus grandes e bellos olhos, que davam uma sensa��o singular de luz humida; e eu deixei-me estar a vel-os, a namorar-lhe a boca, fresca como a madrugada, e insaciavel como a morte. A belleza de Virgilia tinha agora um tom grandioso, que n�o possuira antes de casar. Era dessas figuras talhadas em pentelico, de um lavor nobre, rasgado e puro, tranquillamente bella, como as estatuas, mas n�o apathica nem fria. Ao contrario, tinha o aspecto das naturezas calidas, e podia-se dizer, que, na realidade, resumia todo o amor. Resumia-o sobretudo naquella occasi�o, em que exprimia mudamente tudo quanto p�de dizer a pupilla humana. Mas o tempo urgia; deslacei-lhe as m�os, peguei-lhe nos pulsos, e, fito nella, perguntei-lhe se tinha coragem. --De que? --De fugir. Iremos para onde nos f�r mais commodo, uma casa grande ou pequena, � tua vontade, na ro�a ou na cidade, ou na Europa, onde te parecer, onde ninguem nos aborre�a, e n�o haja perigos p�ra ti, onde vivamos um para o outro... Sim? fujamos. Tarde ou cedo, elle p�de descobrir alguma cousa, e estar�s perdida... ouves? perdida... morta... e elle tambem, porque eu o matarei, juro-te. Interrompi-me; Virgilia empallidec�ra muito, deixou cair os bra�os e sentou-se no canap�. Esteve assim alguns instantes, sem me dizer palavra, n�o sei se vacillante na escolha, se aterrada com a id�a da descoberta e da morte. Fui-me a ella, insisti na proposta, disse-lhe todas as vantagens de uma vida a s�s, sem zelos, nem terrores, nem afflic��es. Virgilia ouvia-me calada; depois disse: --N�o escapariamos talvez; elle iria ter commigo e matava-me do mesmo modo. Mostrei-lhe que n�o. O mundo era ass�s vasto, e eu tinha os meios de viver onde quer que houvesse ar puro e muito sol; elle n�o chegaria at� l�; s� as grandes paix�es s�o capazes de grandes ac��es, e elle n�o a amava tanto que pudesse ir buscal-a, se ella estivesse longe. Virgilia fez um gesto de espanto e quasi indigna��o; murmurou que o marido gostava muito della. --P�de ser, respondi eu; p�de ser que sim... E fui at� a janella, e comecei a assobiar e a rufar com os dedos no peitoril, Virgilia chamou-me; eu deixei-me estar, a remoer os meus zelos, a desejar estrangular o marido, se o tivesse alli � m�o... Justamente, nesse instante, entrou na chacara o Lobo Neves. N�o tremas assim, leitora pallida; descan�a, que n�o hei de rubricar esta lauda com um pingo de sangue. Logo que o Lobo Neves entrou na chacara, fiz-lhe um gesto amigo, acompanhado de uma palavra graciosa; Virgilia retirou-se apressadamente da sala, e elle entrou dahi a tres minutos. --Est� c� ha muito tempo? disse-me elle. --N�o. Entr�ra serio, pesado, derramando os olhos de um modo distrahido, costume seu, que trocou logo por uma verdadeira expans�o de jovialidade, quando viu, chegar o filho, o nhonh�, o futuro bacharel do cap. VIII; tomou-o nos bra�os, levantou-o ao ar, beijou-o muitas vezes. Eu, que tinha odio ao menino, afastei-me de ambos. Virgilia tornou � sala. --Ah! respirou o Lobo Neves, sentando-se pregui�osamente no soph�. --Can�ado? perguntei eu. --Muito; aturei duas massadas de primeira ordem, uma na camara e outra na rua. E ainda temos terceira, accrescentou, olhando para a mulher.. --Que �? perguntou Virgilia. --Um... Adivinha! Virgilia sentara-se ao lado delle, pegou-lhe n'uma das m�os, compoz-lhe a gravata, e tornou a perguntar o que era. --Nada menos que um camarote. --Para a Candiani? --Para a Candiani. Virgilia bateu palmas, levantou-se, deu um beijo no filho, com um ar de alegria pueril, que destoava muito da figura; depois perguntou se o camarote era de boca ou do centro, consultou o marido, em voz baixa, acerca da _toilette_ que faria, da opera que se cantava, e de n�o sei que outras cousas. --Voc� janta comnosco, doutor, disse-me o Lobo Neves. --Veiu para isso mesmo, confirmou a mulher; diz que voc� possue o melhor vinho do Rio de Janeiro. --Nem por isso bebe muito. Ao jantar, desmenti-o; bebi mais do que costumava; ainda assim, menos do que era preciso para perder a raz�o. J� estava excitado, fiquei urn pouco mais. Era a primeira grande colera que eu sentia contra Virgilia. N�o olhei uma s� vez para ella durante o jantar; falei de politica, da imprensa, do ministerio, creio que falaria de theologia, se a soubesse, ou se me lembrasse. O Lobo Neves acompanhava-me com muita placidez e dignidade, e at� com certa benevolencia superior; e tudo aquillo me irritava tambem, e me tornava mais amargo e longo o jantar. Despedi-me apenas nos levant�mos da mesa. --At� logo, n�o? perguntou o Lobo Neves. --P�de ser. E sai. CAPITULO LXIV A transac��o Vaguei pelas ruas e recolhi-me �s nove horas. N�o podendo dormir, atirei-me a ler e escrever. �s onze horas estava arrependido de n�o ter ido ao theatro, consultei o relogio, quiz vestir-me, e sa�r. Julguei, por�m, que chegaria tarde; demais, era dar prova de fraqueza. Evidentemente, Virgilia come�ava a aborrecer-se de mim, pensava eu. E esta id�a fez-me successivamente desesperado e frio, disposto a esquecel-a e a matal-a. Via-a d'alli mesmo, reclinada no camarote, com os seus magnificos bra�os n�s,--os bra�os que eram meus, s� meus,--fascinando os olhos de todos, com o vestido soberbo que havia de ter, o collo de leite, os cabellos postos em band�s, � maneira do tempo, e os brilhantes, menos luzidios que os olhos della... Via-a assim, e do�a-me que a vissem outros. Depois, come�ava a despil-a, a p�r de lado as joias e sedas, a despenteal-a com as minhas m�os sofregas e lascivas, a tornal-a,--n�o sei se mais bella, se mais natural,--a tornal-a minha, s�mente minha, unicamente minha. No dia seguinte, n�o me pude ter; fui cedo � casa de Virgilia; achei-a com os olhos vermelhos de chorar. --Que houve? perguntei. --Voc� n�o me ama, foi a sua resposta; nunca me teve a menor somma de amor. Tratou-me hontem como se me tivesse odio. Se eu ao menos soubesse o que � que fiz! Mas n�o sei. N�o me dir� o que foi? --Que foi o que? Creio que n�o houve nada. --Nada? Tratou-me como n�o se trata um cachorro... A esta palavra, peguei-lhe nas m�os, beijei-as, e duas lagrimas rebentaram-lhe dos olhos. --Acabou, acabou, disse eu. N�o tive animo de arguir, e, ali�s, arguil-a de que? N�o era culpa della se o marido a amava. Disse-lhe que n�o me fizera cousa nenhuma, que eu tinha necessariamente ciumes do outro, que nem sempre o podia supportar de cara alegre; accrescentei que talvez houvesse nelle muito de dissimula��o, e que o melhor meio de fechar a porta aos sustos e �s dissens�es era aceitar a minha id�a da vespera. --Pensei nisso, acudiu Virgilia; uma casinha s� nossa, solitaria, mettida n'um jardim, em alguma rua escondida, n�o �? Acho a id�a boa; mas para que fugir? Disse isto com o tom ingenuo e pregui�oso de quem n�o cuida em mal, e o sorriso que lhe derreava os cantos da boca trazia a mesma express�o de candidez. Ent�o, afastando-me, respondi: --Voc� � que nunca me teve amor. --Eu? --Sim, � uma egoista! prefere ver-me padecer todos os dias... � uma egoista sem nome! Virgilia desatou a chorar, e para n�o attrahir gente, mettia o len�o na boca, recalcava os solu�os; explos�o que me desconcertou. Se alguem a ouvisse, perdia-se tudo. Inclinei-me para ella, travei-lhe dos pulsos, susurrei-lhe os nomes mais doces da nossa intimidade; mostrei-lhe o perigo; o terror apaziguou-a. --N�o posso, disse ella dahi a alguns instantes; n�o deixo meu filho; se o levar, estou certa de que elle me ir� buscar ao fim do mundo. N�o posso; mate-me voc�, se o quizer, ou deixe-me morrer... Ah! meu Deus! meu Deus! --Socegue; olhe que podem ouvil-a. --Que ou�am! N�o me importa. Estava ainda excitada; pedi-lhe que esquecesse tudo, que me perdoasse, que eu era um doudo, mas que a minha insania provinha della e com ella acabaria. Virgilia enxugou os olhos e estendeu-me a m�o. Sorrimos ambos; minutos depois, torn�vamos ao assumpto da casinha solitaria, em alguma rua escusa... CAPITULO LXV Olheiros e escutas Interrompeu-nos o rumor de um carro na chacara. Veiu um escravo dizer que era a baroneza X. Virgilia consultou-me com os olhos. --Se a senhora est� assim com dor de cabe�a, disse eu, parece que o melhor � n�o receber. --J� se apeou? perguntou Virgilia ao escravo. --J� se apeou; diz que precisa muito de falar com sinh�! --Que entre! A baroneza entrou dahi a pouco. N�o sei se contava commigo na sala; mas era impossivel mostrar maior alvoro�o. --Bons olhos o vejam! explodiu ella. Onde se mette o senhor que n�o apparece em parte nenhuma? Pois olhe, hontem admirou-me n�o o ver no theatro. A Candiani esteve deliciosa. Que mulher! Gosta da Candiani? � natural. Os senhores s�o todos os mesmos. O bar�o dizia hontem, no camarote, que uma s� italiana vale por cinco brazileiras. Que desaforo! e desaforo de velho, que � peor. Mas porque � que o senhor n�o foi hontem ao theatro? --Uma enxaqueca. --Qual! Algum namoro; n�o acha, Virgilia? Pois, meu amigo, apresse-se, porque o senhor deve estar com quarenta annos... ou perto disso... N�o tem quarenta annos? --N�o lhe posso dizer com certeza, respondi eu; mas se me d� licen�a, vou consultar a certid�o de baptismo. --V�, v�... E estendendo-me a m�o:--At� quando? Sabbado ficamos em casa; o bar�o est� com umas saudades suas... Chegando � rua, arrependi-me de ter sa�do. A baroneza era uma das pessoas que mais desconfiavam de n�s. Cincoenta e cinco annos, que pareciam quarenta, macia, risonha, vestigios de belleza, porte elegante e maneiras finas. N�o falava muito nem sempre; possuia a grande arte de escutar os outros, espiando-os; reclinava-se ent�o na cadeira, desembainhava um olhar afiado e comprido, e deixava-se estar. Os outros, n�o sabendo o que era, falavam, olhavam, gesticulavam, ao tempo que ella olhava s�, ora fixa, ora mobil, levando a astucia ao ponto de olhar �s vezes para dentro de si, porque deixava cair as palpebras; mas, como as pestanas eram rotulas, o olhar continuava o seu officio, remexendo a alma e a vida dos outros. A segunda pessoa era um parente de Virgilia, o Viegas, um cangalho de setenta invernos, chupado e amarellado, que padecia de um rheumatismo teimoso, de uma asthma n�o menos teimosa e de uma les�o do cora��o: era um hospital concentrado. Os olhos por�m luziam de muita vida e sa�de. Virgilia, nas primeiras semanas, n�o lhe tinha medo nenhum; dizia-me que, quando o Viegas parecia espreitar, com o olhar fixo, estava simplesmente contando dinheiro. Com effeito, era um grande avaro. Havia ainda o primo de Virgilia, o Luiz Dutra, que eu, entretanto, desarmava � for�a de lhe falar nos versos e prosas, e de o apresentar aos conhecidos. Quando estes, ligando o nome � pessoa, se mostravam contentes da apresenta��o, n�o ha duvida que o Luiz Dutra exultava de felicidade; mas eu curava-me da felicidade com a esperan�a de que elle nos n�o denunciasse nunca. Havia, emfim, umas duas ou tres senhoras, v�rios gamenhos, e os famulos, que naturalmente se desforravam assim da condi��o servil, e tudo isso constituia uma verdadeira floresta de olheiros e escutas, por entre os quaes tinhamos de resvalar com a tactica e maciez das cobras. CAPITULO LXVI As pernas Ora, emquanto eu pensava naquella gente, iam-me as pernas levando, ruas abaixo, de modo que insensivelmente me achei � porta do hotel Pharoux. De costume jantava ahi; mas, n�o tendo deliberadamente andado, nenhum merecimento da ac��o me cabe, e sim �s pernas, que a fizeram. Aben�oadas pernas! E ha quem vos trate com desdem ou indifferen�a. Eu mesmo, at� ent�o, tinha-vos em m� conta, zangava-me quando vos fatigaveis, quando n�o podieis ir al�m de certo ponto, e me deixaveis com o desejo a avoa�ar, � semelhan�a de gallinha atada pelos p�s. Aquelle caso, por�m, foi um raio de luz. Sim, pernas amigas, v�s deixastes � minha cabe�a o trabalho de pensarem Virgilia, e dissestes uma � outra:--Elle precisa comer, s�o horas de jantar, vamos levai-o ao Pharoux; dividamos a consciencia delle, uma parte fique l� com a dama, tomemos n�s a outra, para que elle v� direito, n�o abalroe as gentes e as carro�as, tire o chapeu aos conhecidos, e finalmente chegue s�o e salvo ao hotel. E cumpristes � risca o vosso proposito, amaveis pernas, o que me obriga a immortalisar-vos nesta pagina. CAPITULO LXVII A casinha Jantei e fui � casa. L� achei uma caixa de charutos, que me mand�ra o Lobo Neves, embrulhada em papel de seda, e ornada de fitinhas c�r de rosa. Entendi, abri-a, e tirei este bilhete: �Meu B... �Desconfiam de n�s; tudo est� perdido; esque�a-me para sempre. N�o nos veremos mais. Adeus; esque�a-se da infeliz �V...a� Foi um golpe esta carta; n�o obstante, apenas fechou a noite, corri � casa de Virgilia. Era tempo; estava arrependida. Ao v�o de uma janella, contou-me o que se pass�ra com a baroneza. A baroneza disse-lhe francamente que se fal�ra muito, no theatro, na noite anterior, a proposito da minha ausencia do camarote de Lobo Neves; tinham commentado as minhas rela��es na casa; em suma, eramos objecto da suspeita publica. Conclui dizendo que n�o sabia o que fazer. --O melhor � fugirmos, insinuei. --Nunca, respondeu ella abanando a cabe�a. Vi que era impossivel separar duas cousas que no espirito della estavam inteiramente ligadas: o nosso amor e a considera��o publica. Virgilia era capaz de eguaes e grandes sacrificios para conservar ambas as vantagens; e a fuga s� lhe deixava uma. Talvez senti alguma cousa semelhante a despeito; mas as como��es daquelles dous dias eram j� muitas, e o despeito morreu depressa. V� l�; arranjemos a casinha. Com effeito, achei-a, dias depois, expressamente feita, em um recanto da Gamboa. Um brinco! Nova, caiada de fresco, com quatro janellas na frente e duas de cada lado,--todas com venezianas c�r de tijolo,--trepadeira nos cantos, jardim na frente; mysterio e solid�o. Um brinco! Convencion�mos que iria morar alli uma mulher, conhecida de Virgilia, em cuja casa fora costureira e aggregada. Virgilia exercia sobre ella verdadeira fascina��o. N�o se lhe diria tudo; ella aceitaria facilmente o resto. Para mim era aquillo uma situa��o nova do nosso amor, uma apparencia do posse exclusiva, de dominio absoluto, alguma cousa que me faria adormecer a consciencia o resguardar o decoro. J� estava can�ado das cortinas do outro, das cadeiras, do tapete, do canap�, de todas essas cousas, que me traziam aos olhos constantemente a nossa duplicidade. Agora podia evitar os jantares frequentes, o ch� de todas as noites, emfim a presen�a do filho delles, meu complice e meu inimigo. A casa resgatava-me tudo; o mundo vulgar terminaria � porta;--dalli para dentro era o infinito, um mundo eterno, superior, excepcional, nosso, somente nosso, sem leis, sem institui��es, sem baronezas, sem olheiros, sem escutas,--um s� mundo, um s� casal, uma s� vida, uma s� vontade, uma s� affei��o,--a unidade moral de todas as cousas pela exclus�o das que me eram contrarias. CAPITULO LXVIII O vergalho Taes eram as reflex�es que eu vinha fazendo, por aquelle Valongo f�ra, logo depois de ver e ajustar a casa. Interrompeu-m'as um ajuntamento; era um preto que vergalhava outro na pra�a. O outro n�o se atrevia a fugir; gemia somente estas unicas palavras: --�N�o, perd�o, meu senhor; meu senhor, perd�o!� Mas o primeiro n�o fazia caso, e, a cada supplica, respondia com uma vergalhada nova. --Toma, diabo! dizia elle; toma mais perd�o, bebado! --Meu senhor! gemia o outro. --Cala a boca, besta! replicava o vergalho. Parei, olhei... Justos ceus! Quem havia de ser o do vergalho? Nada menos que o meu moleque Prudencio,--o que meu pae libert�ra alguns annos antes. Cheguei-me; elle deteve-se logo e pediu-me a ben��o; perguntei-lhe se aquelle preto era escravo delle. --E, sim, nhonh�. --Fez-te alguma cousa? --� um vadio e um bebado muito grande. Ainda hoje deixei elle na quitanda, em quanto eu ia l� embaixo na cidade, e elle deixou a quitanda para ir na venda beber. --Est� bom, perdoa-lhe, disse eu. --Pois n�o, nhonh�. Nhonh� manda, n�o pede. Entra para casa, bebado! Sa� do grupo, que me olhava espantado e cochichava as suas conjecturas. Segui caminho, a cavar c� dentro uma infinidade de reflex�es, que sinto haver inteiramente perdido; ali�s, seria materia para um bom capitulo, e talvez alegre. Eu g�sto dos capitulos alegres; � o meu fraco. Exteriormente, era torvo o episodio do Valongo; mas s� exteriormente. Logo que metti mais dentro a faca do raciocinio achei-lhe um miolo gaiato, fino, e at� profundo. Era um modo que o Prudencio tinha de se desfazer das pancadas recebidas,--transmittindo-as a outro. Eu, em crian�a, montava-o, punha-lhe um freio na boca, e desancava-o sem compaix�o; elle gemia e soffria. Agora, por�m, que era livre, dispunha de si mesmo, dos bra�os, das pernas, podia, trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condi��o, agora � que elle se desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as subtilezas do maroto! CAPITULO LXIX Um gr�o de sandice Este caso faz-me lembrar um doudo que conheci. Chamava-se Romualdo e dizia ser Tamerl�o. Era a sua grande e unica mania, e tinha uma curiosa maneira de a explicar. --Eu sou o illustre Tamerl�o, dizia elle. Outr'ora fui Romualdo, mas adoeci, e tomei tanto tartaro, tanto tartaro, tanto tartaro, que fiquei Tartaro, e at� rei dos Tartaros. O tartaro tem a virtude de fazer Tartaros. Pobre Romualdo! A gente ria da resposta, mas � provavel que o leitor n�o se ria, e com raz�o; eu n�o lhe acho gra�a nenhuma. Ouvida, tinha algum chiste; mas assim contada, no papel, e a proposito de um vergalho recebido e transferido, for�a � confessar que � muito melhor voltar � casinha da Gamboa; deixemos os Romualdos e Prudencios. CAPITULO LXX D. Placida Voltemos � casinha. N�o serias capaz de l� entrar hoje, curioso leitor; envelheceu, ennegreceu, apodreceu, e o proprietario deitou-a abaixo para substituil-a por outra, tres vezes maior, mas juro-te que muito menor que a primeira. O mundo era estreito para Alexandre; um desv�o de telhado � o infinito para as andorinhas. E vejam agora a neutralidade deste globo, que nos leva, atravez dos espa�os, como uma lancha de naufragos, que vae dar � costa: dorme hoje um casal de virtudes no mesmo espa�o de ch�o que soffreu um casal de peccados. Amanh� pode l� dormir um ecclesiastico, depois um assassino, depois um ferreiro, depois um poeta, e todos aben�oar�o esse canto de terra, que lhes deu algumas illus�es. Virgilia fez daquillo um brinco; designou as alfaias mais idoneas, e dispol-as com a intui��o esthetica da mulher elegante; eu levei para l� alguns livros; e tudo ficou sob a guarda de D. Placida, supposta, e, a certos respeitos, verdadeira dona da casa. Custou-lhe muito a aceitar a casa; farej�ra a inten��o, e doia-lhe o officio; mas afinal cedeu. Creio que chorava, a principio: tinha nojo de si mesma. Ao menos, � certo que n�o levantou os olhos para mim durante os primeiros dous mezes; falava-me com elles baixos, s�ria, carrancuda, �s vezes triste. Eu queria angarial-a, e n�o me dava por offendido, tratava-a com carinho e respeito; forcejava por obter-lhe a benevolencia, depois a confian�a. Quando obtive a confian�a, imaginei uma historia pathetica dos meus amores com Virgilia, um caso anterior ao casamento, a resistencia do pae, a dureza do marido, e n�o sei que outros toques de novella. D. Placida n�o rejeitou uma s� pagina da novella; aceitou-as todas. Era uma necessidade da consciencia. Ao cabo de seis mezes quem nos visse a todos tres juntos diria que D. Placida era minha sogra. N�o fui ingrato; fiz-lhe um peculio de cinco contos,--os cinco contos achados em Botafogo,--como um p�o para a velhice. D. Placida agradeceu-me com lagrimas nos olhos; e nunca mais deixou de rezar por mim, todas as noites, deante de uma imagem da Virgem, que tinha no quarto. Foi assim que lhe acabou o nojo. CAPITULO LXXI O sen�o do livro Come�o a arrepender-me deste livro. N�o que elle me cance; eu n�o tenho que fazer; e, realmente, expedir alguns magros capitulos para esse mundo sempre � tarefa que distr�e um pouco da eternidade. Mas o livro � enfadonho, cheira a sepulchro, traz certa contrac��o cadaverica; vicio grave, e ali�s infimo, porque o maior defeito deste livro �s tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narra��o direita e nutrida, o estylo regular e fluente, e este livro e o meu estylo s�o como os ebrios, guinam � direita e � esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, amea�am o ceu, escorregam e c�em... E c�em!--Folhas miserrimas do meu cypreste, heis de cair, como quaesquer outras bellas e vistosas; e, se eu tivesse olhos, dar-vos-hia uma lagrima de saudade. Esta � a grande vantagem da morte, que se n�o deixa boca para rir, tambem n�o deixa olhos para chorar... Heis de cair. Turvo � o ar que respiraes, amadas folhas. O sol que vos allumia, com ser de toda a gente, � um sol opaco e reles, de cemiterio e carnaval. CAPITULO LXXII O bibliomano Talvez supprima o capitulo anterior; entre outros motivos, ha* ahi, nas ultimas linhas, uma phrase muito parecida com desproposito, e eu n�o quero dar pasto � critica do futuro. Olhae: daqui a setenta annos, um sugeito magro, amarello, grisalho, que n�o ama nenhuma outra cousa al�m dos livros, inclina-se sobre a pagina anterior, a ver se lhe descobre o desproposito; l�, rel�, tresl�, desengon�a as palavras, sacca uma syllaba, depois outra, mais outra, e as restantes, examina-as por dentro e por f�ra, por todos os lados, contra a luz, espaneja-as, esfrega-as no joelho, lava-as, e nada. Fica sempre o mesmo desproposito. � um bibliomano. N�o conhece o autor; este nome de Braz Cubas n�o vem nos seus diccionarios biographicos. Achou o volume, por acaso, no pardieiro de um alfarrabista. Comprou-o por duzentos r�is. Indagou, pesquizou, esgaravatou, e veiu a descobrir que era um exemplar, unico... Unico! V�s, que n�o s� amaes os livros, sen�o que padeceis a mania delles, v�s sabeis mui bem o valor desta palavra, e adivinhaes, portanto, as delicias de meu bibliomano. Elle regeitaria a cor�a das Indias, o papado, todos os muzeus da Italia e da Hollanda, se os houvesse de trocar por esse unico exemplar; e n�o porque seja o das minhas _Memorias_; faria a mesma cousa com o _Almanak_ de Laemmert, uma vez que fosse unico. O peor � o desproposito. L� contin�a o homem inclinado sobre a pagina, com uma lente no olho direito, todo entregue � nobre e aspera func��o de decifrar o desproposito. J� prometteu a si mesmo escrever uma breve memoria, na qual relate o achado do livro e a descoberta da sublimidade, se a houver por baixo daquella phrase obscura. Ao cabo, n�o descobre nada e contenta-se com a posse. Fecha o livro, mira-o, remira-o, chega-se � janella e mostra-o ao sol. Um exemplar unico! Nesse momento passa-lhe por baixo da janella um Cesar ou um Cromwell, a caminho do poder. Elle d� de hombros, fecha a janella, estira-se na rede e folhea o livro devagar, com amor, aos goles... Um exemplar unico! CAPITULO LXXIII O lunch O desproposito fez-me perder outro capitulo. Que melhor n�o era dizer as cousas lisamente, sem todos estes solavancos! J� comparei o meu estylo ao andar dos ebrios. Se a id�a vos parece indecorosa, direi que elle � o que eram as minhas refei��es com Virgilia, na casinha da Gamboa, onde �s vezes faziamos a nossa patuscada, o nosso _lunch._ Vinho, fructas, compotas. Comiamos, � verdade, mas era um comer virgulado de palavrinhas doces, de olhares ternos, de criancices, uma infinidade desses apartes do cora��o, ali�s o verdadeiro, o ininterrupto discurso do amor. �s vezes vinha o arrufo temperar o nimio adocicado da situa��o. Ella deixava-me, refugiava-se n'um canto do canap�, ou ia para o interior ouvir as denguices de D. Placida. Cinco ou dez minutos depois, reatavamos a palestra, como eu reato a narra��o, para desatal-a outra vez. Note-se que, longe de termos horror ao methodo, era nosso costume convidal-o, na pessoa de D. Placida, a sentar-se comnosco � meza; mas D. Placida n�o aceitava nunca. --Voc� parece que n�o gosta mais de mim, disse-lhe um dia Virgilia. --Virgem Nossa Senhora! exclamou a boa dama al�ando as m�os para o tecto. N�o gosto de Yay�! Mas ent�o de quem � que eu gostaria neste mundo? E, pegando-lhe nas m�os, olhou-a fixamente, fixamente, fixamente, at� molharem-se-lhe os olhos, de t�o fixo que era. Virgilia acariciou-a muito; eu deixei-lhe uma pratinha na algibeira do vestido. CAPITULO LXXIV Historia de D. Placida N�o te arrependas de ser generoso; a pratinha rendeu-me uma confidencia de D. Placida, e conseguintemente este capitulo. Dias depois, como eu a achasse s� em casa, trav�mos palestra, e ella contou-me em breves termos a sua historia. Era filha natural de um sacrist�o da S� e de uma mulher que fazia doces para f�ra. Perdeu o pae aos dez annos. J� ent�o ralava c�co e fazia n�o sei que outros misteres de doceira, compativeis com a edade. Aos quinze ou dezeseis casou com um alfaiate, que morreu tisico algum tempo depois, deixando-lhe uma filha. Viuva, com pouco mais de vinte annos, ficaram a seu cargo a filha, com dous, e a m�e, can�ada de trabalhar. Tinha de sustentar a tres pessoas. Fazia doces, que era o seu officio, mas cosia tambem, de dia e de noite, com affinco, para tres ou quatro lojas, e ensinava algumas crian�as do bairro, a dez tost�es por mez. Com isto iam-se passando os annos, n�o a belleza, porque n�o a tivera nunca. Appareceram-lhe alguns namoros, propostas, seduc��es, a que resistia. --Se eu pudesse encontrar outro marido, disse-me ella, creia que me teria casado; mas ninguem queria casar commigo. Um dos pretendentes conseguiu fazer-se aceito; n�o sendo, por�m, mais delicado que os outros, D. Placida despediu-o do mesmo modo, e depois de o despedir chorou muito. Continuou a coser para f�ra e a escumar os tachos. A m�e tinha a rabugem do temperamento, dos annos e da necessidade; mortificava a filha para que tomasse um dos maridos de emprestimo e de occasi�o, que lh'a pediam. E bradava: --Queres ser melhor do eu? N�o sei donde te vem essas fiducias de pessoa rica. Minha camarada, a vida n�o se arranja � toa; n�o se come vento. Ora esta! Mo�os t�o bons como o Polycarpo da venda, coitado...Esperas algum fidalgo, n�o �? D. Placida jurou-me que n�o esperava fidalgo nenhum. Era genio. Queria ser casada. Sabia muito bem que a m�e o n�o f�ra, e conhecia algumas que tinham s� o seu mo�o dellas; mas era genio e queria ser casada. N�o queria tambem que a filha fosse outra cousa. E trabalhava muito, queimando os dedos ao fog�o, e os olhos ao candieiro, para comer e n�o cair. Emmagreceu, adoeceu, perdeu a m�e, enterrou-a por subscrip��o, e continuou a trabalhar. A filha estava com quatorze annos; mas era muito fraquinha, e n�o fazia nada, a n�o ser namorar os capadocios que lhe rondavam a rotula. D. Placida vivia com immensos cuidados, levando-a comsigo, quando tinha de ir entregar costuras; e a gente das lojas arregalava e piscava os olhos, convencida de que ella a levava para colher marido ou outra cousa. Alguns diziam gra�olas, faziam comprimentos; a m�e chegou a receber propostas de dinheiro... Interrompeu-se um instante, e continuou logo: --Minha filha fugiu-me; foi com um sujeito, nem quero saber... Deixou-me s�, mas t�o triste, t�o triste, que pensei morrer. N�o tinha ninguem mais no mundo e estava quasi velha e doente. Foi por esse tempo que conheci a familia de Yay�; boa gente, que me deu que fazer, e at� chegou a me dar casa. Estive l� muitos mezes, um anno, mais de um anno, aggregada, costurando. Sa� quando Yay� casou. Depois vivi como Deus foi servido. Olhe os meus dedos, olhe estas m�os... E mostrou-me as m�os grossas e gretadas, as pontas dos dedos picadas da agulha.--N�o se cria isto � toa, meu senhor; Deus sabe como � que isto se cria... Felizmente, Yay� me protegeu, e o senhor doutor tambem... Eu tinha um medo de acabar na rua, pedindo esmola... Ao soltar a ultima phrase, D. Placida teve um calafrio. Depois, como se tornasse a si, pareceu attentar na inconveni�ncia daquella confiss�o ao amante de uma mulher casada, e come�ou a rir, a desdizer-se, a chamar-se tola, �cheia de fiducias�, como lhe dizia a m�e; enfim, can�ada do meu silencio, retirou-se da sala. Eu fiquei a olhar para a ponta do botim. CAPITULO LXXV Commigo Podendo acontecer que algum dos meus leitores tenha pulado o capitulo anterior, observo que � preciso lel-o para entender o que eu disse commigo, logo depois que D. Placida saiu da sala. O que eu disse foi isto: --Assim, pois, o sacrist�o da S�, um dia, ajudando a missa, viu entrar a dama, que devia ser sua collaboradora na vida de D. Placida. Viu-a outros dias, durante semanas inteiras, gostou, disse-lhe alguma gra�a, pisou-lhe o p�, ao acender os altares, nos dias de festa. Ella gostou delle, acercaram-se, amaram-se. Dessa conjunc��o de luxurias vadias brotou D. Placida. � de crer que D. Placida n�o falasse ainda quando nasceu, mas se falasse podia dizer aos autores de seus dias:--Aqui estou. Para que me chamastes? E o sacrist�o e a sacrist� naturalmente lhe respondi riam:--Chamamos-te para queimar os dedos nos tachos, os olhos na costura, comer mal, ou n�o comer, andar de um lado para outro, na faina, adoecendo e sarando, com o fim de tornar a adoecer e sarar outra vez, triste agora, logo desesperada, amanh� resignada, mas sempre com as m�os no tacho e os olhos na costura, at� acabar um dia na lama ou no hospital; foi para isso que te chamamos, n'um momento de sympathia. CAPITULO LXXVI O estrume Subito deu-me a consci�ncia um repell�o; accusou-me de ter feito capitular a probidade de D. Placida, obrigando-a a um papel torpe, depois de uma longa vida de trabalho e priva��es. Medianeira n�o era, melhor que concubina; e eu tinha-a baixado a esse officio, � custa de obsequios e dinheiros. Foi o que me disse a consciencia; e eu fiquei uns dez minutos sem saber que lhe replicasse. Ella accrescentou que eu me aproveit�ra da fascina��o exercida por Virgilia sobre a ex-costureira, da gratid�o desta, emfim da necessidade. Notou a resist�ncia de D. Placida, as lagrimas dos primeiros dias, as caras feias, os silencios, os olhos baixos, e a minha arte em supportar tudo isso, at� vencel-a. E repuxou-me outra vez de um modo irritado e nervoso. Concordei que assim era, mas alleguei que a velhice de D. Placida estava agora ao abrigo da mendicidade; era uma compensa��o. E raciocinei ent�o que, se n�o fossem os meus amores, provavelmente D. Placida acabaria como tantas outras creaturas humanas; donde se poderia deduzir que o vicio � muitas vezes o estrume da virtude. O que n�o impede que a virtude, seja uma flor cheirosa e s�. A consci�ncia concordou, e eu fui abrir a porta a Virgilia. CAPITULO LXXVII Entrevista Virgilia entrou risonha e socegada. Os tempos tinham levado os sustos e vexames. Que doce que era vel-a chegar, nos primeiros dias, envergonhada e tremula! Ia de sege, velado o rosto, envolvida n'uma especie de manteu, que lhe disfar�ava as ondula��es do talhe. Da primeira vez deixou-se cair no canap�, offegante, escarlate, com os olhos no ch�o; e, palavra! em nenhuma outra occasi�o a achei t�o bella, talvez porque nunca me senti mais lisonjeado. Agora, por�m, como eu dizia, tinham acabado os sustos e vexames; as entrevistas entravam no periodo chronometrico. A intensidade de amor era a mesma; a differen�a � que a chamma perdera o tresloucado dos primeiros dias para constituir-se um simples feixe de raios, tranquillo e constante, como nos casamentos. --Estou muito zangada com voc�, disse ella sentando-se. --Porque? --Porque n�o foi l� hontem, como me tinha dito. O Dami�o perguntou muitas vezes se voc� n�o iria, ao menos, tomar ch�. Porque � que n�o foi? Com effeito, eu havia faltado � palavra que dera, e a culpa era toda de Virgilia, Quest�o de ci�mes. Essa mulher esplendida sabia que o era, e gostava de o ouvir dizer, fosse em voz alta ou baixa. Na antevespera, em casa da baroneza, valsara duas vezes com o mesmo peralta, depois de lhe escutar as cortezanices, ao canto de uma janella. Estava t�o alegre! t�o derramada! t�o cheia de si! Quando descobriu, entre as minhas sobrancelhas, a ruga interrogativa e amea�adora, n�o teve nenhum sobresalto, nem ficou subitamente s�ria; mas deitou ao mar o peralta e as cortezanices. Veiu depois a mim, tomou-me o bra�o, e levou-me at� outra sala, menos povoada, onde se me queixou de can�a�o, e disse muitas outras cousas, com o ar pueril que costumava ter, em certas occasi�es, e eu ouvi-a quasi sem responder nada. Agora mesmo, custava-me responder alguma cousa, mas emfim contei-lhe o motivo da minha ausencia... N�o, eternas estrellas, nunca vi olhos mais pasmados. A boca semi-aberta, as sobrancelhas arqueadas, uma estupefac��o visivel, tangivel, que sen�o podia negar, tal foi a primeira replica de Virgilia; abanou a cabe�a com um sorriso de piedade e ternura, que inteiramente me confundiu. --Ora voc�! E foi tirar o chap�o, lepida, jovial, como a menina que torna do collegio; depois veiu a mim, que estava sentado, deu-me pancadinhas na testa, com um s� dedo, a repetir;--Isto, isto;--e eu n�o tive remedio sen�o rir tambem, e tudo acabou em galhofa. Era claro que me engan�ra. CAPITULO LXXVIII A presidencia Certo dia, mezes depois, entrou o Lobo Neves em casa, dizendo que iria talvez occupar uma presidencia de provincia. Olhei para Virgilia, que empallideceu; elle, que a viu empallidecer, perguntou-lhe: --A modo que n�o gostaste, Virgilia? Virgilia abanou a cabe�a. --N�o me agrada muito, foi a sua resposta. N�o se disse mais nada; mas de noite o Lobo Neves insistiu no projecto, um pouco mais resolutamente do que de tarde; e dous dias depois declarou � mulher que a presidencia era cousa definitiva. Virgilia n�o p�de dissimular a repugnancia que isto lhe causava. O marido respondia a tudo com as necessidades politicas. E accrescentava: --N�o posso recusar o que me pedem; � at� conveniencia nossa, do nosso futuro, dos teus braz�es, meu amor, porque eu prometti que serias marqueza, e nem baroneza est�s. Dir�s que sou ambicioso? Sou-o dev�ras, mas � preciso que me n�o ponhas um peso nas azas da ambi��o. Virgilia ficou desorientada. No dia seguinte achei-a triste, na casa da Gamboa, � minha espera; tinha dito tudo a D. Placida, que buscava consolal-a, como podia. N�o fiquei menos abatido. --Voc� hade ir comnosco, disse-me Virgilia. --Est� douda? Seria uma insensatez. --Mas ent�o...? --Ent�o, � preciso desfazer o projecto. --� imposs�vel. --J� aceitou? --Parece que sim. Levantei-me, atirei o chapeu a uma cadeira, e entrei a passeiar de um lado para outro, sem saber o que faria. Cogitei largamente, e n�o achei nada. Emfim, cheguei-me a Virgilia, que estava sentada, e travei-lhe da m�o; D. Placida foi � janella. --Nesta pequenina m�o est� toda a minha existencia, disse eu; voce � responsavel por ella; fa�a o que lhe parecer. Virgilia teve um gesto afflictivo; eu fui encostar-me ao consolo fronteiro. Decorreram alguns instantes do silencio; ouviamos s�mente o latir de um c�o, e n�o sei se o rumor da agua, que morria na praia. Vendo que n�o falava, olhei para ella. Virgilia tinha os olhos no ch�o, parados, sem luz, as m�os deixadas sobre os joelhos, com os dedos cruzados, na attitude da suprema desesperan�a. N'outra occasi�o, por differente motivo, � certo que eu me lan�aria aos p�s della, e a ampararia com a minha raz�o e a minha ternura; agora, por�m, era preciso compellil-a ao esfor�o de si mesma, ao sacrificio, � responsabilidade da nossa vida commun, e conseguintemente desamparal-a, deixal-a, e sa�r; foi o que fiz. --Repito, a minha felicidade est� nas tuas m�os, disse eu. Virgilia quiz agarrar-me, mas eu j� estava f�ra da porta. Cheguei a ouvir um proromper de lagrimas, e digo-lhes que estive a ponto de voltar, para as enxugar com um beijo; mas subjuguei-me e sai. CAPITULO LXXIX Compromisso de gato N�o acabaria se houvesse de contar pelo miudo o que padeci nas primeiras horas. Vacillava entre um querer e um n�o querer, entre a piedade que me empuxava � casa de Virgilia e outro sentimento,--egoismo, supponhamos,--que me dizia:--Fica; deixa-a a s�s com o problema, deixa-a que ella o resolver� no sentido do amor. Creio que essas duas for�as tinham egual intensidade, investiam e resistiam ao mesmo tempo, com ardor, com tenacidade, e nenhuma cedia definitivamente. �s rezes sentia um dentesinho de remorso; parecia-me que abusava da fraqueza de uma mulher amante e culpada, sem nada sacrificar nem arriscar de mim proprio; e, quando ia a capitular, vinha outra vez o amor, e me repetia o conselho egoista, e eu ficava irresoluto e inquieto, desejoso do a ver, e receioso de que a vista me levasse a compartir a responsabilidade da solu��o. Por fim interveiu um compromisso entre o egoismo e a piedade; eu iria vel-a em casa, e s� em casa, em presen�a do marido, para lhe n�o dizer nada, � espera do effeito da minha intima��o. Deste modo, poderia conciliar as duas for�as. Agora, que isto escrevo, quer-me parecer que o compromisso era uma burla, que essa piedade era ainda um f�rma de egoismo, e que a resolu��o de ir consolar Virgilia n�o passava de uma suggest�o de meu proprio padecimento. Occorre-me a este proposito um naturalista,--n�o me lembra qual,--mas era um naturalista,--em quem li esta observa��o curiosa: �O gato n�o nos affaga, affaga-se em n�s.� Vejo que eu fazia um compromisso de gato. CAPITULO LXXX Do secretario Na noite seguinte fui effectivamente � casa do Lobo Neves; estavam ambos, Virgilia muito triste, elle muito jovial. Juro que ella sentiu certo allivio, quando os nossos olhos se encontraram, cheios de curiosidade e ternura; e n�o direi o que senti, porque isso j� ficou expresso no capitulo anterior, _in fine._ O Lobo Neves contou-me os planos que levava para a presidencia, as difficuldades locaes, as esperan�as, as resolu��es; estava t�o contente! t�o esperan�ado! Virgilia, ao p� da meza, fingia ler um livro, mas por cima da pagina olhava-me de quando em quando, interrogativa e ansiosa. --O peor, disse-me de repente o Lobo Neves, � que ainda n�o achei secretario. --N�o? --N�o, e tenho uma id�ia. --Ah! --Uma id�a... Quer voc� dar um passeio ao norte? N�o sei o que lhe disse. --Voc� � rico, continuou elle, n�o precisa de um magro ordenado; mas se quizesse obsequiar-me, ia de secretario commigo. Meu espirito deu um salto para traz, como se descobrisse uma serpente deante de si. Encarei o Lobo Neves, fixamente, imperiosamente, a ver se lhe apanhava algum pensamento occulto... Nem sombra disso; o olhar vinha direito e franco, a placidez do rosto era natural, n�o violenta, uma placidez salpicada de alegria. Respirei, e n�o tive animo de olhar para Virgilia; senti por cima da pagina o olhar della, que me pedia tambem a mesma cousa, e disse que sim, que iria. Na verdade, um presidente, uma presidenta, um secretario, era resolver as cousas de um modo administrativo. CAPITULO LXXXI A reconcilia��o E comtudo, ao sair de l�, tive umas sombras de duvida; cogitei se n�o ia expor insanamente a reputa��o de Virgilia, se n�o haveria outro meio razoavel de combinar o Estado e a Gamboa. N�o achei nada. No dia seguinte, ao levantar-mo da cama, trazia o espirito feito e resoluto a aceitar a nomea��o. Ao meio dia, veiu o creado dizer-me que estava na sala uma senhora, coberta com um v�o. Corro; era minha irm� Sabina. --Isto n�o pode continuar assim, disse ella; � preciso que, de uma vez por todas, fa�amos as pazes. Nossa familia est� acabando; n�o havemos de ficar como dous inimigos. --Mas se eu n�o te pe�o outra cousa, mana! bradei eu estendendo-lhe os bra�os. E sentei-a ao p� de mim, e falei-lhe do marido, da filha, dos negocios, de tudo. Tudo ia bem; a filha estava linda como os amores. O marido viria mostrar-m'a, se eu consentissse. --Ora essa! irei eu mesmo vel-a. --Sim? --Palavra. --Tanto melhor! respirou Sabina. � tempo de acabar com isto. Achei-a mais gorda, e talvez mais mo�a. Parecia ter vinte annos, e contava mais de trinta. Graciosa, affavel, nenhum acanhamento, nenhum resentimento. Olhavamos um para o outro, com as m�os seguras, falando de tudo e de nada, como dous namorados. Era a minha infancia que resurgia, fresca, travessa e loura; os annos iam caindo, como as fileiras de cartas de jogar encurvadas, com que eu brincava em pequeno, e deixavam-me ver a nossa casa, a nossa familia, as nossas festas. Supportei a recorda��o com algum esfor�o; mas um barbeiro da visinhan�a lembrou-se de zangarrear na classica rabeca, e essa voz,--porque at� ent�o a recorda��o era muda,--essa voz do passado, fanhosa e saudosa, a tal ponto me commoveu, que... Os olhos della estavam seccos. Sabina n�o herd�ra a flor amarella e m�rbida. Que importa? Era minha irm�, meu sangue, um peda�o de minha m�e, e eu disse-lh'o com ternura, com sinceridade... Subito, ou�o bater � porta da sala; vou abrir; era um anjinho de cinco annos. --Entra, S�ra, disse Sabina. Era minha sobrinha. Apanhei-a do ch�o, beijei-a muitas vezes; a pequena, espantada, empurrava-me o hombro com a m�osinha, quebrando o corpo para descer... Nisto, apparece-me � porta um chap�u, e logo um homem, o Cotrim, nada menos que o Cotrim. Eu estava t�o commovido, que deixei a filha e lancei-me aos bra�os do pae. Talvez essa effus�o o desconcertou um pouco; � certo que me pareceu acanhado. Simples prologo. Dahi a pouco falavamos como bons amigos velhos. Nenhuma allus�o ao passado, muitos planos de futuro, promessa de jantarmos em casa um do outro; e n�o deixei de dizer que essa troca de jantares podia ser que tivesse uma curta interrup��o, por que eu andava com id�as de uma viagem ao norte. Sabina olhou para o Cotrim, o Cotrim para Sabina; ambos concordaram que essas id�as n�o tinham senso commum. Que diacho podia eu achar no norte? Pois n�o era na c�rte, em plena c�rte, que devia continuar a luzir, a metter n'um chinello os rapazes do tempo? Que, na verdade, nenhum havia que se me comparasse; elle, Cotrim, acompanhava-me de longe, e, n�o obstante uma briga ridicula, teve sempre interesse, orgulho, vaidade nos meus triumphos. Ouvia o que se dizia a meu respeito, nas ruas e nas salas; era um concerto de louvores e admira��es. E deixa-se isso para ir passar alguns mezes na provincia, sem necessidade, sem motivo serio? A menos que n�o fosse politica... --Justamente pol�tica, disse eu. --Nem assim, replicou elle dahi a um instante--E depois de outro silencio:--Seja como for, venha jantar hoje comnosco. --Certamente que vou; mas, amanh� ou depois, h�o de vir jantar commigo. --N�o sei, n�o sei, objectou Sabina; casa de homem solteiro... Voc� precisa casar, mano. Tambem eu quero uma sobrinha, ouviu? O Cotrim reprimiu-a com um gesto, que n�o entendi bem. N�o importa; a reconcilia��o de uma familia vale bem um gesto enigmatico. CAPITULO LXXXII Quest�o de botanica Digam o que quizerem dizer os hypocondriacos: a vida � uma cousa doce. Foi o que eu pensei commigo, ao ver Sabina, o marido e a filha descerem de tropel as escadas, dizendo muitas palavras affectuosas para cima, onde eu ficava--no patamar,--a dizer-lhes outras tantas para baixo. E continuei a pensar que, na verdade, era feliz. Amava-me uma mulher, tinha a confian�a do marido, ia por secretario de ambos, e reconciliava-me com os meus. Que podia desejar mais, em vinte e quatro horas? Nesse mesmo dia, tratando de apparelhar os animos, comecei a espalhar que talvez fosse para o norte, como secretario de provincia, afim de realizar certos designios politicos, que me eram pessoaes. Disse-o na rua do Ouvidor, repeti-o no dia seguinte, no Pharoux e no theatro. Alguns, ligando a minha nomea��o � do Lobo Neves, que j� andava em boatos, sorriam maliciosamente, outros batiam-me no hombro. No theatro disse-me uma senhora que era levar muito longe o amor da esculptura. Referia-se �s bellas f�rmas de Virgilia. Mas a allus�o mais rasgada que me fizeram foi em casa de Sabina, tres dias depois. Fel-a um certo Garcez, velho cirurgi�o, pequenino, trivial e grulha, que podia chegar aos setenta, aos oitenta, aos noventa annos, sem adquirir jamais aquella compostura austera, que � a gentileza do anci�o. A velhice ridicula �, porventura, a mais triste e derradeira sorpresa da natureza humana. --J� sei, desta vez vae ler Cicero, disse-me elle, ao saber da viagem. --Cicero! exclamou Sabina. --Pois ent�o? Seu mano � um grande latinista. Traduz Virgilio de relance. Olhe que � Virgilio, e n�o Virgilia... n�o confunda... E ria, de um riso grosso, rasteiro e frivolo. Sabina empallideceu e olhou para mim, receiosa de alguma replica; mas sorriu, quando me viu sorrir, e voltou o rosto para disfar�al-o. As outras pessoas olhavam-me com um ar de curiosidade, indulgencia e sympathia; era transparente que n�o acabavam de ouvir nenhuma novidade. O caso dos meus amores andava mais publico do que eu podia suppor. E entretanto sorri, um sorriso curto, fugitivo e guloso,--palreiro como as pegas de Cintra. Virgilia era um bello erro, e � t�o facil confessar um bello erro! Costumava ficar carrancudo, a principio, quando ouvia alguma allus�o aos nossos amores; mas, palavra de honra! sentia c� dentro uma impress�o suave e linsongeira. Uma vez, por�m, aconteceu-me sorrir, e continuei a fazel-o das outras vezes. N�o sei se ha ahi algum Hobbes ou Spinoza, que explique o phenomeno. Eu explico-o assim: a principio, o contentamento, sendo interior, era por assim dizer o mesmo sorriso, mas abotoado; andando o tempo, desabotou-se em flor, e appareceu aos olhos do proximo. Simples quest�o de botanica. CAPITULO LXXXIII 13 O Cotrim tirou-me daquelle gozo, levando-me � janella.--Voc� quer que lhe diga uma cousa? perguntou elle;--n�o fa�a essa viagem; � insensata, � perigosa. --Porque? --Voc� bem sabe porque, tornou elle: �, sobretudo, perigosa, muito perigosa. Aqui na c�rte, um caso desses perde-se na multid�o da gente e dos interesses; mas na provincia muda de figura; e tratando-se de personagens politicos, � realmente insensatez. As gazetas de opposi��o, logo que farejarem o negocio, passam a imprimil-o com todas as lettras, e ahi vir�o as chufas, os remoques, as alcunhas... --Mas n�o entendo... --Entende, entende; e, na verdade, seria bem pouco amigo nosso, se me negasse o que toda a gente sabe. Eu sei disso ha longos mezes. Repito, n�o fa�a semelhante viagem; supporte a ausencia, que � melhor, e evite algum grande escandalo e maior desgosto... Disse isto, e foi para dentro. Eu deixei-me estar com os olhos no lampi�o da esquina,--um antigo lampi�o de azeite,--triste, obscuro e recurvado, como um ponto de interroga��o. Que me cumpria fazer? Era o caso de Hamlet: ou dobrar-me � fortuna, ou lutar com ella e subjugal-a. Por outros termos: embarcar ou n�o embarcar. Esta era a quest�o. O lampi�o n�o me dizia nada. As palavras do Cotrim resoavam-me aos ouvidos da memoria, de um modo bem diverso do das palavras do Garcez. Talvez o Cotrim tivesse raz�o: mas podia eu separar-me de Virgilia? Sabina veiu ter commigo, e perguntou-me em que estava pensando. Respondi que em cousa nenhuma, que tinha somno e ia para casa. Sabina esteve um instante calada.--O que voc� precisa, sei eu; � uma noiva. Deixe, que eu ainda arranjo uma noiva para voc�. Sa� de l� oppresso, desorientado. Tudo prompto para embarcar,--espirito e cora��o,--e eis ahi me surge esse porteiro das conveniencias, que me pede o cart�o de ingresso. Dei ao diabo as conveni�ncias, e com ellas a constitui��o, o corpo legislativo, o ministerio, tudo. No dia seguinte, abro uma folha politica e leio a noticia de que, por decretos de 13, t�nhamos sido nomeados presidente e secretario da provincia de *** o Lobo Neves e eu. Escrevi immediatamente a Virgilia, e segui duas horas depois para a Gamboa. Coitada de D. Placida! Estava cada vez mais afflicta; perguntou-me se esqueceriamos a nossa velha, se a ausencia era grande e se a provincia ficava longe. Consolei-a; mas eu proprio precisava de consola��es; a objec��o do Cotrim affligia-me profundamente. Virgilia chegou dahi a pouco, lepida como uma andorinha; mas, ao ver-me triste, ficou muito seria. --Que aconteceu? --Vacillo, disse eu; n�o sei se devo aceitar... Virgilia deixou-se cair, no canap�, a rir.--Porque? disse ella. --N�o � conveniente, d� muito na vista... --Mas n�s j� n�o vamos. --Como assim? Contou-me que o marido ia recusar a nomea��o, e por motivo que s� disse a ella, pedindo-lhe o maior segredo; n�o podia confessal-o a ninguem mais.--� pueril, observou elle, � ridiculo; mas em summa, � um motivo poderoso para mim. E referiu-lhe que o decreto trazia a data de 13, e que esse numero significava para elle uma recorda��o funebre. O pae morreu n'um dia 13, treze dias depois de um jantar, em que havia treze pessoas. A casa em que morrera a m�e tinha o n. 13. Et c�tera. Era um algarismo fatidico. N�o podia allegar semelhante cousa ao ministro; dir-lhe-hia que tinha raz�es particulares para n�o aceitar. Eu fiquei como ha de estar o leitor,--um pouco assombrado com esse sacrif�cio a um numero; mas, sendo elle ambicioso, o sacrificio devia ser sincero... E ficavamos. Para alguma cousa ha de servir a supersti��o dos homens. CAPITULO LXXXIV O conflicto Numero fatidico, lembras-te que te aben�oei muitas vezes? Assim tambem as virgens ruivas de Thebas deviam aben�oar a egua, de ruiva crina, que as substituiu no sacrificio de Pelopidas,--uma donosa egua, que l� morreu, coberta de flores, sem que ninguem lhe d�sse nunca uma palavra de saudade. Pois dou-t'a eu, egua piedosa, n�o s� pela morte havida, como porque, entre as donzellas escapas, n�o � impossivel que figurasse uma av� dos Cubas... Numero fatidico, tu foste a nossa salva��o. N�o me confessou o marido a causa da recusa; disse-me tambem que eram negocios particulares, e o rosto serio, convencido, com que eu o escutei, fez honra � dissimula��o humana. Elle � que mal podia encobrir a tristeza profunda que o minava; falava pouco, absorvia-se, mettia-se em casa, a ler. Outras vezes recebia, e ent�o conversava e ria muito, com estrepito e affecta��o. Opprimiam-n'o duas cousas,--a ambi��o, que um escrupulo desaz�ra, e logo depois a duvida, e talvez o arrependimento,--mas um arrependimento, que viria outra vez, si se repetisse a hypothese, porque o fundo supersticioso existia. Duvidava da supersti��o, sem chegar a rejeital-a. Essa persistencia de um sentimento, que repugna ao mesmo individuo, era um phenomeno digno de alguma atten��o. Mas eu preferia a pura ingenuidade de D. Placida, quando confessava n�o poder ver um sapato voltado para o ar. --Que tem isso? perguntava-lhe eu. --Faz mal, era a sua resposta. Isto somente, esta unica resposta, que valia para ella o livro dos sete sellos. Faz mal. Disseram-lhe isso em crian�a, sem outra explica��o; e ella contentava-se com a certeza do mal. J� n�o acontecia a mesma cousa quando se falava de apontar uma estrella com o dedo; ahi sabia perfeitamente que era caso de crear uma verruga. Ou verruga ou outra cousa, que valia isso, para quem n�o perde uma presidencia de provincia? Tolera-se uma supersti��o gratuita ou barata; � insupportavel a que leva uma parte da vida. Este era o caso do Lobo Neves; com o accrescimo da duvida e do terror de haver sido ridiculo. E mais este outro accrescimo, que o ministro n�o acreditou nos motivos particulares; attribuiu a recusa do Lobo Neves a manejos politicos, illus�o complicada de algumas apparencias; tratou-o mal, communicou a desconfian�a aos collegas; sobrevieram incidentes; emfim, com o tempo, o presidente resignatario foi para a opposi��o. CAPITULO LXXXV O cimo da montanha Quem escapa a um perigo ama a vida com outra intensidade; eu entrei a amar Virgilia com muito mais ardor, depois que estive a pique de a perder, e a mesma cousa lhe aconteceu a ella. Assim, a presidencia n�o fez mais do que avivar a affei��o primitiva; foi a droga de Malabar, com que torn�mos mais saboroso o nosso amor, e mais prezado tambem. Nos primeiros dias, depois daquelle incidente, folgavamos de imaginar a d�r da separa��o, se houvesse separa��o, a tristeza de um e de outro, � propor��o que o mar, como uma toalha elastica, se fosse dilatando entre n�s; e, semelhantes �s crian�as, que se achegam ao rega�o das m�es, para fugir a uma simples careta, fugiamos do supposto perigo, apertando-nos com abra�os. --Minha boa Virgilia! --Meu amor! --Tu �s minha, n�o? --Tua, tua... E assim reat�mos o fio da aventura, como a sultana Scheherazade o dos seus contos. Esse foi, cuido eu, o ponto maximo do nosso amor, o cimo da montanha, donde por algum tempo divis�mos os valles de leste e de oeste, e por cima de n�s o ceu tranquillo e azul. Repousado esse tempo, come��mos a descer a encosta, com as m�os presas ou soltas, mas a descer, a descer... CAPITULO LXXXVI O mysterio Serra abaixo, como eu a visse um pouco differente, n�o sei se abatida ou outra cousa, perguntei-lhe o que tinha; calou-se, fez um gesto de enfado, de m�u estar, de fadiga; ateimei, ella disse-me que... Um fluido subtil percorreu todo o meu corpo: sensa��o forte; rapida, singular, que eu n�o chegarei jamais a fixar no papel. Travei-lhe das m�os, puxei-a levemente a mim, e beijei-a na testa, com uma delicadeza de zephyro e uma gravidade de Abrah�o. Ella estremeceu, colheu-me a cabe�a entre as palmas, fitou-me os olhos, depois affagou-me com um gesto maternal...Eis ahi um mysterio; deixemos ao leitor o tempo de decifrar este mysterio. CAPITULO LXXXVII Geologia Succedeu por esse tempo um desastre: a morte do Viegas. O Viegas passou ahi de relance, n'um capitulo, com os seus setenta annos, abafados de asthma, desconjuntados de rheumatismo, e uma les�o de cora��o por quebra. Foi um dos finos espreitadores da nossa aventura. Virgilia nutria grandes esperan�as em que esse velho parente, avaro como um sepulchro, lhe amparasse o futuro do filho, com algum legado; e, se o marido tinha eguaes pensamentos, encobria-os ou estrangulava-os. Tudo se deve dizer: havia no Lobo Neves certa dignidade fundamental, uma camada de rocha, que resistia ao commercio dos homens. As outras, as camadas de cima, terra solta e ar�a, levou-lh'as a vida, que � um enxurro perpetuo. Se o leitor ainda se lembra do cap. XXXIII, observar� que � agora a segunda vez que eu comparo a vida a um enxurro; mas tambem ha de reparar que desta vez accrescento-lhe um adjectivo--perpetuo. E Deus sabe a for�a de um adjectivo, principalmente em paizes novos e c�lidos. O que � novo neste livro � a geologia moral do Lobo Neves, e provavelmente a do cavalheiro, que me est� lendo. Sim, essas camadas de caracter, que a vida altera, conserva ou dissolve, conforme a resistencia dellas, essas camadas mereceriam um capitulo, que eu n�o escrevo, por n�o alongar a narra��o. Digo apenas que o homem mais probo que conheci em minha vida foi um certo Jacob Medeiros ou Jacob Valladares, n�o me recorda bem o nome. Talvez fosse Jacob Rodrigues; em summa, Jacob. Era a probidade mesma; podia ser rico, violentando um pequenino escapulo, e n�o quiz; deixou ir pelas m�os f�ra nada menos de uns quatrocentos contos; tinha a probidade t�o exemplar, que chegava a ser miuda e can�ativa. Um dia, como nos achassemos, a s�s, em casa delle, em boa palestra, vieram dizer que o procurava o Dr. B., um sujeito enfadonho. O Jacob mandou dizer que n�o estava em casa. --N�o p�ga, bradou uma voz do corredor; c� estou de dentro. E, com effeito, era o Dr. B., que appareceu logo � porta da sala. O Jacob foi recebel-o, affirmando que cuidava ser outra pessoa, e n�o elle, e accrescentando que tinha muito prazer com a visita, o que nos rendeu hora e meia de enfado mortal, e isto mesmo, porque o Jacob tirou o relogio; o Dr. B. pergutou-lhe ent�o se ia sair. --Com minha mulher, disse o Jacob. Retirou-se o Dr. B. e respiramos. Uma vez respirados, disse eu ao Jacob que elle acabava de mentir quatro vezes, em menos de duas horas: a primeira, negando-se; a segunda, alegrando-se com a presen�a do importuno; a terceira, dizendo que ia sair; a quarta, accrescentando que com a mulher. O Jacob reflectiu um instante, depois confessou a justeza da minha observa��o, mas desculpou-se dizendo que a veracidade absoluta era incompativel com um estado social adiantado, e que a paz das cidades s� se podia obter � custa de emba�adellas reciprocas... Ah! lembra-me agora: chamava-se Jacob Tavares. CAPITULO LXXXVIII O enfermo N�o � preciso dizer que refutei t�o perniciosa doutrina, com os mais elementares argumentos; mas elle estava t�o vexado do meu reparo, que resistiu at� o fim, mostrando certo calor ficticio, talvez para atordoar a consciencia. O caso de Virgilia tinha alguma gravidade mais. Ella era menos escrupulosa que o marido; manifestava claramente as esperan�as que trazia no legado, cumulava o parente de todas as cortezias, atten��es e affagos que poderiam render, pelo menos, um codicillo. Propriamente, adulava-o; mas eu observei que a adula��o das mulheres n�o � a mesma cousa que a dos homens. Esta or�a pela servilidade; a outra confunde-se com a affei��o. As formas graciosamente curvas, a palavra doce, a mesma fraqueza physica d�o � ac��o lisonjeira da mulher uma c�r local, um aspecto legitimo. N�o importa a edade do adulado; a mulher ha de ter sempre para elle uns ares de m�e ou de irm�,--ou ainda de enfermeira, outro officio feminil, em que o mais habil dos homens carecer� sempre de um _quid_, um fluido, alguma cousa. Era o que eu pensava commigo, quando Virgilia se desfazia toda em affagos ao velho parente. Ella ia recebel-o � porta, falando e rindo, tirava-lhe o chapeu e a bengala, dava-lhe o bra�o e levava-o at� uma cadeira, ou at� � cadeira, porque havia l� em casa a �cadeira do Viegas�, obra especial, conchegada, feita para gente enferma ou anci�. Ia fechar a janella proxima, se havia alguma brisa, ou abril-a, se estava calor, mas com cuidado, combinando de modo que lhe n�o d�sse um golpe de ar. --Ent�o? hoje est� mais fortesinho... --Qual! Passei mal a noite; o diabo da asthma n�o me deixa. E bufava o homem, repousando a pouco e pouco do can�a�o da entrada e da subida, n�o do caminho, porque ia sempre de sege. Ao lado, um pouco mais para a frente, sentava-se Virgilia, n'uma banquinha, com as m�os nos joelhos do enfermo. Entretanto, o nhonh� chegava � sala, sem os pulos do costume, mas discreto, meigo, serio. O Viegas gostava muito delle. --Vem c�, nhonh�, dizia-lhe; e a custo introduzia a m�o na ampla algibeira, tirava uma caixinha de pastilhas, mettia uma na boca o dava outra ao pequeno. Pastilhas anti-asthmaticas. O pequeno dizia que eram muito boas. Repetia-se isto, com variantes. Como o Viegas gostasse de jogar damas, Virgilia cumpria-lhe o desejo, aturando-o por largo tempo, a mover as pedras com a m�o frouxa e tarda. Outras vezes, desciam a passear na chacara, dando-lhe ella o bra�o, que elle nem sempre aceitava, por dizer-se rijo e capaz de andar uma legua. Iam, sentavam-se, tornavam a ir, a falar de cousas varias, ora de um negocio de familia, ora de uma bisbilhotice de alcova, ora emfim de uma casa que elle meditava construir, para residencia propria, casa de feitio moderno, porque a delle era das antigas, contempor�nea de el-rei D. Jo�o VI, � maneira de algumas que ainda hoje (creio eu) se podem ver no bairro de S. Christov�o, com as suas grossas columnas na frente. Parecia-lhe que o casar�o em que morava podia ser substituido, e j� tinha encommendado o risco a um pedreiro de fama. Ah! ent�o sim, ent�o � que Virgilia chegaria a ver o que era um velho de gosto. Falava, como se p�de supp�r, lentamente e a custo, intervallado de uma arfagem incommoda para elle e para os outros. De quando em quando, vinha um accesso de tosse; curvo, gemendo, levava o len�o � boca, e investigava-o; passado o accesso, tornava ao plano da casa, que devia ter taes e taes quartos, um terra�o, cocheira, um primor. CAPITULO LXXXIX In extremis --Amanh� vou passar o dia em casa do Viegas, disse-me ella uma vez. Coitado! n�o tem ninguem... O Viegas ca�ra na cama, definitivamente; a filha, casada, adoecera justamente agora, e n�o podia fazer-lhe companhia. Virgilia ia l� de quando em quando. Eu aproveitei a circumstancia para passar todo aquelle dia ao p� della. Eram duas horas da tarde quando cheguei. O Viegas tossia com tal for�a que me fazia arder o peito; no intervallo dos accessos debatia o pre�o de uma casa, com um sujeito magro. O sujeito offerecia trinta contos, o Viegas exigia quarenta. O comprador instava como quem receia perder o trem da estrada de ferro, mas o Viegas n�o cedia; recusou primeiramente os trinta contos, depois mais dous, depois mais tres, emfim teve um forte accesso, que lhe tolheu a fala durante quinze minutos. O comprador acarinhou-o muito, arranjou-lhe os travesseiros, offereceu-lhe trinta e seis contos. --Nunca! gemeu o enfermo. E mandou buscar um ma�o de papeis � escrivaninha; n�o tendo for�as para tirar a fita de borracha que prendia os papeis, pediu-me que os desla�asse: fil-o. Eram as contas das despezas com a construc��o da casa: contas de pedreiro, de carpinteiro, de pintor; contas do papel da sala de visitas, da sala de jantar, das alcovas, dos gabinetes; contas das ferragens; custo do terreno. Elle abria-as, uma por uma, com a m�o tremula, e pedia-me que as lesse, e eu lia-as. --Veja; mil e duzentos, papel de mil e duzentos a pe�a. Dobradi�as francezas... Veja, � de gra�a, concluiu elle depois de lida a ultima conta. --Pois bem... mas... --Quarenta contos; n�o lhe dou por menos. S� os juros... fa�a a conta dos juros... Vinham tossidas estas palavras, �s golfadas, �s syllabas, como se fossem migalhas de um pulm�o desfeito. Nas orbitas fundas rolavam os olhos lampejantes, que me faziam lembrar a lamparina da madrugada. Sob o len�ol desenhava-se a estructura ossea do corpo, pontudo em dous lugares, nos joelhos e nos p�s; a pelle amarellada, bamba, rugosa, revestia apenas a caveira de um rosto sem express�o; uma carapu�a de algod�o branco cobria-lhe o craneo rapado pelo tempo. --Ent�o? disse o sujeito magro. Fiz-lhe signal para que n�o insistisse, e elle calou-se por alguns instantes. O doente ficou a olhar para o tecto, calado, a arfar muito; Virgilia empallideceu, levantou-se, foi at� � janella. Suspeitara a morte e tinha medo. Eu procurei falar de outras cousas. O sujeito magro contou uma anecdota, e tornou a tratar da casa, alteando a proposta. --Trinta e oito contos, disse elle. --Am?... gemeu o enfermo. O sujeito magro aproximou-se da cama, pegou-lhe na m�o, e sentiu-a fria. Eu acheguei-me ao doente, perguntei-lhe se sentia alguma cousa, se queria tomar um calice de vinho. --N�o... n�o... quar... quaren... quar... quar... Teve um accesso de tosse, e foi o ultimo; dahi a pouco expirava elle, com grande consterna��o do sujeito magro, que me confessou depois a disposi��o em que estava de offerecer os quarenta contos; mas era tarde. CAPITULO XC O velho colloquio de Ad�o e Caim E nada. Nenhuma lembran�a testamentaria, uma pastilha que fosse, com que do todo em todo n�o parecesse ingrato ou esquecido. Nada. Virgilia tragou raivosa esse mallogro, e disse-m'o com certa cautela, n�o pela cousa em si, sen�o porque entendia com o filho, de quem sabia que eu n�o gostava muito, nem pouco. Insinuei-lhe que n�o devia pensar mais em semelhante negocio. O melhor de tudo era esquecer o defunto, um lorpa, um cainho sem nome, e tratar de cousas alegres; o nosso filho, por exemplo. L� me escapou a decifra��o do mysterio, esse doce mysterio de algumas semanas antes, quando Virgilia me pareceu um pouco differente do que era. Um filho! Um ser tirado do meu ser! Esta era a minha preoccupa��o exclusiva daquelle tempo. Olhos do mundo, zelos do marido, morte do Viegas, nada me interessava por ent�o, nem conflictos politicos, nem revolu��es, nem terremotos, nem nada. En s� pensava naquelle embry�o anonymo, de obscura paternidade, e uma voz secreta me dizia: � teu filho. Meu filho! E repetia estas duas palavras, com certa voluptuosidade indefinivel, e n�o sei que assomos de orgulho. Sentia-me homem. O melhor � que convers�vamos os dous, o embry�o e eu, falavamos de cousas presentes e futuras. O maroto amava-me, era um pelintra gracioso, dava-me pancadinhas na cara com as m�osinhas gordas, ou ent�o tra�ava a beca de bacharel, porque elle havia de ser bacharel, e fazia um discurso na camara dos deputados. E o pae a ouvil-o de uma tribuna, com os olhos rasos de lagrimas. De bacharel passava outra vez � escola, pequenino, lousa e livros debaixo do bra�o, ou ent�o ca�a no ber�o para tornar a erguer-se homem. Em v�o buscava fixar no espirito uma edade, uma attitude; esse embry�o tinha a meus olhos todos os tamanhos e gestos: elle mamava, elle escrevia, elle valsava, elle era o intermin�vel nos limites de um quarto de hora,--_baby_ e deputado, collegial e pintalegrete. �s vezes, ao p� de Virgilia, esquecia-me della e de tudo; Virgilia sacudia-me, reprochava-me o silencio, dizia que eu j� lhe n�o queria nada. A verdade � que estava em dialogo com o embry�o; era o velho colloquio de Ad�o e Caim, uma conversa sem palavras entre a vida e a vida, o mysterio e o mysterio. CAPITULO XCI Uma carta extraordinaria Por esse tempo recebi uma carta extraordinaria, acompanhada de um objecto n�o menos extraordinario. Eis o que a carta dizia: �Meu caro Braz Cubas. �Ha tempos, no Passeio Publico, tomei-lhe de emprestimo um relogio. Tenho a satisfa��o de restituir-lh'o com esta carta. A differen�a � que n�o � o mesmo, por�m outro, n�o digo superior, mas egual ao primeiro. _Que voulez-vous, monseigneur_,--como dizia Figaro,--_c'est la mis�re._ Muitas cousas se deram depois do nosso encontro; irei contal-as pelo miudo, se me n�o fechar a porta. Saiba que j� n�o trago aquellas botas caducas, nem envergo uma famosa sobrecasaca cujas abas se perdiam na noite dos tempos. Cedi o meu degrau da escada de S. Francisco; finalmente, alm��o. �Dito isto, pe�o licen�a para ir um dia destes expor-lhe um trabalho, fructo de longo estudo, um novo systema de philosophia, que n�o s� explica e descreve a origem e a consumma��o das cousas, como faz dar um grande passo adeante de Zenon e Seneca, cujo stoicismo era um verdadeiro brinco de crian�as ao p� da minha receita moral. � singularmente espantoso este meu systema; rectifica o espirito humano, supprime a dor, assegura a felicidade, e enche de immensa gloria o nosso paiz. Chamo-lhe humanitismo, de _Humanitas_, principio das cousas. Minha primeira id�a revelava uma grande enfatua��o; era chamar-lhe borbismo, de Borba; denomina��o vaidosa, al�m de rude e molesta. E com certeza exprimia menos. Ver�, meu caro Braz Cubas, ver� que � dev�ras um monumento; e se alguma cousa ha que possa fazer-me esquecer as amarguras da vida, � o gosto de haver emfim apanhado a verdade e a felicidade. Eil-as na minha m�o essas duas esquivas; ap�s tantos seculos de lutas, pesquizas, descobertas, systemas e qu�das, eil-as nas m�os do homem. At� breve, meu caro Braz Cubas. Saudades do Velho amigo Joaquim Borba dos Santos.� Li esta carta sem entendel-a. Vinha com ella uma boceta contendo um bonito relogio com as minhas iniciaes gravadas, e esta phrase: _Lembran�a do velho Quincas._ Voltei � carta, reli-a com pausa, com atten��o. A restitui��o do relogio excluia toda a id�a de burla; a lucidez, a serenidade, a convic��o,--um pouco jactanciosa, � certo,--pareciam excluir a suspeita de insensatez. Naturalmente o Quincas Borba herdara de algum dos seus parentes de Minas, e a abastan�a devolvera-lhe a primitiva dignidade. N�o digo tanto; ha cousas que se n�o podem rehaver integralmente; mas emfim a regenera��o n�o era impossivel. Guardei a carta e o relogio, e esperei a philosophia. CAPITULO XCII Um homem extraordinario J� agora acabo com as cousas extraordinarias. Vinha de guardar a carta e o relogio, quando me procurou um homem magro e me�o, com um bilhete do Cotrim, convidando-me para jantar. O portador era casado com uma irm� do Cotrim, cheg�ra poucos dias antes do norte, chamava-se Damasceno, e fizera a revolu��o de 1831. Foi elle mesmo que me disse isto, no espa�o de cinco minutos. Sa�ra do Rio de Janeiro, por desaccordo com o Regente, que era um asno, pouco menos asno do que os ministros que serviram com elle. De resto, a revolu��o estava outra vez �s portas. Neste ponto, comquanto trouxesse as id�as politicas um pouco baralhadas, consegui organisar e formular o governo de suas preferencias: era um despotismo temperado,--n�o por cantigas, como dizem alhures,--mas por pennachos da guarda nacional. S� n�o pude alcan�ar se elle queria o despotismo de um, de tres, de trinta ou de tresentos. Opinava por varias cousas, entre outras, o desenvolvimento do trafico dos africanos e a expuls�o dos inglezes. Gostava muito de theatro; logo que chegou foi ao theatro de S. Pedro, onde viu um drama soberbo, a _Maria Joanna_, e uma comedia muito interessante, _Kettly, ou a volta � Suissa._ Tambem gostara muito da Deperini, na _Sapho_, ou na _Anna Bolena_, n�o se lembrava bem. Mas a Candiani! sim, senhor, era papa-fina. Agora queria ouvir o _Ernani_, que a filha delle cantava em casa, ao piano: _Ernani, Ernani, involami..._--E dizia isto levantando-se e cantarolando a meia voz.--No norte essas cousas chegavam como um echo. A filha morria por ouvir todas as operas. Tinha uma voz muito mimosa a filha. E gosto, muito gosto. Ah! elle estava ancioso por voltar ao Rio de Janeiro. J� havia corrido a cidade toda, com umas saudades... Palavra! em alguns logares teve vontade de chorar. Mas n�o embarcaria mais. Enjo�ra muito a bordo, como todos os outros passageiros, excepto um inglez... Que os levasse o diabo os inglezes! Isto n�o ficava direito sem irem todos elles barra f�ra. Que � que a Inglaterra podia fazer-nos? Se elle encontrasse algumas pessoas de boa vontade, era obra de uma noite a expuls�o dos taes _godemes_... Gra�as a Deus, tinha patriotismo,--e batia no peito,--o que n�o admirava porque era de familia; descendia de um antigo capit�o-m�r muito patriota. Sim, n�o era nenhum p�-rapado. Viesse a occasi�o, e elle havia de mostrar de que pau era a canoa... Mas fazia-se tarde, ia dizer que eu n�o faltaria ao jantar, e l� me esperava para maior palestra.--Levei-o at� � porta da sala; elle parou dizendo que sympathisava muito commigo. Quando cas�ra, estava eu na Europa. Conheceu meu pae, um homem �s direitas, com quem dans�ra n'um celebre baile da Praia Grande... Coisas! coisas! Falaria depois, fazia-se tarde, tinha de ir levar a resposta ao Cotrim. Saiu; fechei-lhe a porta... Uf! CAPITULO XCIII O jantar Que supplicio que foi o jantar! Felizmente, Sabina fez-me sentar ao p� da filha do Damasceno, uma D. Eulalia, ou mais familiarmente Nh�-l�l�, mo�a bem graciosa, um tanto acanhada a principio, mas s� a principio. Faltava-lhe elegancia, mas compensava-a com os olhos, que eram soberbos e s� tinham o defeito de se n�o arrancarem de mim, excepto quando desciam ao prato; mas Nh�-l�l� comia t�o pouco, que quasi n�o olhava para o prato. De noite cantou; a voz era como dizia o pae, �muito mimosa�. N�o obstante, esquivei-me. Sabina veiu at� � porta, e perguntou-me que tal ach�ra a filha do Damasceno. --Assim, assim. --Muito sympathica, n�o �? acudiu ella; falta-lhe um pouco mais de corte. Mas que cora��o! � uma perola. Bem boa noiva para voc�. --N�o gosto de perolas. --Casmurro! Para quando � que voc� se guarda? para quando estiver a cair de maduro, j� sei. Pois, meu rico, quer voc� queira quer n�o, ha de casar com Nh�-l�l�. E dizia isto a bater-me na face com os dedos, meiga como uma pomba, e ao mesmo tempo intimativa e resoluta. Santo Deus! seria esse o motivo da reconcilia��o? Fiquei um pouco desconsolado com a id�a, mas uma voz mysteriosa chamava-me � casa do Lobo Neves, disse adeus a Sabina e �s suas amea�as. CAPITULO XCIV A causa secreta --Como est� a minha querida mam�e? A esta palavra, Virgilia amuou-se, como sempre. Estava ao canto de uma janella, sosinha, a olhar para a lua, e recebeu-me alegremente; mas quando lhe falei no nosso filho amuou-se. N�o gostava de semelhante allus�o, aborreciam-lhe as minhas anticipadas caricias paternaes. E eu, para quem ella era j� uma pessoa sagrada, uma ambula divina, deixava-a estar quieta. Suppuz a principio que o embry�o, esse perfil do incognito, projectando-se na nossa aventura, lhe restituira a consci�ncia do mal. E enganava-me. Nunca Virgilia me parecera mais expansiva, mais sem reservas, menos preoccupada dos outros e do marido. N�o eram remorsos. Imaginei tambem que a concep��o seria um puro invento, um modo de prender-me a ella, recurso sem longa efficacia, que talvez come�ava de opprimil-a. N�o era absurda esta hypothese; a minha doce Virgilia mentia �s vezes, com tanta gra�a! Naquella noite descobri a causa verdadeira. Era medo do parto e vexame da gravidez. Padecera muito quando lhe nasceu o primeiro filho; e essa hora, feita de minutos de vida e minutos de morte, dava-lhe j� imaginariamente os calefrios do patibulo. Quanto ao vexame, complicava-se ainda da for�ada priva��o de certos habitos da vida elegante. Com certeza, era isso mesmo; dei-lh'o a entender, reprehendendo-a, um pouco em nome dos meus direitos de pae. Virgilia fitou-me; em seguida desviou os olhos e sorriu de um geito incredulo. CAPITULO XCV Flores de antanho Onde est�o ellas as flores de antanho? Uma tarde, apoz algumas semanas de gesta��o, esboroou-se todo o edificio das minhas chimeras paternaes. Foi-se o embry�o, naquelle ponto em que se n�o distingue Laplace de uma tartaruga. Tive a noticia por boca do Lobo Neves, que me deixou na sala, e acompanhou o medico � alcova da frustrada m�e. Eu encostei-me � janella, a olhar para a chacara, onde verdejavam as laranjeiras sem flores. Onde iam ellas as flores de antanho? CAPITULO XCVI A carta anonyma Senti tocar-me no hombro; era o Lobo Neves. Encaramo-nos alguns instantes, mudos, inconsolaveis. Indaguei de Virgilia, depois ficamos a conversar uma meia hora. No fim desse tempo, vieram trazer-lhe uma carta; elle leu-a, empallideceu muito, e fechou-a com a m�o tremula. Creio que lhe vi fazer um gesto, como se quizesse atirar-se sobre mim; mas n�o me lembra bem. O que me lembra claramente � que durante os dias seguintes recebeu-me frio e taciturno. Emfim, Virgilia contou-me tudo, dahi a dias na Gamboa. O marido mostrou-lhe a carta, logo que ella se restabeleceu. Era anonyma e denunciava-nos. N�o dizia tudo; n�o falava, por exemplo, das nossas entrevistas externas; limitava-se a precavel-o contra a minha intimidade, e accrescentava que a suspeita era publica. Virgilia leu a carta e disse com indigna��o que era uma calumnia infame. --Calumnia? perguntou o Lobo Neves. --Infame. O marido respirou; mas, tornando � carta, parece que cada palavra della lhe fazia com o dedo um signal negativo, cada lettra bradava contra a indigna��o da mulher. Esse homem, ali�s intrepido, era agora a mais fragil das creaturas. Talvez a imagina��o lhe mostrou, ao longe, o famoso olho da opini�o, a fital-o sarcasticamente, com um ar de pulha; talvez uma boca invisivel lhe repetiu ao ouvido as chufas que elle escutara ou dissera outr'ora. Instou com a mulher que lhe confessasse tudo, porque tudo lhe perdoaria. Virgilia comprehendeu que estava salva; mostrou-se irritada com a insistencia, jurou que da minha parte s� ouvira palavras de gracejo e cortezia. A carta havia de ser de algum namorado sem ventura. E citou alguns,--um que a galante�ra francamente, durante algumas semanas, outro que lhe escrevera uma carta, e ainda outros e outros. Citava-os pelo nome, com circumstancias, estudando os olhos do marido, e concluiu dizendo que, para n�o dar margem � calumnia, tratar-me-hia de maneira que eu n�o voltaria l�. Ouvi tudo isto um pouco turbado, n�o pelo accrescimo de dissimula��o que era preciso empregar de ora em diante, at� afastar-me inteiramente da casa do Lobo Neves, mas pela tranquillidade moral de Virgilia, pela falta de commo��o, de susto, de saudades, e at� de remorsos. Virgilia notou a minha preoccupa��o, levantou-me a cabe�a, porque eu olhava ent�o para o soalho, e disse-me com certa amargura: --Voc� n�o merece os sacrif�cios que lhe fa�o. N�o lhe disse nada; era ocioso ponderar-lhe que um pouco de desespero e terror daria � nossa situa��o o sabor caustico dos primeiros dias; mas se lh'o dissesse, n�o � impossivel que ella chegasse lenta e artificiosamente at� esse pouco de desespero e terror. N�o lhe disse nada. Ella batia nervosamente com a ponta do p� no ch�o; aproximei-me e beijei-a na testa. Virgilia recuou, como se fosse um beijo de defuncto. CAPITULO XCVII Entre a boca e a testa Sinto que o leitor estremeceu,--ou devia estremecer. Naturalmente a ultima palavra suggeriu-lhe tres ou quatro reflex�es. Veja bem o quadro: n'uma casinha da Gamb�a*, duas pessoas que se amam ha muito tempo, uma inclinada para a outra, a dar-lhe um beijo na testa, e a outra a recuar, como se sentisse o contacto de uma boca de cadaver. Ha ahi, no breve intervallo, entre a boca e a testa, antes do beijo e depois do beijo, ha ahi largo espa�o para muita cousa,--a contrac��o de um resentimento,--a ruga da desconfian�a,--ou emfim o nariz pallido e somnolento da saciedade.. CAPITULO XCVIII Supprimido Separamo-nos alegremente. Jantei reconciliado com a situa��o. A carta anonyma restituia � nossa aventura o sal do mysterio e a pimenta do perigo; e afinal foi bem bom que Virgilia n�o perdesse naquella crise a posse de si mesma. De noite fui ao theatro de S. Pedro; representava-se uma grande pe�a, em que a Estella arrancava lagrimas. Entro; corro os olhos pelos camarotes; vejo em um delles o Damasceno e a familia. Trajava a filha com outra elegancia e certo apuro, cousa difficil de explicar, porque o pae ganhava apenas o necessario para endividar-se; e dahi, talvez fosse por isso mesmo. No intervallo fui visital-os. O Damasceno recebeu-me com muitas palavras, a mulher com muitos sorrisos. Quanto a Nh�-l�l�, n�o tirou mais os olhos de mim; e realmente parecia-me agora mais bonita que no dia do jantar. Achei-lhe certa suavidade etherea casada ao polido das f�rmas terrenas:--express�o vaga, e condigna de um capitulo em que tudo ha de ser vago. Realmente, n�o sei como lhes diga que n�o me senti mal, ao p� da mo�a, trajando garridamente um vestido fino, um vestido que me dava cocegas de Tartuffo. Ao contemplal-o, cobrindo casta e redondamente o joelho, foi que eu fiz uma descoberta subtil, a saber, que a natureza previu a vestidura humana, condi��o necessaria ao desenvolvimento da nossa especie. A nudez habitual, dada a multiplica��o das obras e dos cuidados do individuo, tenderia a embotar os sentidos e a retardar os sexos, ao passo que o vestuario, negaceando a natureza, agu�a e attr�e as vontades, activa-as, reprodul-as, e conseguintemente faz andar a civilisa��o. Aben�oado uso que nos deu _Othello_ e os paquetes transatl�nticos! Estou com vontade de supprimir este capitulo. O declive � perigoso. Mas emfim eu escrevo as minhas memorias e n�o as tuas, leitor pacato. Ao p� da graciosa donzella, parecia-me tomado de uma sensa��o dupla e indefinivel. Ella exprimia inteiramente a dualidade de Pascal, _l'ange et la b�te_, com a differen�a que o jansenista n�o admittia a simultaneidade das duas naturezas, ao passo que ellas ahi estavam bem juntinhas,--_l'ange_, que dizia algumas cousas do ceu,--e _la b�te_, que... N�o; decididamente supprimo este capitulo. CAPITULO XCIX Na plat�a Na plat�a achei o Lobo Neves, de conversa com alguns amigos; fal�mos por alto, a frio, constrangidos um e outro. Mas no intervallo seguinte, prestes a levantar o panno, encontramo-nos n'um dos corredores, em que n�o havia ninguem. Elle veiu a mim, com muita affabilidade e riso, puxou-me a um dos oculos do theatro, e falamos muito, principalmente elle, que parecia o mais tranquillo dos homens. Cheguei a perguntar-lhe pela mulher; respondeu que estava boa, mas torceu logo a conversa��o para assumptos geraes, expansivo, quasi risonho. Adivinhe quem quizera causa da differen�a; eu fujo ao Damasceno que me espreita alli da porta do camarote. N�o ouvi nada do seguinte acto, nem as palavras dos actores, nem as palmas do publico. Reclinado na cadeira, apanhava de memoria os retalhos da conversa��o do Lobo Neves, refazia as maneiras delle, e concluia que era muito melhor a nova situa�ao. Bastava-nos a Gamboa. A frequencia da outra casa agu�aria as invejas. E rigorosamente podiamos dispensar-nos de falar todos os dias; era at� melhor, mettia a saudade de permeio nos amores. Ao demais, eu galgara os quarenta annos, e n�o era nada, nem simples eleitor de parochia. Urgia fazer alguma cousa, ainda por amor de Virgilia, que havia de ufanar-se quando visse luzir o meu nome... Creio que nessa occasi�o houve grandes applausos, mas n�o juro; eu pensava em outra cousa. Multid�o, cujo amor cobicei at� � morte, era assim que eu me vingava �s vezes de ti; deixava borborinhar em volta do meu corpo a gente humana, sem a ouvir, como o Prometheu de Eschylo fazia aos seus verdugos. Ah! tu cuidavas encadear-me ao rochedo da tua frivolidade, da tua indifferen�a, ou da tua agita��o? Frageis cadeias, amiga minha; eu rompia-as de um gesto de Gulliver. Vulgar cousa � ir considerar no ermo. O voluptuoso, o exquisito, � insular-se o homem no meio de um mar de gestos e palavras, de nervos e paix�es, decretar-se alheiado, inaccessivel, ausente. O mais que podem dizer, quando elle torna a si,--isto �, quando torna aos outros,--� que baixa do mundo da lua; mas o mundo da lua, esse desv�o luminoso e recatado do cerebro, que outra cousa � sen�o a affirma��o desdenhosa da nossa liberdade espiritual? Vive Deus! eis um bom fecho de capitulo. CAPITULO C O caso provavel Se esse mundo n�o fosse uma regi�o de espiritos desattentos, era escusado lembrar ao leitor que eu s� affirmo certas leis, quando as possuo deveras; em rela��o a outras restrinjo-me � admiss�o da probabilidade. Um exemplo da segunda classe constitue o presente capitulo, cuja leitura recommendo a todas as pessoas que amam o estudo dos phenomenos sociaes. Segundo parece, e n�o � improvavel, existe entre os factos da vida publica e os da vida particular uma certa ac��o reciproca, regular, e talvez periodica,--ou, para usar de uma imagem, ha alguma cousa semelhante �s mar�s da praia do Flamengo e de outras egualmente marulhosas. Com effeito, quando a onda investe a praia, alaga-a muitos palmos a dentro; mas essa mesma agua torna ao mar, com variavel for�a, e vae engrossar a onda que ha de vir, e que ter� de tornar como a primeira. Esta � a imagem; vejamos a applica��o. Deixei dito n'outra pagina que o Lobo Neves, nomeado presidente de provincia, recusou a nomea��o por motivo da data do decreto, que era 13; acto grave, cuja consequ�ncia foi separar do ministerio o marido de Virgilia. Assim, o facto particular da ogerisa de um numero produziu o phenomeno da dissidencia politica. Resta ver como, tempos depois, um acto politico determinou na vida particular uma cessa��o de movimento. N�o convindo ao methodo deste livro descrever immediatamente esse outro phenomeno, limito-me a dizer por ora que o Lobo Neves, quatro mezes depois de nosso encontro no theatro, reconciliou-se com o ministerio; facto que o leitor n�o deve perder de vista, se quizer penetrar a subtileza do meu pensamento. CAPITULO CI A revolu��o dalmata Foi Virgilia quem me deu noticia da vira-volta politica do marido, certa manh� de outubro, entre onze e meio dia; falou-me de reuni�es, de conversas, de um discurso... --De maneira que desta vez fica voc� baroneza, interrompi eu. Ella derreou os cantos da boca, e moveu a cabe�a a um e outro lado; mas esse gesto de indifferen�a era desmentido por alguma cousa menos definivel, menos clara, uma express�o de gosto e de esperan�a. E n�o sei por que imaginei que a carta imperial da nomea��o podia attra�l-a � virtude, n�o digo pela virtude em si mesma, mas por gratid�o ao marido. Que ella amava cordialmente a nobreza; e um dos maiores desgostos de nossa vida foi o apparecimento de um certo pelintra de lega��o,--da lega��o da Dalmacia, supponhamos,--o conde B. V., que a namorou durante tres mezes. Esse homem, vero fidalgo de ra�a, transtornara um pouco a cabe�a de Virgilia, que, al�m do mais, possuia a voca��o diplomatica. N�o chego a alcan�ar o que seria de mim, se n�o rebentasse na Dalmacia uma revolu��o, que derrocou o governo e purificou as embaixadas. Foi sangrenta a revolu��o, dolorosa, formidavel; os jornaes, a cada navio que chegava da Europa, transcreviam os horrores, mediam o sangue, contavam as cabe�as; toda a gente fremia de indigna��o e piedade... Eu n�o; eu aben�oava interiormente essa tragedia, que me tir�ra uma pedrinha do sapato. E depois a Dalmacia era t�o longe! CAPITULO CII De repouso Mas este mesmo homem, que se alegrou com a partida do outro, praticou dahi a tempos... N�o, n�o hei de contal-o nesta pagina; fique esse capitulo para repouso do meu vexame. Uma ac��o grosseira, baixa, sem explica��o possivel... Repito, n�o contarei o caso nesta pagina. CAPITULO CIII Distrac��o --N�o, senhor doutor, isto n�o se faz. Perdoe-me, isto n�o se faz. Tinha raz�o D. Placida. Nenhum cavalheiro chega uma hora mais tarde ao logar em que o espera a sua dama. Entrei esbaforido; Virgilia tinha ido embora. D. Placida contou-me que ella esper�ra muito, que se irritara, que chorara, que jur�ra* votar-me ao desprezo, e outras mais cousas que a nossa caseira dizia com lagrimas na voz, pedindo-me que n�o desamparasse Yay�, que era ser muito injusto com uma mo�a que me sacrificara tudo. Expliquei-lhe ent�o que um equivoco... E n�o era; cuido que foi simples distra��o. Um dito, uma conversa, uma anecdota, qualquer cousa; simples distrac��o. Coitada de D. Placida! Estava afflicta deveras. Andava de um lado para outro, abanando a cabe�a, suspirando com estrepito, espiando pela rotula. Coitada de D. Placida! Com que arte conchegava as roupas, bafejava as faces, acalentava as manhas do nosso amor! que imagina��o fertil em tornar as horas mais apraziveis e breves! Flores, doces,--os bons doces de outros dias,--e muito riso, muito affago, um riso e um affago que cresciam com o tempo, como se ella quizesse fixar a nossa aventura, ou restituir-lhe a primeira flor. Nada esquecia a nossa confidente e caseira; nada, nem a mentira, porque a um e outro referia suspiros e saudades que n�o presenci�ra; nada, nem a calumnia, porque uma vez chegou a attribuir-me uma paix�o nova.--Voc� sabe que n�o posso gostar de outra mulher, foi a minha resposta, quando Virgilia me falou em semelhante cousa. E esta s� palavra, sem nenhum protesto ou admoesta��o, dissipou o aleive-de D. Placida, que ficou triste. --Est� bem, disse-lhe eu, depois de um quarto de hora; Virgilia hade reconhecer que n�o tive culpa nenhuma... Quer voc� levar-lhe uma carta agora mesmo? --Ella hade estar bem triste, coitadinha! Olhe, eu n�o desejo a morte de ninguem; mas, se o senhor doutor algum dia chegar a casar com Yay�, ent�o sim, � que hade ver o anjo que ella �! Lembra-me que desviei o rosto e baixei os olhos ao ch�o. Recommendo este gesto �s pessoas que n�o tiverem uma palavra prompta para responder, ou ainda �s que receiarem encarar a pupilla do outros olhos. Em taes casos, alguns preferem recitar uma oitava dos _Lus�adas_, outros adoptam o recurso de assobiar a _Norma_; eu atenho-me ao gesto indicado; � mais simples, exige menos esfor�o. Tres dias depois, estava tudo explicado. Supponho que Virgilia ficou um pouco admirada, quando lhe pedi desculpa das lagrimas que derram�ra naquella triste occasi�o; e n�o me lembra se interiormente as attribui a D. Placida. Com effeito, podia acontecer que D. Placida chorasse, ao vel-a desapontada, e, por um phenomeno da vis�o, as lagrimas que tinha nos proprios olhos lhe parecessem cair dos olhos de Virgilia. Fosse como fosse, tudo estava explicado, mas n�o perdoado, e menos ainda esquecido. Virgilia dizia-me uma por��o de cousas duras, amea�ava-me com a separa��o, emfim louvava o marido. Esse sim, era um homem digno, muito superior a mim, delicado, um primor de cortezia e affei��o; � o que ella dizia, emquanto eu, sentado, com os bra�os fincados nos joelhos, olhava para o ch�o, onde uma mosca arrastava uma formiga que lhe mordia o p�. Pobre mosca! pobre formiga! --Mas voc� n�o diz nada, nada? perguntou Virgilia, parando deante de mim. --Que heide dizer? J� expliquei tudo; voc� teima em zangar-se; que heide dizer? Sabe o que me parece? Parece-me que voc� est� enfastiada, que se aborrece, que quer acabar... --Justamente! Foi dali p�r o chap�u, com a m�o tremula, raivosa...--Adeus, D. Placida, bradou ella para dentro. Depois foi at� � porta, correu o fecho, ia sair; agarrei-a pela cintura.--Est� bom, est� bom, disse-lhe. Virgilia ainda forcejou por sair. Eu retive-a, pedi-lhe que ficasse, que esquecesse; ella afastou-se da porta e foi cair no canap�. Sentei-me ao p� della, disse-lhe muitas cousas meigas, outras humildes, outras graciosas. N�o affirmo se os nossos labios chegaram � distancia de um fio de cambraia ou ainda menos; � mat�ria controversa. Lembra-me, sim, que na agita��o caiu um brinco de Virgilia, que eu inclinei-me a apanhal-o, e que a mosca de ha pouco trepou ao brinco, levando sempre a formiga no p�. Ent�o eu, com a delicadeza nativa de um homem do nosso s�culo, puz na palma da m�o aquelle casal de mortificados; calculei toda a distancia que ia da minha m�o ao planeta Saturno, e perguntei a mim mesmo que interesse podia haver n'um episodio t�o mofino. Se conclues dahi que eu era um barbaro, enganas-te, porque eu pedi um grampo a Virgilia, afim de separar os dous insectos; mas a mosca farejou a minha inten��o, abriu as azas e foi-se embora. Pobre mosca! pobre formiga! E Deus viu que isto era bom, como se diz na Escriptura. CAPITULO CIV Era elle! Restitui o grampo a Virgilia, que o repregou nos cabellos, e preparou-se para sair. Era tarde; tinham dado tres horas. Tudo estava esquecido e perdoado. D. Placida, que espreitava a occasi�o idonea para a sa�da, fecha subitamente a janella e exclama: --Virgem Nossa Senhora! ahi vem o marido de Yay�! O momento de terror foi curto, mas completo. Virgilia fez-se da c�r* das rendas do vestido, correu at� a porta da alcova; D. Placida, que fech�ra a rotula, queria fechar tambem a porta de dentro; eu dispuz-me a esperar o Lobo Neves. Esse curto instante passou. Virgilia tornou a si, empurrou-me para a alcova, disse a D. Placida que voltasse � janella; a confidente obedeceu. Era elle. D. Placida abriu-lhe a porta com muitas exclama��es de pasmo:--O senhor por aqui! honrando a casa de sua velha! Entre, fa�a favor. Adivinhe quem est� c�... N�o tem que adivinhar: n�o veiu por outra cousa... Appare�a, Yay�. Virgilia, que estava a um canto, atirou-se ao marido. Eu espreitava-os pelo buraco da fechadura. O Lobo Neves entrou lentamente, pallido, frio, quieto, sem explos�o, sem arrebatamento, e circulou um olhar em volta da sala. --Que � isto? exclamou Virgilia. Voc� por aqui? --Ia passando, vi D. Placida � janella, e vim comprimental-a. --Muito obrigada, acudiu esta. E digam que as velhas n�o valem alguma cousa... Olhae, gentes! Yay� parece estar com ciumes. E acariciando-a muito:--Este anjinho � que nunca se esqueceu da velha Placida. Coitadinha! � mesmo a cara da m�e... Sente-se, senhor doutor... --N�o me demoro. --Voc� vae para casa? disse Virgilia. Vamos juntos. --Vou. --D� c� o meu chap�u, D. Placida. --Est� aqui. D. Placida foi buscar um espelho, abriu-o deante della. Virgilia punha o chap�u, atava as fitas, arranjava os cabellos, falando ao marido, que n�o respondia nada. A nossa boa velha tagarellava de mais; era um modo de disfar�ar as tremuras do corpo. Virgilia, dominado o primeiro instante, torn�ra � posse de si mesma. --Prompta! disse ella. Adeus, D. Placida; n�o se esque�a de apparecer, ouviu? A outra prometteu que sim, e abriu-lhes a porta. CAPITULO CV Equivalencia das janellas D. Placida fechou a porta e caiu n'uma cadeira. Eu deixei immediatamente a alcova, e dei dous passos para sair � rua, com o fim de arrancar Virgilia ao marido; foi o que disse, e em bem que o disse, porque D. Placida deteve-me por um bra�o. Tempo houve em que eu cheguei a suppor que n�o dissera aquillo sen�o para que ella me detivesse; mas a simples reflex�o basta para mostrar que, depois dos dez minutos da alcova, o gesto mais genuino e cordial n�o podia ser sen�o esse. E isto por aquella famosa lei da equivalencia das janellas, que eu tive a satisfa��o de descobrir e formular, no cap. LI. Era preciso arejar a consciencia. A alcova foi uma janella fechada; eu abri outra com o gesto de sair, e respirei. CAPITULO CVI Jogo perigoso Respirei e sentei-me. D. Placida atroava a sala com exclama��es e lastimas. Eu ouvia, sem lhe dizer cousa nenhuma; reflectia commigo se n�o era melhor ter fechado Virgilia na alcova e ficado na sala; mas adverti logo que seria peior; confirmaria a suspeita, e chegaria o fogo � polvora e uma scena de sangue... Foi muito melhor assim. Mas depois? que ia acontecer em casa de Virgilia? Matal-a-hia o marido? espancal-a-hia? encerral-a-hia? expulsal-a-hia? Estas interroga��es percorriam lentamente o meu cerebro, como os pontinhos e virgulas escuras percorrem o campo visual dos olhos enfermos ou cansados. Iam e vinham, com o seu aspecto secco e tragico, e eu n�o podia agarrar um dellos e dizer: �s tu, tu e n�o outro. De repente vejo um vulto negro; era D. Placida, que f�ra dentro, enfi�ra a mantilha, e vinha offerecer-se-me para ir � casa do Lobo Neves. Ponderei-lhe que era arriscado, porque elle desconfiaria da visita t�o proxima. --Socegue, interrompeu ella; eu saberei arranjar as cousas. Se elle estiver em casa n�o entro. Saiu; eu fiquei a ruminar o successo e as consequencias possiveis. Ao cabo, parecia-me jogar um jogo perigoso, e perguntava a mim mesmo se n�o era tempo de levantar e espairecer, como um parceiro do _whist._ E ent�o senti-me tomado de uma saudade do casamento, de um desejo de canalizar a vida. Porque n�o? Meu cora��o tinha ainda que explorar; n�o me sentia incapaz de um amor casto, severo e puro. Na verdade, as aventuras s�o a parte torrencial e vertiginosa da vida, isto �, a excep��o; eu estava enfarado dellas; n�o sei at� se me pungia algum remorso. Mal pensei naquillo, deixei-me ir atraz da imagina��o; vi-me logo casado, ao p� de uma mulher adoravel, deante de um _baby_, que dormia no rega�o da ama, todos n�s no fundo do uma chacara sombria e verde, a espiarmos atravez das arvores uma nesga do ceu azul, extremamente azul... CAPITULO CVII Bilhete �N�o houve nada, mas elle suspeita alguma cousa; est� muito serio e n�o fala; agora saiu. Sorriu uma vez somente, para nhonh�, depois de o fitar muito tempo, carrancudo. N�o me tratou mal nem bem. N�o sei o que vae acontecer; Deus queira que isto passe. Muita cautela, por ora, muita cautela.� CAPITULO CVIII Que se n�o entende Eis ahi o drama, eis ahi a ponta da orelha tragica de Shakespeare. Esse retalhinho de papel, garatujado em partes, machucado das m�os, era um documento de analyse, que eu n�o farei neste capitulo, nem no outro, nem talvez em todo o resto do livro. Poderia eu tirar ao leitor o gosto de notar por si mesmo a frieza, a perspicacia e o animo dessas poucas linhas tra�adas � pressa; e por traz dellas a tempestade de outro cerebro, a raiva dissimulada, o desespero que se constrange e medita, por que tem de resolver-se na lama, ou no sangue, ou nas lagrymas? Quanto a mim, se vos disser que li o bilhete tres ou quatro vezes, naquelle dia, accreditai-o, que � verdade; se vos disser mais que o reli no dia seguinte, antes e depois do almo�o, podeis crel-o, � a realidade pura. Mas se vos disser a commo��o que tive, duvidai um pouco da asser��o, e n�o a acceiteis sem provas. Nem ent�o, nem ainda agora cheguei a discernir o que experimentei. Era medo, e n�o era medo; era d� e n�o era d�; era vaidade e n�o era vaidade; emfim, era amor sem amor, isto �, sem delirio; e tudo isso dava uma combina��o ass�s complexa e vaga, uma cousa que n�o podereis entender, como eu n�o entendi. Supponhamos que n�o disse nada. CAPITULO CIX O philosopho Sabido que reli a carta, antes e depois do almo�o, sabido fica que almocei, e s� resta dizer que essa refei��o foi das mais parcas da minha vida: um ovo, uma fatia de p�o, uma chicara de ch�. N�o me esqueceu esta circumstancia minima; no meio de tanta cousa importante obliterada escapou esse almo�o. A raz�o principal poderia ser justamente o meu desastre; mas n�o foi; a principal raz�o foi a reflex�o que me fez o Quincas Borba, cuja visita recebi naquelle dia. Disse-me elle que a frugalidade n�o era necessaria para entender o Humanitismo, � menos ainda pratical-o; que esta philosophia acommodava-se facilmente com os prazeres da vida, inclusive a mesa, o espectaculo e os amores; e que, ao contrario, a frugalidade podia indicar certa tendencia para o ascetismo, o qual era a express�o acabada da tolice humana. --Veja S. Jo�o, continuou elle; mantinha-se de gafanhotos, no deserto, em vez de engordar tranquillamente na cidade, e fazer emmagrecer o pharisaismo na synagoga. Deus me livre de contar a historia do Quincas Borba, que ali�s ouvi toda naquella triste occasi�o, uma historia longa, complicada, mas interessante. E se n�o conto a historia, dispenso-me outrosim de descrever-lhe a figura, ali�s mui diversa da que me appareceu no Passeio Publico. Calo-me; digo somente que se o principal caracter�stico do homem n�o s�o as fei��es, mas o vestu�rio, elle n�o era o Quincas Borba; era um desembargador sem beca, um general sem farda, um negociante sem _deficit._ Notei-lhe a perfei��o da sobrecasaca, a alvura da camisa, o aceio das botas. A mesma voz, roufenha outr'ora, parecia restituida � primitiva sonoridade. Quanto � gesticula��o, sem que houvesse perdido a viveza de outro tempo, n�o tinha j� a desordem, sujeitava-se a um certo methodo. Mas eu n�o quero descrevel-o. Se falasse, por exemplo, no bot�o de ouro que trazia ao peito, e na qualidade do couro das botas, iniciaria uma descrip��o, que omitto por brevidade. Contentem-se de saber que as botas eram de verniz. Saibam mais que elle herd�ra alguns pares de contos de r�is de um velho tio de Barbacena. Meu espirito, (permittam-me aqui uma compara��o de crian�a!) meu espirito era n'aquella occasi�o uma especie de peteca. A narra��o do Quincas Borba dava-lhe uma palmada, elle subia; quando ia a cair, o bilhete de Virgilia dava-lhe outra palmada, e elle era de novo arremessado aos ares; descia, e o episodio do Passeio Publico recebia-o com outra palmada, egualmente rija e efficaz. Cuido que n�o nasci para situa��es complexas. Esse puxar e empuxar de cousas oppostas, desequilibrava-me; tinha vontade de embrulhar o Quincas Borba, o Lobo Neves e o bilhete de Virgilia na mesma philosophia, e mandal-os de presente a Aristoteles. E, comtudo, era instructiva a narra��o do nosso philosopho; admirava-lhe sobretudo o talento de observa��o com que descrevia a gesta��o e o crescimento do vicio, as luctas interiores, as capitula��es vagarosas, o uso da lama. --Olhe, observou elle; a primeira noite que passei, na escada de S. Francisco, dormi-a inteira, como se fosse a mais fina pluma. Porque? Porque fui gradualmente da cama de esteira ao catre de pau, do quarto proprio ao corpo da guarda, do corpo da guarda ao xadrez, do xadrez � rua... Quiz expor-me finalmente a philosophia; eu pedi-lhe que n�o.--Estou assaz preocupado hoje e n�o poderia attendel-o; venha depois; estou sempre em casa. O Quincas Borba sorriu de um modo malicioso; talvez soubesse da minha aventura, mas n�o accrescentou nada. S� me disse estas ultimas palavras � porta: --Venha para o Humanitismo; elle � o grande rega�o dos espiritos, o mar eterno em que mergulhei para arrancar de l� a verdade. Os gregos faziam-na sair de um po�o. Que concep��o mesquinha! Um po�o! Mas � por isso mesmo que nunca atinaram com ella. Gregos, sub-gregos, anti-gregos, toda a longa serie dos homens tem-se debru�ado sobre o po�o, para ver sair a verdade, que n�o est� la. Gastaram cordas e ca�ambas; alguns mais afoutos desceram ao fundo e trouxeram um sapo. Eu fui directamente ao mar. Venha para o Humanitismo. CAPITULO CX 31 Uma semana depois, o Lobo Neves foi nomeado presidente de provincia. Agarrei-me � esperan�a da recusa, se o decreto viesse outra vez datado de 13; trouxe, por�m, a data de 31; e esta simples transposi��o de algarismos eliminou delles a substancia diabolica. Que profundas que s�o as molas da vida! CAPITULO CXI O muro N�o sendo meu costume dissimular ou esconder nada, contarei nesta pagina o caso do muro. Elles estavam prestes a embarcar. Entrando em casa de D. Placida, vi um papelinho dobrado sobre a mesa; era um bilhete de Virgilia; dizia que me esperava � noite, na chacara, sem falta. E conclu�a: �O muro � baixo do lado do becco.� Fiz um gesto de desagrado. A carta pareceu-me descommunalmente audaciosa, mal pensada e at� ridicula. N�o era s� convidar o escandalo, era convidal-o de parceria com a risota. Imaginei-me a saltar o muro, embora baixo e do lado do becco; e, quando ia a galgal-o, via-me agarrado por um pedestre de policia, que me levava ao corpo da guarda. O muro � baixo! E que tinha que fosse baixo? Naturalmente Virgilia n�o soube o que fez; era possivel que j� estivesse arrependida. Olhei para o papel, um peda�o de papel amarrotado, mas inflexivel. Tive comich�es de o rasgar, em trinta mil peda�os, e atiral-os ao vento, como o ultimo despojo da minha aventura; mas recuei a tempo; o amor-proprio, o vexame da fuga, a id�a do medo... N�o havia remedio sen�o ir. --Diga-lhe que vou. --Aonde? perguntou D. Placida. --Onde ella disse que me espera. --N�o me disse nada. --Neste papel. D. Placida arregalou os olhos:--Mas esse papel, achei-o hoje de manh�, nesta sua gaveta, e pensei que... Tive uma sensa��o exquisita. Reli o papel, mirei-o, remirei-o; era, na verdade, um antigo bilhete de Virgilia, recebido no come�o dos nossos amores, uma certa entrevista na chacara, que me levou effectivamente a saltar o muro, um muro baixo e discreto. Guardei o papel e... Tive uma sensa��o exquisita. CAPITULO CXII A opini�o Mas estava escripto que esse dia devia ser o dos lances dubios. Poucas horas depois, encontrava-me eu com o Lobo Neves, na rua do Ouvidor, e falavamos da presidencia e da politica. Elle aproveitou o primeiro conhecido que nos passou � ilharga, e deixou-me, depois de muitos comprimentos. Lembra-me que estava retraindo, mas de um retrahimento que forcejava por dissimular. Pareceu-me ent�o (e pe�o perd�o � critica, se este meu juizo f�r temer�rio!) pareceu-me que elle tinha medo--n�o medo de mim, nem de si, nem do codigo, nem da consciencia; tinha medo da opini�o. Suppuz que esse tribunal anonymo e invisivel, em que cada membro accusa e julga, era o limite posto � vontade do Lobo Neves. Talvez que elle j� n�o amasse a mulher; e, assim, p�de ser que o cora��o fosse estranho � indulgencia dos seus ultimos actos. Cuido (e de novo insto pela boa vontade da critica!) cuido que elle estaria prompto a separar-se da mulher, como o leitor se ter� separado de muitas rela��es pessoaes; mas a opini�o, essa opini�o que lhe arrastaria a vida por todas as ruas, que abriria minucioso inquerito �cerca do caso, que colligiria uma a uma todas as circumstancias, antecedencias, induc��es, provas, que as relataria na palestra das chacaras desoccupadas, essa terrivel opini�o, t�o curiosa das alcovas, obstou � dispers�o da familia. Ao mesmo tempo tornou impossivel o desfor�o, que seria a divulga��o. Elle n�o podia mostrar-se resentido commigo, sem egualmente buscar a separa��o conjugal; e teve ent�o de simular a mesma ignorancia de outr'ora, e, por deduc��o, eguaes sentimentos. Que lhe custasse creio; naquelles dias, principalmente, vi-o de modo que devia custar-lhe muito. Mas o tempo (e � outro ponto em que eu espero a indulgencia dos homens pensadores!), o tempo calleja a sensibilidade, e oblitera a memoria das cousas; era de suppor que os annos lhe despontassem os espinhos, que a distancia dos factos apagasse os respectivos contornos, que uma sombra de duvida retrospectiva cobrisse a nudez da realidade; emfim, que a opini�o se occupasse um pouco com outras aventuras. O filho, crescendo, buscaria satisfazer as ambi��es do pae; seria o herdeiro de todos os seus affectos. Isso, e a actividade externa, e o prestigio publico, e a velhice depois, a doen�a, o declinio, a morte, um responso, uma noticia biographica, e estava fechado o livro da vida, sem nenhuma pagina de sangue. CAPITULO CXIII A solda A conclus�o, se ha alguma no capitulo anterior, � que a opini�o � uma b�a solda das institui��es domesticas. N�o � impossivel que eu desenvolva este pensamento, antes de acabar o livro; mas tambem n�o � impossivel que o deixe como est�. De um ou de outro modo, � uma b�a solda a opini�o, e tanto na ordem domestica, como na politica. Alguns metaphysicos biliosos tem chegado ao extremo de a darem como simples producto da gente chocha ou mediocre; mas � evidente que, ainda quando um conceito t�o extremado n�o trouxesse em si mesmo a resposta, bastava considerar os effeitos salutares da opini�o, para concluir que ella � a obra superfina da flor dos homens, a saber, do maior numero. CAPITULO CXIV Fim de um dialogo --Sim, � amanh�. Voc� vae a bordo? --Est� douda? � imposs�vel. --Ent�o, adeus! --Adeus! --N�o se esque�a de D. Placida. V� vel-a algumas vezes. Coitada! Foi hontem despedir-se de n�s; chorou muito, disse que eu n�o a veria mais... � uma boa creatura, n�o? --Certamente. --Se tivermos de escrever, ella receber� as cartas. Agora at� daqui a... --Talvez dous annos? --Qual! elle diz que � s� at� fazer as elei��es. --Sim? ent�o at� breve. Olhe que est�o olhando para n�s. --Quem? --Alli do soph�. Separemo-nos. --Custa-me muito. --Mas � preciso; adeus, Virgilia! --At� breve. Adeus! CAPITULO CXV O almo�o N�o a vi partir; mas � hora marcada senti alguma cousa que n�o era dor nem prazer, uma cousa mixta, allivio e saudade, tudo misturado, em eguaes doses. N�o se irrite o leitor com esta confiss�o. Eu bem sei que, para titillar-lhe os nervos da fantasia, devia padecer um grande desespero, derramar algumas lagrimas, e n�o almo�ar. Seria romanesco; mas n�o seria biographico. A realidade pura � que eu almocei, como nos demais dias, acudindo ao cora��o com as lembran�as da minha aventura, e ao estomago com os acepipes de Mr. Pruddon... ...Velhos do meu tempo, lembrai-vos desse mestre cosinheiro do hotel Pharoux, um sujeito que, segundo dizia o dono da casa, havia servido nos famosos V�ry e V�four, de Paris, e mais nos palacios do conde Mol� e do duque de la Rochefoucauld? Era insigne. Entrou no Rio de Janeiro com a polka... A polka, Mr. Pruddon, o Tivoli, o baile dos estrangeiros, o Casino, eis algumas das melhores recorda��es daquelle tempo; mas sobretudo os acepipes do mestre eram deliciosos. Eram, e naquella manh� parece que o diabo do homem adivinh�ra a nossa catastrophe. J�mais o engenho e a arte lhe foram t�o propicios. Que requinte de temperos! que tenrura de carnes! que rebuscado de f�rmas! Comia-se com a bocca, com os olhos, com o nariz. N�o guardei a conta desse dia; do contrario, � mui provavel que a deixasse nestas paginas. Sei que foi cara. Ai dor! era-me preciso enterrar magnificamente os meus amores. Elles la iam, mar em f�ra, no espa�o e no tempo, e eu ficava-me alli n'uma ponta de mesa, com os meus quarenta e tantos annos, t�o vadios e t�o vazios; ficava-me para os n�o ver nunca mais, porque ella poderia tornar e tornou, mas o effluvio da manh� quem � que o pediu ao crep�sculo da tarde? CAPITULO CXVI Philosophia das folhas velhas Fiquei t�o triste com o fim do ultimo capitulo que estava capaz de n�o escrever este, descan�ar um pouco, purgar o espirito da melancolia que o empacha, e continuar depois. Mas n�o, n�o quero perder tempo. A partida de Virgilia deu-me uma amostra da viuvez. Nos primeiros dias metti-me em casa, a fisgar moscas, como Domiciano, se n�o mente o Suetonio, mas a fisgal-as de um modo particular: com os olhos. Fisgava-as uma a uma, no fundo de uma sala grande, estirado na rede, com um livro aberto entre as m�os. Era tudo: saudades, ambi��es, um pouco de tedio, e muito devaneio solto. Meu tio conego morreu nesse intervallo; item, dous primos; e eu n�o me dei por abalado; levei-os ao cemiterio, como quem leva dinheiro a um banco. Que digo? como quem leva cartas ao correio: sellei as cartas, metti-as na caixinha, e deixei ao carteiro o cuidado de as entregar em m�o propria. Foi tambem per esse tempo que nasceu minha sobrinha Venancia, filha do Cotrim. Morriam uns, nasciam outros: eu continuava �s moscas. Outras vezes agitava-me. Ia �s gavetas, entornava as cartas antigas, dos amigos, dos parentes, das namoradas, (at� as de Marcella), e abria-as todas, lia-as uma a uma, e recompunha o preterito... Leitor ignaro, se n�o guardas as cartas da juventude, n�o conhecer�s um dia a philosophia das folhas velhas, n�o gostar�s o prazer de ver-te, ao longe, na penumbra, com um chap�u de tres bicos, botas de sete leguas e longas barbas assyrias, a bailar ao som de uma gaita anacreontica. Guarda as tuas cartas da juventude! Ou, se te n�o apraz o chap�u de tres bicos, empregarei a locu��o de um velho marujo, familiar da casa do Cotrim; direi que, se guardares as cartas da juventude, achar�s occasi�o de �cantar uma saudade.� Parece que os nossos marujos d�o este nome �s cantigas de terra, entoadas no alto mar. Como express�o poetica, � o que se p�de exigir mais triste. CAPITULO CXVII O Humanitismo Duas for�as, por�m, al�m de uma terceira, compelliam-me a tornar � vida agitada do costume: Sabina e o Quincas Borba. Minha irm� encaminhou a candidatura conjugal de Nh�-lol� de um modo verdadeiramente impetuoso. Quando dei por mim estava com a mo�a quasi nos bra�os. Quanto ao Quincas Borba, expoz-me emfim o Humanitismo, systema de philosophia destinado a arruinar todos os demais systemas. --Humanitas, dizia elle, o principio das cousas, n�o � outro sen�o o mesmo homem repartido por todos os homens. Conta tres phases Humanitas; a _statica_, anterior a toda a crea��o; a _expansiva_, come�o das cousas; a _dispersiva_, apparecimento do homem; e contar� mais uma, a _contractiva_, absorp��o do homem e das cousas. A _expans�o_, iniciando o universo, suggeriu a Humanitas o desejo de o gozar, e dahi a _dispers�o_, que n�o � mais do que a multiplica��o personificada da substancia original. Como me n�o apparecesse assaz clara esta exposi��o, o Quincas Borba desenvolveu-a de um modo profundo, fazendo notar as grandes linhas do systema. Explicou-me que, por um lado, o Humanitismo ligava-se ao Brahmanismo, a saber, na distribui��o dos homens pelas differentes partes do corpo de Humanitas; mas aquillo que na religi�o indiana tinha apenas uma estreita significa��o theologica e politica, era no Humanitismo a grande lei do valor pessoal. Assim, descender do peito ou dos rins de Humanitas, isto �, ser _um forte_, n�o era o mesmo que descender dos cabellos ou da ponta do nariz. Dahi a necessidade de cultivar e temperar o musculo. Hercules ou Herakles n�o foi sen�o um symbolo antecipado do Humanitismo. Neste ponto o Quincas Borba ponderou que o paganismo poderia ter chegado � verdade, se se n�o houvesse amesquinhado com a parte galante dos seus mythos. Nada disso acontecer� com o Humanitismo. Nesta egreja nova n�o ha aventuras faceis, nem quedas, nem tristezas, nem alegrias pueris. O amor, por exemplo, � um sacerdocio, a reproduc��o um ritual. Como a vida � o maior beneficio do universo, e n�o ha mendigo que n�o prefira a miseria � morte (o que � um delicioso influxo de Humanitas), segue-se que a transmiss�o da vida, longe de ser uma occasi�o de galanteio, � a hora suprema da missa espiritual. Porquanto, verdadeiramente ha s� uma desgra�a: � n�o nascer. --Imagina, por exemplo, que eu n�o tinha nascido, continuou o Quincas Borba; � positivo que n�o teria agora o prazer de conversar comtigo, comer esta batata, ir ao theatro, e para tudo dizer n'uma s� palavra: viver. Nota que eu n�o fa�o do homem um simples vehiculo de Humanitas; n�o, elle � ao mesmo tempo vehiculo, cocheiro e passageiro; elle � o proprio Humanitas reduzido; dahi a necessidade de adorar-se a si proprio. Queres uma prova da superioridade do meu systema? Contempla a inveja. N�o ha moralista grego ou turco, christ�o ou mussulmano, que n�o troveje contra o sentimento da inveja. O accordo � universal, desde os campos da Idum�a at� o alto da Tijuca. Ora bem; abre m�o dos velhos preconceitos, esquece as rhetoricas rafadas, e estuda a inveja, esse sentimento t�o subtil e t�o nobre. Sendo cada homem uma reduc��o de Humanitas, � claro que nenhum homem � fundamentalmente opposto a outro homem, quaesquer que sejam as apparencias contrarias. Assim, por exemplo, o algoz que executa o condemnado p�de excitar o v�o clamor dos poetas; mas substancialmente � Humanitas que corrige em Humanitas uma infrac��o da lei de Humanitas. O mesmo direi do individuo que estripa a outro; � uma manifesta��o da for�a de Humanitas. Nada obsta (e ha exemplos) que elle seja egualmente estripado. Si entendeste bem, facilmente comprehender�s que a inveja n�o � sen�o uma admira��o que luta, e sendo a luta a grande func��o do genero humano, todos os sentimentos bellicosos s�o os mais adequados � sua felicidade. Dahi vem que a inveja � uma virtude. Para que negal-o? eu estava estupefacto. A clareza da exposi��o, a logica dos principios, o rigor das consequencias, tudo isso parecia superiormente grande, e foi-me preciso suspender a conversa por alguns minutos, em quanto digeria a philosophia nova. O Quincas Borba mal podia encobrir a satisfa��o do triumpho. Tinha uma aza de frango no prato, e trincava-a com philosophica serenidade. Eu fiz-lhe ainda alguma objec��es, mas t�o frouxas, que elle n�o gastou muito tempo em destruil-as. --Para entender bem o meu systema, concluiu elle, importa n�o esquecer nunca o principio universal, repartido e resumido em cada homem. Olha: a guerra, que parece uma calamidade, � uma opera��o conveniente, como se dissessemos o estalar dos dedos de Humanitas; a fome (e elle chupava philosophicamente a aza do frango), a fome � uma prova a que Humanitas submette a propria viscera. Mas eu n�o quero outro documento da sublimidade do meu systema, sen�o este mesmo frango. Nutriu-se de milho, que foi plantado por um africano, supponhamos, importado de Angola. Nasceu esse africano, cresceu, foi vendido um navio o trouxe, um navio construido de madeira cortada no matto por dez ou doze homens, levado por velas, que oito ou dez homens teceram, sem contar a cordoalha e outras partes do apparelho nautico. Assim, este frango, que eu almocei agora mesmo, � o resultado de uma multid�o de esfor�os e lutas, executados com o unico fim de dar mate ao meu appetite. Entre o queijo e o caf�, demonstrou-me o Quincas Borba que o seu systema era a destrui��o da d�r. A d�r, segundo o Humanitismo, � uma pura illus�o. Quando a crian�a � amea�ada por um p�u, antes mesmo de ter sido espancada, fecha os olhos e treme; essa _predisposi��o_ � que constitue a base da illus�o humana, herdada e transmittida. N�o basta certamente a adop��o do systema para acabar logo com a d�r; mas � indispensavel; o resto � a natural evolu��o das cousas. Uma vez que o homem se compenetre bem de que elle � o proprio Humanitas, n�o tem mais do que remontar o pensamento � substancia original para obstar qualquer sensa��o dolorosa. A evolu��o por�m � t�o profunda, que mal se lhe podem assignar alguns milhares de annos. O Quincas Borba leu-me dahi a dias a sua grande obra. Eram quatro volumes manuscriptos, de cem paginas cada um, com letra miuda e cita��es latinas. O ultimo volume compunha-se de um tratado politico, fundado no Humanitismo; era talvez a parte mais enfadonha do systema, posto que concebida com um formidavel rigor de logica. Reorganisada a sociedade pelo methodo delle, nem por isso ficavam eliminadas a guerra, a insurrei��o, o simples murro, a facada anonyma, a miseria, a fome, as doen�as; mas sendo esses suppostos flagellos verdadeiros equivocos do entendimento, porque n�o passariam de movimentos externos da substancia interior, destinados a n�o influir sobre o homem, sen�o como simples quebra da monotonia universal, claro estava que a sua existencia n�o impediria a felicidade humana. Mas ainda quando taes flagellos (o que era radicalmente falso) correspondessem no futuro � concep��o acanhada de antigos tempos, nem por isso ficava destruido o systema, e por dous motivos: 1.� porque sendo Humanitas a substancia creadora e absoluta, cada individuo deveria achar a maior delicia do mundo em sacrificar-se ao principio de que descende; 2.� porque, ainda assim, n�o diminuiria o poder espiritual do homem sobre a terra, inventada unicamente para seu recreio delle, como as estrellas, as brisas, as tamaras e o rhuibarbo. Pangloss, dizia-me elle ao fechar o livro, n�o era t�o tolo como o pintou Voltaire. CAPITULO CXVIII A terceira for�a A terceira for�a (Veja a primeira linha do capitulo passado) a terceira for�a que me chamava ao bulicio era a impaciencia de luzir, e, sobretudo, a incapacidade de viver s�. A multid�o attrahia-me, o applauso namorava-me, a gala, o tumulto, o rufo, eram outros tantos objectos de seduc��o. Se a id�a do emplasto me tem apparecido nesse tempo, quem sabe? n�o teria morrido logo e estaria celebre. Mas o emplasto n�o veiu. Veiu o desejo de agitar-me em alguma cousa, com alguma cousa e por alguma cousa. _Tout notre mal vient de ne pouvoir �tre seuls._ Esta maxima de la Bruy�re sempre me pareceu um grande disparate. N�o ha duvida que a sociabilidade � a primeira virtude dos homens, a segunda � a curiosidade, a terceira � a pontualidade dos pagamentos, a quarta o valor militar, e assim por diante. CAPITULO CXIX Parenthesis (Haver� uma critica t�o perversa que possa attribuir a minha opini�o sobre la Bruy�re � inveja das suas maximas? Eu aparo desde j� esse golpe, transcrevendo algumas das que compuz por aquelle tempo, e rasguei logo depois, por n�o me parecerem dignas do pr�lo. Fil-as n'um periodo em que a flor amarella do capitulo XXV torn�ra a abrir; eram bocejos de enfado. E se n�o vejam: Supporta-se com paci�ncia a colica do proximo. Matamos o tempo; o tempo nos enterra. Um cocheiro philosopho costumava dizer que o gosto da carruagem seria diminuto, se todos andassem de carruagem. Cr� em ti; mas nem sempre duvides dos outros. N�o se comprehende que um botocudo fure o bei�o para enfeital-o com um peda�o de p�u. Esta reflex�o � de um joalheiro. N�o te irrites se te pagarem mal um beneficio: antes cair das nuvens, que de um terceiro andar.) CAPITULO CXX Compelle intrare --N�o, senhor, agora quer voc� queira, quer n�o, ha de casar, disse-me Sabina. Que bello futuro! Um solteir�o sem filhos. Sem filhos! Eis o dardo secreto. A id�a de ter filhos deu-me um sobresalto; percorreu-me outra vez o fluido mysterioso. Sim, cumpria ser pae. A vida celibata podia ter certas vantagens proprias, mas seriam tenues, e compradas a troco da solid�o. Sem filhos! N�o; impossivel. Dispuz-me a aceitar tudo, ainda mesmo a allian�a do Damasceno. Sem filhos! Como j� ent�o depositasse grande confian�a no Quincas Borba, fui ter com elle e expuz-lhe os movimentos internos da minha paternidade. O philosopho ouviu-me com alvoro�o; declarou-me que Humanitas se agitava em meu seio; animou-me ao casamento; ponderou que eram mais alguns convivas que batiam � porta, etc. _Compelle intrare_, como dizia Jesus. E n�o me deixou sem provar que o apologo evangelico n�o era mais do que um prenuncio do Humanitismo, erradamente interpretado pelos padres. CAPITULO CXXI Morro abaixo No fim de tres mezes, ia tudo � maravilha. O fluido, Sabina, os olhos da mo�a, os desejos do pae, eram outros tantos impulsos que me levavam ao matrimonio. A lembran�a de Virgilia apparecia de quando em quando, � porta; e com ella um diabo negro, que me mettia � cara um espelho, no qual eu via ao longe Virgilia desfeita em lagrimas; mas outro diabo vinha, c�r de rosa, com outro espelho, em que se reflectia a figura de Nh�-lol�, terna, luminosa, angelica. N�o falo dos annos. Eu n�o os sentia; acrescentarei at� que os deit�ra f�ra, certo domingo, em que fui � missa na capella do Livramento. Como o Damasceno morava nos Cajueiros, eu acompanhava-os muitas vezes � missa. O morro estava ainda n� de habita��es, salvo o velho palacete do alto, onde era a capella. Pois um domingo, ao descer com Nh�-lol� pelo bra�o, n�o sei que phenomeno se deu que fui deixando aqui dous annos, alli quatro, logo adiante cinco, de maneira que, quando cheguei abaixo, estava com vinte annos apenas, t�o l�pidos como elles tinham sido. Agora, se querem saber em que circumstancias se deu o phenomeno, basta-lhes ler este capitulo at� o fim. Vinhamos da missa, ella, o pae e eu. No meio do morro ach�mos um grupo de homens. O Damasceno, que vinha ao p� de n�s, percebeu o que era e adiantou-se alvoro�ado; n�s fomos atraz delle. E vimos isto: homens de todas as edades, tamanhos e c�res, uns em mangas de camisa, outros de jaqueta, outros mettidos em sobrecasacas esfrangalhadas; attitudes diversas, uns de c�caras, outros com as m�os apoiadas nos joelhos, estes sentados em pedras, aquelles encostados ao muro; e todos com os olhos fixos no centro, e as almas debru�adas das pupillas. --Que �? perguntou-me Nh�-lol�. Fiz-lhe signal que se calasse; abri subtilmente caminho, e todos me foram cedendo espa�o, sem que positivamente ninguem me visse. O centro tinha-lhes atado os olhos. Era uma briga de gallos. Vi os dous contendores, dous gallos de espor�o agudo, olho de fogo e bico afiado. Ambos agitavam as cristas em sangue; o peito de um e de outro estava desplumado e rubro; invadia-os o can�asso. Mas lutavam ainda assim, olhos fitos nos olhos, bico abaixo, bico acima, golpe deste, golpe daquelle, vibrantes e raivosos. O Damasceno n�o sabia mais de nada; o espectaculo eliminou para elle todo o universo. Em v�o lhe disse que era tempo de descer: elle n�o respondia, n�o ouvia, concentrara-se no duello. A briga de gallos era uma de suas paix�es. Foi nessa occasi�o que Nh�-lol� me puxou brandamente pelo bra�o, dizendo que nos fossemos embora. Aceitei o conselho e vim com ella por alli abaixo. J� disse que o morro era ent�o deshabitado; disse-lhes tambem que vinhamos da missa, e n�o lhes tendo dito que chovia, era claro que fazia bom tempo, um sol delicioso. E forte. T�o forte que eu abri logo o guarda-sol, segurei-o pelo centro do cabo, e inclinei-o por modo que ajuntei uma pagina � philosophia do Quincas Borba: Humanitas osculou Humanitas... Foi assim que os annos me vieram caindo pelo morro abaixo. Ao sop� detivemo-nos alguns minutos; � espera do Damasceno; elle veiu dahi a pouco, rodeado dos apostadores, a commentar com elles a briga. Um destes, thesoureiro das apostas, distribuia um velho ma�o de notas de dez tost�es, que os triumphadores recebiam duplamente alegres. Quanto aos gallos vinham sobra�ados pelo respectivo dono. Um delles trazia a crista t�o comida e ensanguentada, que vi logo nelle o vencido; mas era engano,--o vencido era o outro, que n�o trazia crista nenhuma. Ambos tinham o bico aberto, respirando a custo, esfalfados. Os apostadores, ao contrario, vinham alegres, sem embargo das fortes commo��es da luta; biographavam os contendores, relembravam as proezas de ambos. Eu fui andando, vexado; Nh�-lol�, vexadissima. CAPITULO CXXII Uma inten��o mui fina O que vexava a Nh�-lol� era o pae. A facilidade com que elle se mett�ra com os apostadores punha em relevo antigos costumes e affinidades sociaes; e Nh�-lol� cheg�ra a temer que tal sogro me parecesse indigno. Era notavel a differen�a que ella fazia de si mesma; estudava-se e estudava-me. A vida elegante e polida attrahia-a, principalmente porque lhe parecia o meio mais seguro de ajustar as nossas pessoas. Nh�-lol� observava, imitava, adivinhava; ao mesmo tempo dava-se ao esfor�o de mascarar a inferioridade da familia. Naquelle dia, por�m, a manifesta��o do pae foi tamanha que a entristeceu grandemente. Eu busquei ent�o divertil-a do assumpto, dizendo-lhe muitas chan�as e motes de bom tom; v�os esfor�os, que n�o a alegravam mais. Era t�o profundo o abatimento, t�o expressivo o desanimo, que eu cheguei a attribuir a Nh�-lol� a inten��o positiva de separar, no meu espirito, a sua causa da causa do pae. Este sentimento pareceu-me de grande eleva��o; era uma affinidade mais entre n�s. --N�o ha remedio, disse eu commigo, vou arrancar esta flor a este pantano. CAPITULO CXXIII O verdadeiro Cotrim N�o obstante os meus quarenta e tantos annos, como eu amasse a harmonia da familia, entendi n�o tratar o casamento sem primeiro falar ao Cotrim. Elle ouviu-me e respondeu-me seriamente que n�o tinha opini�o em negocio de parentes seus. Podiam suppor-lhe algum interesse, se acaso louvasse, as raras prendas de Nh�-lol�; por isso calava-se. Mais: estava certo de que a sobrinha nutria por mim verdadeira paix�o, mas se ella o consultasse, o seu conselho seria negativo. N�o era levado por nenhum odio; apreciava as minhas b�as qualidades,--n�o se fartava de as elogiar, como era de justi�a; e pelo que respeita a Nh�-lol�, n�o chegaria j�mais a negar que era noiva excellente; mas dahi a aconselhar o casamento ia um abysmo. --Lavo inteiramente as m�os, concluiu elle. --Mas voc� achava outro dia que eu devia casar quanto antes... --Isso � outro negocio. Acho que � indispensavel casar, principalmente tendo ambi��es politicas. Saiba que na politica o celibato � uma r�mora. Agora, quanto � noiva, n�o posso ter voto, n�o quero, n�o devo, n�o � de minha honra. Parece-me que Sabina foi al�m, fazendo-lhe certas confidencias, segundo me disse; mas em todo caso ella n�o � tia carnal de Nh�-lol�, como eu. Olhe... mas n�o... n�o digo... --Diga. --N�o; n�o digo nada. Talvez pare�a excessivo o escrupulo do Cotrim, a quem n�o souber que elle possuia um caracter ferozmente honrado. Eu mesmo fui injusto com elle durante os annos que se seguiram ao inventario do meu pae. Reconhe�o que era um modelo. Arguiam-n'o de avareza, e cuido que tinham raz�o; mas a avareza � apenas a exagera��o de uma virtude, e as virtudes devem ser como os or�amentos: melhor � o saldo que o _deficit._ Como era muito secco de maneiras tinha inimigos, que chegavam a accusal-o de barbaro. O unico facto allegado neste particular era o de mandar com frequencia escravos ao calabou�o, donde elles desciam a escorrer sangue; mas, al�m de que elle s� mandava os perversos e os fuj�es, occorre que, tendo longamente contrabandeado em escravos, habituara-se de certo modo ao trato um pouco mais duro que esse genero de negocio requeria, e n�o se p�de honestamente attribuir � indole original de um homem o que � puro effeito de rela��es sociaes. A prova de que o Cotrim tinha sentimentos pios encontrava-se no seu amor aos filhos, e na d�r que padeceu quando lhe morreu S�ra, dalli a alguns mezes; prova irrefutavel, acho eu; e n�o unica. Era thesoureiro de uma confraria, e irm�o de varias irmandades, e at� irm�o remido de uma destas, o que n�o se coaduna muito com a reputa��o da avareza; verdade � que o beneficio n�o ca�ra no ch�o: a irmandade (de que elle f�ra juiz,) mandara-lhe tirar o retrato a oleo. N�o era perfeito, de certo; tinha, por exemplo, o sestro de mandar para os jornaes a noticia de um ou outro beneficio que praticava,--sestro reprehensivel ou n�o louvavel, concordo; mas elle desculpava-se dizendo que as b�as ac��es eram contagiosas, quando publicas; raz�o a que se n�o pode negar algum peso. Creio mesmo (e nisto fa�o o seu maior elogio) que elle n�o praticava, de quando em quando, esses beneficios sen�o com o fim de espertar a philantropia dos outros; e se tal era o intuito, for�a � confessar que a publicidade tornava-se uma condi��o _sine qua non._ Em summa, poderia dever algumas atten��es, mas n�o devia um real a ninguem. CAPIULO CXXIV V� de intermedio Que ha entre a vida e a morte? Uma curta ponte. N�o obstante, se eu n�o compuzesse este capitulo, padeceria o leitor um forte abalo, assaz damnoso ao effeito do livro. Saltar de um retrato a um epitaphio, p�de ser real e commum; o leitor, entretanto, n�o se refugia no livro, sen�o para escapar � vida. N�o digo que este pensamento seja meu; digo que ha nelle uma dose de verdade, e que, ao menos, a f�rma � pittoresca. E repito: n�o � meu. V� de intermedio, e contemos a este proposito uma anecdota. Foi no tempo da minha vida parlamentar; eramos cinco; falavamos de cousas e lousas, e aconteceu tocar nos negocios do Rio da Prata. Ent�o, disse um:--O governo n�o deve esquecer que o dinheiro � o nervo da guerra. Ao que eu redargui que n�o, que o nervo da guerra eram os bons soldados. Um dos ouvintes co�ou o nariz, outro consultou o relogio, o terceiro tamborilou sobre o joelho, o quarto deu algumas pernadas pela sala, o quinto era eu. Mas, continuando a falar, ponderei que essa id�a, inteiramente justa, n�o era minha, e sim de Machiavelli; circumstancia que levou o primeiro a n�o co�ar o nariz, o segundo a n�o consultar o relogio, o terceiro a n�o tamborilar sobre o joelho, e o quarto a n�o dar pernadas; e todos me rodearam, e me pediram que repetisse o dito, e repeti, e elles extasiavam-se, e batiam com a cabe�a approvando, saboreando, decorando. O que estimei, porque fui sempre amador de id�as justas. Mas vamos ao epitaphio. CAPITULO CXXV Epitaphio AQUI JAZ D. EULALIA DAMASCENA DE BRITO MORTA AOS DEZENOVE ANNOS DE IDADE ORAI POR ELLA! CAPITULO CXXVI Desconsola��o O epitaphio diz tudo. Vale mais do que se lhes narrasse a molestia de Nh�-lol�, a morte, o desespero da familia, o enterro. Ficam sabendo que morreu; accrescentarei que foi por occasi�o da primeira entrada da febre amarella. N�o digo mais nada, a n�o ser que a acompanhei at� o ultimo jazigo, e me despedi triste, mas sem lagrimas. Conclui que talvez n�o a amasse dev�ras. Vejam agora a que excessos p�de levar uma inadvertencia; doeu-me um pouco a cegueira da epidemia que, matando � direita e � esquerda, levou tambem uma jovem dama, que tinha de ser minha mulher; e n�o cheguei a entender a necessidade da epidemia, e menos ainda daquella morte. Creio at� que esta me pareceu ainda mais absurda que todas as outras mortes. O Quincas Borba, por�m, explicou-me que as epidemias eram uteis � especie, embora desastrosas para uma certa por��o de indiv�duos; e fez-me notar que, por mais horrendo que fosse o espectaculo, havia uma vantagem de muito peso: a sobrevivencia do maior numero. Chegou a perguntar-me se, no meio do luto geral, n�o sentia eu algum secreto encanto em ter escapado �s garras da peste; mas esta pergunta era t�o insensata, que ficou sem resposta. Se n�o contei a morte, n�o conto igualmente a missa do setimo dia. A tristeza do Damasceno era profunda; esse pobre homem parecia uma ruina. Quinze dias depois estive com elle; continuava inconsolavel, e dizia que a dor grande com que Deus o castig�ra fora ainda augmentada com a que lhe infligiram os homens. N�o me disse mais nada. Tres semanas depois tornou ao assumpto, e ent�o confessou-me que, no no meio do desastre irreparavel, quizera ter a consola��o da presen�a dos amigos. Doze pessoas apenas, e tres quartas partes amigos do Cotrim, acompanharam � cova o cadaver de sua querida filha. E elle fizera expedir oitenta convites. Ponderei-lhe que as perdas eram t�o geraes que bem se podia desculpar essa desatten��o apparente. O Damasceno abanava a cabe�a de um modo incr�dulo e triste. --Qual! gemia elle, desampararam-me. O Cotrim, que estava presente: --Vieram os que dev�ras se interessam por voc� � por n�s. Os oitenta viriam por formalidade, falariam da inercia do governo, das panac�as dos boticarios, do pre�o das casas, ou uns dos outros... O Damasceno ouviu calado, abanou outra vez a cabe�a, e suspirou: --Mas viessem! CAPITULO CXXVII Formalidade Grande cousa � haver recebido do ceu uma particula da sabedoria, o dom de achar as rela��es das cousas, a faculdade de as comparar e o talento de concluir! Eu tive essa distinc��o psychica; eu a agrade�o ainda agora do fundo do meu sepulchro. De facto, o homem vulgar que ouvisse a ultima palavra do Damasceno, n�o se lembraria della, quando, tempos depois, houvesse de olhar para uma gravura representando seis damas turcas. Pois eu lembrei-me. Eram seis damas de Constantinopla,--modernas,--em trajos de rua, com a cara tapada, n�o tapada � outra maneira, com um espesso panno que as cobrisse dev�ras, mas com um veu tenuissimo, que simulava descobrir somente os olhos, e na realidade descobria a cara inteira. E eu achei gra�a a essa esperteza da faceirice musulmana, que assim esconde o rosto,--e cumpre o uso,--mas n�o o esconde,--e divulga a belleza. Apparentemente, nada ha entre as damas turcas e o Damasceno; mas se tu �s um espirito profundo e penetrante (e duvido muito que me negues isso), comprehender�s que, tanto n'um como n'outro caso, surge ahi a orelha de uma rigida e meiga companheira do homem social... Amavel Formalidade, tu �s, sim, o bord�o da vida, o balsamo dos cora��es, a medianeira entre os homens, o vinculo da terra e do ceu; tu enxugas as lagrimas de um pae, tu captas a indulgencia de um Propheta; e se a d�r adormece, e se a consciencia se accommoda, a quem, sen�o a ti, dever�o esse immenso beneficio? A estima que passa de chapeu na cabe�a n�o diz nada � alma; mas a indifferen�a que corteja deixa-lhe uma deleitosa impress�o. A raz�o � que, ao contrario de uma velha formula absurda, n�o � a lettra que mata; a lettra d� vida; o espirito � que � objecto de controversia, de duvida, de interpreta��o, e conseguintemente de luta e de morte. Vive tu, amavel Formalidade, para socego do Damasceno e gloria de Muhammed. CAPITULO CXXVIII Na camara E notai bem que eu vi a gravura turca, dous annos depois das palavras de Damasceno, e vi-a na camara dos deputados, em meio de grande borborinho, emquanto um deputado discutia um parecer da commiss�o de or�amento, sendo eu tambem deputado. Para quem ha lido este livro � escusado encarecer a minha satisfa��o, e para os outros � igualmente inutil. Era deputado, e vi a gravura turca, recostado na minha cadeira, entre um collega, que contava uma anecdota, e outro, que tirava a lapis, nas costas de uma sobrecarta, o perfil do orador. O orador era o Lobo Neves. A onda da vida trouxe-nos � mesma praia, como duas botelhas de naufragos, elle contendo o seu resentimento, eu devendo conter o meu remorso; e empr�go esta f�rma suspensiva, dubitativa ou condicional, para o fim de dizer que effectivamente n�o continha nada, a n�o ser a ambi��o de ser ministro. CAPITULO CXXIX Sem remorsos N�o tinha remorsos. Se possuisse os apparelhos proprios, incluia neste livro uma pagina de chimica, porque havia de decompor o remorso at� os mais simples elementos, com o fim de saber, de um modo positivo e concludente, por que raz�o Achilles passea � roda de Troya o cadaver do adversario, e lady Macbeth passea � volta da sala a sua mancha de sangue. Mas eu n�o tenho apparelhos chimicos, como n�o tinha remorsos; tinha vontade de ser ministro de Estado. Comtudo, se hei de acabar este capitulo, direi que n�o quizera ser Achilles nem lady Macbeth; e que a ser alguma cousa, antes Achilles, antes passear ovante o cadaver do que a mancha; ouvem-se no fim as supplicas de Priamo, e ganha-se uma bonita reputa��o militar e litteraria. Eu n�o ouvia as supplicas de Priamo, mas o discurso do Lobo Neves, e n�o tinha remorsos. CAPITULO CXXX Para intercalar no cap. CXXIX A primeira vez que pude falar a Virgilia, depois da presidencia, foi n'um baile em 1855. Trazia um soberbo vestido de gorgor�o azul, e ostentava �s luzes o mesmo par de hombros de outro tempo. N�o era a frescura da primeira edade; ao contrario; mas ainda estava formosa, de uma formosura outoni�a, real�ada pela noite. Lembra-me que falamos muito; e lembra-me que n�o alludimos a cousa nenhuma do passado. Subentendia-se tudo. Um dito remoto, vago, ou ent�o um olhar, e mais cousa nenhuma. Pouco depois retirou-se; eu fui vel-a descer as escadas, e n�o sei por que phenomeno de ventriloquismo cerebral (perdoem-me os philologos essa phrase barbara), murmurei commigo esta palavra profundamente retrospectiva: --Magnifica! Conv�m intercalar este capitulo entre a primeira ora��o e a segunda do cap. CXXIX. CAPITULO CXXXI De uma calumnia Como eu acabava de dizer aquillo, pelo processo ventriloco-cerebral,--o que era simples opini�o e n�o remorso,--senti que alguem me punha a m�o no hombro. Voltei-me; era um antigo companheiro, official de marinha, jovial, um pouco despejado de maneiras. Elle sorriu maliciosamente, e disse-me: --Seu magan�o! Recorda��es do passado, hein? --Viva o passado! --Voc� naturalmente foi reintegrado no emprego. --Salta, pelintra! disse eu, amea�ando-o com o dedo. Confesso que este dialogo era uma indiscri��o,--principalmente a ultima replica. E com tanto maior prazer o confesso, quanto que as mulheres � que tem fama de indiscretas, e n�o quero acabar o livro sem rectificar essa no��o do espirito humano. Em pontos de aventura amorosa, achei homens que sorriam, ou negavam a custo, de um modo frio, monosyllabico, etc., ao passo que as parceiras n�o davam por si, e jurariam aos Santos Evangelhos, que era tudo uma calumnia. A raz�o desta differen�a � que a mulher (salva a hypothese do cap. CI e outras) entrega-se por amor, ou seja o amor-paix�o de Stendhal, ou o puramente physico de algumas damas romanas, por exemplo, ou polynesias, laponias, cafres, e p�de ser que outras ra�as civilisadas; mas o homem,--falo do homem de uma sociedade culta e elegante,--o homem conjuga a sua vaidade ao outro sentimento. Alem disso (e refiro-me sempre aos casos defesos), a mulher, quando ama outro homem, parece-lhe que mente a um dever, e portanto tem de dissimular com arte maior, tem de refinar a aleivosia; ao passo que o homem, sentindo-se causa da infrac��o e vencedor de outro homem, fica legitimamente orgulhoso, e logo passa a outro sentimento menos rispido e menos secreto,--essa meiga fatuidade, que � a transpira��o luminosa do merito. Mas seja ou n�o verdadeira a minha explica��o, basta-me deixar escripto nesta pagina, para uso dos seculos, que a indiscri��o das mulheres � uma burla inventada pelos homens; em amor, pelo menos, elas s�o um verdadeiro sepulchro. Perdem-se muita vez por desastradas, por inquietas, por n�o saberem resistir aos gestos, aos olhares; e � por isso que uma grande dama e fino espirito, a rainha de Navarra, empregou algures esta metaphora para dizer, que toda a aventura amorosa vinha a descobrir-se por for�a, mais tarde ou mais cedo: �n�o ha cachorrinho t�o adestrado, que alfim lhe n�o ou�amos o latir.� CAPITULO CXXXII Que n�o � serio Citando o dito da rainha de Navarra, occorre-me que entre o nosso povo, quando uma pessoa v� outra pessoa arrufada, costuma perguntar-lhe: �Gentes, quem matou seus cachorrinhos?� como se dissesse:--�quem lhe levou os amores, as aventuras secretas, etc.� Mas este capitulo n�o � serio. CAPITULO CXXXIII O principio de Helvetius Estavamos ao ponto era que o official de marinha me arrancou a confiss�o dos amores de Virgilia; e aqui emendo eu o principio de Helvetius,--ou, por outra, explico-o. O meu interesse era calar; confirmar a suspeita de uma cousa antiga f�ra provocar algum odio supitado, dar origem a um escandalo, quando menos adquirir a reputa��o de indiscreto. Era esse o interesse; e entendendo-se o principio de Helvetius de um modo superficial, isso � o que devia ter feito. Mas eu j� dei o motivo da indiscri��o masculina: antes daquelle interesse de _seguran�a_, havia outro, o do _desvanecimento_, que � mais intimo, mais immediato: o primeiro era reflexivo, suppunha um syllogismo anterior; o segundo era espontaneo, instintivo, vinha das entranhas do sugeito; finalmente, o primeiro tinha o effeito remoto, o segundo proximo. Conclus�o: o principio de Helvetius � verdadeiro no meu caso;--a diferen�a � que n�o era o interesse apparente, mas o recondito. CAPITULO CXXXIV Cincoenta annos N�o lhes disse ainda,--mas digo-o agora,--que quando Virgilia descia a escada, e o official de marinha me tocava no hombro, tinha eu cincoenta annos. Era portanto a minha vida que descia pela escada abaixo,--ou a melhor parte, ao menos, uma parte cheia de prazeres, de agita��es, de sustos,--capeada de dissimula��o e duplicidade,--mas emfim a melhor, se devemos falar a linguagem usual. Si, por�m, empregarmos outra mais sublime, a melhor parte foi a restante, como eu terei a honra de lhes dizer nas poucas paginas deste livro. Cincoenta annos! N�o era preciso confessal-o. J� se vae sentindo que o meu estylo n�o � t�o lesto como nos primeiros dias. Naquella occasi�o, cessado o dialogo com o official de marinha, que enfiou a capa e saiu, confesso que fiquei um pouco triste. Voltei � sala, lembrou-me dansar uma polka, embriagar-me das luzes, das flores, dos crystaes, dos olhos bonitos, e do borburinho surdo e ligeiro das conversas particulares. E n�o me arrependo; remocei. Mas, meia hora depois, quando me retirei do baile, �s quatro da manh�, o que � que fui achar no fundo do carro? Os meus cincoenta annos. L� estavam elles os teimosos, n�o tolhidos de frio, nem rheumaticos,--mas cochillando a sua fadiga, um pouco cobi�osos de cama e de repouso. Ent�o,--e vejam at� que ponto p�de ir a imagina��o de um homem, com somno,--ent�o pareceu-me ouvir de um morcego encarapitado no tejadilho:--Sr. Braz Cubas, a rejuvenescencia estava na sala, nos crystaes, nas luzes, nas sedas,--emfim, nos outros. CAPITULO CXXXV Oblivion E agora sinto que, se alguma dama tem seguido estas paginas, fecha o livro e n�o l� as restantes. Para ella extinguiu-se o interesse da minha vida, que era o amor. Cincoenta annos! N�o � ainda a invalidez, mais j� n�o � a frescura. Venham mais dez, e eu entenderei o que um inglez dizia, entenderei que �cousa � n�o achar j� quem se lembre de meus paes, e de que modo me ha de encarar o proprio ESQUECIMENTO.� Vae em versaletes esse nome. OBLIVION! Justo � que se dem todas as honras a um personagem t�o desprezado e t�o digno, conviva da ultima hora, mas certo. Sabe-o a dama que luziu na aurora do actual reinado; e mais dolorosamente a que ostentou suas gra�as em flor sob o ministerio Paran�, porque esta acha-se mais perto do triumpho, e sente j� que outras lhe tomaram o carro. Ent�o, se � digna de si mesma, n�o teima em espertar a lembran�a morta ou expirante; n�o busca no olhar de hoje a mesma sauda��o do olhar de hontem, quando eram outros os que encetavam a marcha da vida, de alma alegre e p� veloz. _Tempora mutantur._ E ella comprehender� que este turbilh�o � assim mesmo, leva as folhas do mato e os farrapos do caminho, sem excep��o nem piedade; e se tiver um pouco de philosophia, n�o invejar�, mas lastimar� as que lhe tomaram o carro, porque tambem ellas h�o de ser apeadas pelo estribeiro OBLIVION. Espectaculo, cujo fim � divertir o planeta Saturno, que anda muito aborrecido. CAPITULO CXXXVI Inutilidade Mas, ou muito me engano, ou acabo de escrever um capitulo in�til. CAPITULO CXXXVII A barretina E dahi, n�o; elle resume as reflex�es que fiz no dia seguinte ao Quincas Borba, accrescentando que me sentia acabrunhado, e mil outras cousas tristes. Mas esse philosopho, com o elevado tino de que dispunha, bradou-me que eu ia escorregando na ladeira fatal da melancolia. --Meu caro Braz Cubas, n�o te deixes vencer desses vapores. Que diacho! � preciso ser homem! ser forte! lutar! vencer! brilhar! influir! dominar! Cincoenta annos � a edade da sciencia e do governo. Animo, Braz Cubas; n�o me sejas palerma. Que tens tu com essa success�o de ruina a ruina ou de flor a flor? Trata de saborear a vida; e fica sabendo que a peor philosophia � a do choramigas que se deita � margem do rio para o fim de lastimar o curso incessante das aguas. O officio dellas � n�o parar nunca; accommoda-te com a lei, e trata de aproveital-a. Ve-se nas menores cousas o que vale a autoridade de um grande philosopho. As palavras do Quincas Borba tiveram o cond�o de sacudir o torpor moral e mental em que andava. Vamos l�; fa�amo-nos governo. Crel-o-eis, posteros? Eu n�o havia intervindo at� ent�o nos grandes debates. Cortejava a pasta por meio de rapap�s, ch�s, commiss�es e votos; e a pasta n�o vinha. Urgia apoderar-me da tribuna. Comecei de vagar. Tres dias depois, discutindo-se o or�amento da justi�a, aproveitei o ensejo para perguntar modestamente ao ministro se n�o julgava util diminuir a barretina da guarda nacional. N�o tinha vasto alcance o objecto da pergunta; mas ainda assim demonstrei que n�o era indigno das cogita��es de um homem de Estado; e citei Philopemen, que ordenou a substitui��o dos broqueis de suas tropas, que eram pequenos, por outros maiores, e bem assim as lan�as, que eram demasiado leves; facto que a historia n�o achou que desmentisse a gravidade de suas paginas. O tamanho das nossas barretinas estava pedindo um c�rte profundo, n�o s� por serem deselegantes, mas tambem por serem anti-hygienicas. Nas paradas, ao sol, o excesso do calor produzido por ellas podia ser fatal. Sendo certo que um dos preceitos de Hippocrates era trazer a cabe�a fresca, parecia cruel obrigar um cidad�o, por simples considera��o de uniforme, a arriscar a saude e a vida, e consequentemente o futuro da familia. A camara e o governo deviam lembrar-se que a guarda nacional era o anteparo da liberdade e da independencia, e que o cidad�o, chamado a um servi�o gratuito, frequente e penoso, tinha direito a que se lhe diminuisse o onus, decretando um uniforme leve e maneiro. Accrescia que a barretina, por seu peso, abatia a cabe�a dos cidad�os, e a patria precisava de cidad�os cuja fronte pudesse levantar-se altiva e serena diante do poder; e conclui com esta id�a: O chor�o, que inclina os seus galhos para a terra, � arvore de cemiterio; a palmeira, erecta e firme, � arvore do deserto, das pra�as e dos jardins. V�ria foi a impress�o deste discurso. Quanto � forma, ao rapto eloquente, � parte litteraria e philosophica, a opini�o foi s� uma; disseram-me todos que era completo, e que de uma barretina ninguem ainda conseguira tirar tantas id�as. Mas a parte politica foi considerada por muitos deploravel; alguns achavam o meu discurso um desastre parlamentar; emfim, vieram dizer-me que outros me davam j� em opposi��o, entrando nesse numero os opposicionistas da camara, que chegaram a insinuar a conveniencia de uma mo��o de desconfian�a. Repelli energicamente tal interpreta��o, que n�o era s� erronea, mas calumniosa, � vista da notoriedade com que eu sustentava o gabinete; accrescentei que a necessidade de diminuir a barretina, n�o era tamanha que n�o pudesse esperar alguns annos; e que, em todo caso, eu transigiria na extens�o do c�rte, contentando-me com tres quartos de polegada ou menos; emfim, dado mesmo que a minha id�a n�o fosse adoptada, bastava-me tel-a iniciado no parlamento. O Quincas Borba, por�m, n�o fez restric��o alguma. N�o sou homem politico, disse-me elle ao jantar; n�o sei se andaste bem ou mal; sei que fizeste um excellente discurso. E ent�o notou as partes mais salientes, as bellas imagens, os argumentos fortes, com esse comedimento de louvor que t�o bem fica a um grande philosopho; depois, tomou o assumpto � sua conta, e impugnou a barretina com tal for�a, com tamanha lucidez, que acabou convencendo-me effectivamente do seu perigo. CAPITULO CXXXVIII A um Critico Meu caro critico, Algumas paginas atraz, dizendo eu que tinha cincoenta annos, accrescentei: �J� se vae sentindo que o meu estylo n�o � t�o lesto como nos primeiros dias.� Talvez aches esta phrase incomprehensivel, sabendo-se o meu actual estado; mas eu chamo a tua atten��o para a subtileza daquelle pensamento. O que eu quero dizer n�o � que esteja agora mais velho do que quando comecei o livro. A morte n�o envelhece. Quero dizer, sim, que em cada phase da narra��o da minha vida experimento a sensa��o correspondente. Valha-me Deus! � preciso explicar tudo. CAPITULO CXXXIX De como n�o fui ministro de estado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . CAPITULO CXL Que explica o anterior Ha cousas que melhor se dizem calando; tal � a materia do capitulo anterior. Podem entendel-o os ambiciosos mallogrados. Se a paix�o do poder � a mais forte de todas, como alguns inculcam, imaginem o desespero, a d�r, o abatimento do dia em que perdi a cadeira da camara dos deputados. Iam-se-me as esperan�as todas; terminava a carreira politica. E notem que o Quincas Borba, por induc��es philosophicas que fez, achou que a minha ambi��o n�o era a paix�o verdadeira do poder, mas um capricho, um desejo de folgar. Na opini�o delle, este sentimento, n�o sendo mais profundo que o outro, amofina muito mais, porque or�a pelo amor que as mulheres tem �s rendas e toucados. Um Cromwell ou um Bonaparte, acrescentava elle, por isso mesmo que os queima a paix�o do poder, l� chegam � fina for�a, ou pela escada da direita, ou pela da esquerda. N�o era assim o meu sentimento; este, n�o tendo em si a mesma for�a, n�o tem a mesma certeza do resultado; e dahi a maior afflic��o, o maior desencanto, a maior tristeza. O meu sentimento, segundo o Humanitismo... --Vae para o diabo com o teu Humanitismo, interrompi-o; estou farto de philosophias que me n�o levam a cousa nenhuma. A dureza da interrup��o, tratando-se de tamanho philosopho, equivalia a um desacato; mas elle proprio desculpou a irrita��o com que lhe falei. Trouxeram-nos caf�; era uma hora da tarde, estavamos na minha sala de estudo, uma bella sala, que dava para o fundo da chacara, bons livros, objectos d'arte, um Voltaire entre elles, um Voltaire de bronze, que nessa occasi�o parecia accentuar o risinho de sarcasmo, com que me olhava, o ladr�o; cadeiras excellentes; f�ra, o sol, um grande sol, que o Quincas Borba, n�o sei se por chala�a ou poesia, chamou um dos ministros da natureza; corria um vento fresco, o ceu estava nitidamente azul. De cada janella,--eram trez--pendia uma gaiola com passaros, que chilreavam as suas operas rusticas. Tudo tinha a apparencia de uma conspira��o das cousas contra o homem: e, comquanto eu estivesse na _minha_ sala, olhando para a _minha_ chacara, sentado na _minha_ cadeira, ouvindo os _meus_ passaros, ao p� dos _meus_ livros, allumiado pelo _meu_ sol, n�o chegava a curar-me das saudades daquella outra cadeira, que n�o era minha. CAPITULO CXLI Os c�es --Mas, emfim, que pretendes fazer agora? perguntou-me o Quincas Borbas, indo p�r a chicara vazia no parapeito de uma das janellas. N�o sei; vou metter-me na Tijuca; fugir aos homens. Estou envergonhado, aborrecido. Tantos sonhos, meu caro Borba, tantos sonhos, e n�o sou nada. --Nada! interrompeu-me o Quincas Borba com um gesto de indigna��o. Para distrair-me, convidou-me a sair; saimos para os lados do Engenho Velho. Iamos a p�, philosophando as cousas. Nunca me hade esquecer o beneficio desse passeio, que me restituiu o socego e a for�a. A palavra daquelle grande homem era o cordial da sabedoria. Disse-me elle que eu n�o podia fugir ao combate; se me fechavam a tribuna, cumpria-me abrir um jornal. Chegou a usar uma express�o menos elevada, mostrando assim que a lingua philosophica podia, uma ou outra vez, retemperar-se no cal�o do povo. Funda um jornal, disse-me elle, e �desmancha toda esta egrejinha.� --Magnifica id�a! Vou fundar um jornal, vou escachal-os, vou... --Lutar. P�des escachal-os ou n�o; o essencial � que lutes. Vida � luta. Vida sem luta � um mar morto no centro do organismo universal. Dahi a pouco demos com uma briga de c�es; facto que aos olhos de um homem vulgar n�o teria valor. O Quincas Borba fez-me parar e observar os c�es. Eram dous. Notou que ao p� delles estava um osso, motivo da guerra, e n�o deixou de chamar a minha atten��o para a circumstancia de que o osso n�o tinha carne. Um simples osso n�. Os c�es mordiam-se, rosnavam, com o furor nos olhos... O Quincas Borba metteu a bengala debaixo do bra�o, encostou o queixo no cast�o, e parecia em extasis. --Que bello que isto �! dizia elle de quando em quando. Quiz arrancar-me dalli, mas n�o pude; elle estava arraigado ao ch�o, e s� continuou a andar, quando a briga cessou inteiramente, e um dos c�es, mordido e vencido, foi levar a sua fome a outra parte. Notei que fic�ra sinceramente alegre, posto contivesse a alegria, segundo convinha a um grande philosopho. Fez-me observar a belleza do espectaculo, relembrou o objecto da luta, concluiu que os c�es tinham fome; mas a priva��o do alimento era nada para os effeitos geraes da philosophia. Nem deixou de recordar que em algumas partes do globo o espectaculo � mais grandioso: as creaturas humanas � que disputam aos c�es os ossos e outros manjares menos appeteciveis; luta que se complica muito, porque entra em ac��o a intelligencia do homem, com todo o accumulo de sagacidade que lhe deram os seculos, etc. CAPITULO CXLII O pedido secreto Quanta cousa n'um minuete! como dizia o outro. Quanta cousa n'uma briga de c�es! Mas eu n�o era um discipulo servil ou medroso, que deixasse de fazer uma ou outra objec��o adequada. Andando, disse-lhe que tinha uma duvida; n�o estava bem certo da vantagem de disputar a comida aos c�es. Elle respondeu-me com excepcional brandura: --Disputai-a aos outros homens � mais logico, porque a condi��o dos contendores � a mesma, e leva o osso o que f�r mais forte. Mas porque n�o ser� um espectaculo grandioso disputal-o aos c�es? Voluntariamente, comem-se gafanhotos, como o Precursor, ou cousa peor, como Ezequiel; logo, o ruim � comivel; resta saber se � mais digno do homem disputal-o, por virtude de uma necessidade natural, ou preferil-o, para obedecer a uma exalta��o religiosa, isto �, modificavel, ao passo que a fome � eterna, como a vida e como a morte. Estavamos � porta de casa; deram-me uma carta, dizendo que vinha de uma senhora. Entramos; e o Quincas Borba, com a discri��o propria de um philosopho, foi ler a lombada dos livros de uma estante, emquanto eu lia a carta, que era de Virgilia: �Meu bom amigo, �D. Placida est� muito mal. Pe�o-lhe o favor de fazer alguma cousa por ella; mora no becco das Escadinhas; veja se alcan�a metei-a na Miseric�rdia. Sua amiga sincera, [signature] N�o era a letra fina e correcta de Virgilia, mas grossa e desegual; o V da assignatura n�o passava de um rabisco sem inten��o alphabetica; de maneira que, se a carta apparecesse, era mui difficil attribuir-lhe a autoria. Virei e revirei o papel. Pobre D. Placida! Mas eu tinha-lhe deixado os cinco contos da praia da Gamb�a, en�o podia comprehender que... --Vaes comprehender, disse o Quincas Borba, tirando um livro da estante. --O que? perguntei espantado. --Vaes comprehender que eu s� te disse a verdade. Pascal � um dos meus av�s espirituaes; e, �omquanto a minha philosophia valha mais que a delle, n�o posso negar que era um grande homem. Ora, que diz elle nesta pagina?--E, chap�u na cabe�a, bengala sobra�ada, apontava o logar com o dedo.--Que diz elle? Diz que o homem tem �uma grande vantagem sobre o resto do universo: sabe que morre, ao passo que o universo ignora-o absolutamente.� V�s? Logo, o homem que disputa o osso a um c�o tem sobre este a grande vantagem de saber que tem fome; e � isto que torna grandiosa a luta, como eu dizia. �Sabe que morre� � uma express�o profunda; creio todavia que � mais profunda a minha express�o: sabe que tem fome. Porquanto, o facto da morte limita, por assim dizer, o entendimento humano; a consciencia da extinc��o dura um breve instante e acaba para nunca mais, ao passo que a fome tem a vantagem de voltar, de prolongar o estado consciente. Parece-me (se n�o vae nisso alguma immodestia), que a f�rmula de Pascal � inferior � minha, sem todavia deixar de ser um grande pensamento, e Pascal um grande homem. CAPITULO CXLIII N�o vou Emquanto elle restituia o livro � estante, relia eu o bilhete. Ao jantar, vendo que eu falava pouco, mastigava sem acabar de engulir, fitava o canto da sala, a ponta da meza, um prato, uma cadeira, uma mosca invisivel, disse-me elle:--Tens alguma cousa; aposto que foi aquella carta?--Foi. Realmente, sentia-me aborrecido, incommodado, com o pedido de Virgilia. Tinha dado a D. Placida cinco contos de r�is; duvido muito que ninguem fosse mais generoso do que eu, nem tanto. Cinco contos! E que fizera delles? Naturalmente botou-os f�ra, comeu-os em grandes festas, e agora toca para a Misericordia, e eu que a leve! Morre-se em qualquer parte. Accresce que eu n�o sabia, ou n�o me lembrava do tal becco das Escadinhas; mas, pelo nome, parecia-me algum recanto estreito e escuro da cidade. Tinha de l� ir, chamar a atten��o dos visinhos, bater � porta, etc. Que massada! N�o vou. CAPITULO CXLIV Utilidade relativa Mas a noite, que � boa conselheira, ponderou que a cortezia mandava obedecer aos desejos da minha antiga dama. --Letras vencidas, urge pagal-as, disse eu ao levantar-me. Depois do almo�o fui � casa de D. Placida; achei um m�lho de ossos, envolto em molambos, estendido sobre um catre velho e nauseabundo; dei-lhe algum dinheiro. No dia seguinte fil-a transportar para a Misericordia, onde ella morreu uma semana depois. Minto: amanheceu morta; saiu da vida �s escondidas, tal qual entr�ra. Outra vez perguntei, a mim mesmo, como no cap. LXXV, se era para isto que o sachrist�o da S� e a doceira trouxeram D. Placida � luz, n'um momento de sympathia especifica. Mas adverti logo que, se n�o fosse D. Placida, talvez os meus amores com Virgilia tivessem sido interrompidos, ou immediatamente quebrados, em plena effervescencia; tal foi, portanto, a utilidade da vida de D. Placida. Utilidade relativa, convenho; mas que diacho ha absoluto nesse mundo? CAPITULO CXLV Simples repeti��o Quanto aos cinco contos, n�o vale a pena dizer que um canteiro da visinhan�a fingiu-se enamorado de D. Placida, logrou espertar-lhe os sentidos, ou a vaidade, e casou com ella; no fim de alguns mezes inventou um negocio, vendeu as apolices e fugiu com o dinheiro. N�o vale a pena. � o caso dos c�es do Quincas Borba. Simples repeti��o de um capitulo. CAPITULO CXLVI O programma Urgia fundar o jornal. Redigi o programma, que era uma applica��o politica do Humanitismo; somente, como o Quincas Borba n�o houvesse ainda publicado o livro, (que aperfei�oava de anno em anno) assentamos de lhe n�o fazer nenhuma referencia. O Quincas Borba exigiu apenas uma declara��o, autographa e reservada, de que alguns principios novos applicados � politica eram tirados do livro delle, ainda inedito. Era a fina fl�r dos programmas; promettia curar a sociedade, destruir os abusos, defender os s�os principios de liberdade e conserva��o; fazia um appello ao commercio e � lavoura; citava Guizot e Ledru-Rollin e acabava com esta amea�a, que o Quincas Borba achou mesquinha e local: �A nova doutrina que professamos ha de inevitavelmente derribar o actual ministerio.� Confesso que, nas circumstancias politicas da occasi�o, o programma pareceu-me uma obra-prima. A amea�a do fim, que o Quincas Borba achou mesquinha, demonstrei-lhe que era saturada do mais puro Humanitismo, e elle mesmo o confessou depois. Porquanto, o Humanitismo n�o excluia nada; as guerras de Napole�o e uma contenda de cabras eram, segundo a nossa doutrina, a mesma sublimidade, com a differen�a que os soldados de Napole�o sabiam que morriam, cousa que apparentemente n�o acontece �s cabras. Ora, eu n�o fazia mais do que applicar �s circumstancias a nossa f�rmula philosophica: Humanitas queria substituir Humanitas para consola��o de Humanitas. --Tu �s o meu discipulo amado, o meu califa, bradou o Quincas Borba, com uma nota de ternura, que at� ent�o lhe n�o ouvira. Posso dizer como o grande Muhammed: nem que venham agora contra mim o sol e a lua, n�o recuarei das minhas id�as. Cr�, meu caro Braz Cubas, que esta � a verdade eterna, anterior aos mundos, posterior aos seculos. CAPITULO CXLVII O desatino Mandei logo para a imprensa uma noticia discreta, dizendo que provavelmente come�aria a publica��o de um jornal opposicionista, dahi a algumas semanas, redigido pelo Dr. Braz Cubas. O Quincas Borba, a quem li a noticia, pegou da penna, e acrescentou ao meu nome, com uma fraternidade verdadeiramente humanistica, esta phrase: �um dos mais gloriosos membros da passada camara.� No dia seguinte entra-me em casa o Cotrim. Vinha um pouco transtornado, mas dissimulava, affectando socego e at� alegria. Vira a noticia do jornal, e achou que devia, como amigo e parente, dissuadir-me de semelhante id�a. Era um erro, um erro fatal. Mostrou que eu ia collocar-me n'uma situa��o difficil, e de certa maneira trancar as portas do parlamento. O ministerio, n�o s� lhe parecia excellente, o que ali�s podia n�o ser a minha opini�o, mas com certeza viveria muito; e que podia eu ganhar com indispol-o contra mim? Sabia que alguns dos ministros me eram affei�oados; n�o era impossivel uma vaga, e... Interrompi-o nesse ponto, para lhe dizer que medit�ra muito o passo que ia dar, e n�o podia recuar uma linha. Cheguei a prop�r-lhe a leitura do programma, mas elle recusou energicamente, dizendo que n�o queria ter a minima parte no meu desatino. --� um verdadeiro desatino, repetiu elle; pense ainda alguns dias, e ver� que �* um desatino. A mesma cousa disse Sabina, � noite, no theatro. Deixou a filha no camarote, como Cotrim, e trouxe-me ao corredor. --Mano Braz, que � que voc� vae fazer? perguntou-me afflicta. Que id�a � essa de provocar o governo, sem necessidade, quando podia.... Expliquei-lhe que n�o me convinha mendigar uma cadeira no parlamento; que a minha id�a era derrubar o ministerio, por n�o me parecer adequado � situa��o--e a certa f�rmula philosophica; afiancei que empregaria sempre uma linguagem cortez, embora energica. A violencia n�o era especiaria do meu paladar. Sabina bateu com o leque na ponta dos dedos, abanou a cabe�a, e tornou ao assumpto com um ar de supplica e amea�a, alternadamente; eu disse-lhe que n�o, que n�o, e que n�o. Desenganada, lan�ou-me em rosto preferir os conselhos de pessoas estranhas e invejosas aos della e do marido.--Pois siga o que, lhe parecer, concluiu; n�s cumprimos a nossa obriga��o. Deu-me as costas e voltou ao camarote. CAPITULO CXLVIII O problema insoluvel Publiquei o jornal. Vinte e quatro horas depois, apparecia em outros uma declara��o do Cotrim, dizendo, era substancia, que �posto n�o militasse em nenhum dos partidos em que se dividia a patria, achava conveniente deixar bem claro que n�o tinha influencia nem parte directa ou indirecta na folha de seu cunhado, o Dr. Braz Cubas, cujas id�as e procedimento politico inteiramente reprovava. O actual ministerio (como ali�s qualquer outro composto de eguaes capacidades) parecia-lhe destinado a promover a felicidade publica.� N�o podia acabar de crer nos meus olhos. Esfreguei-os uma e duas vezes, e reli a declara��o inopportuna, insolita e enigmatica. Se elle nada tinha com os partidos, que lhe importava um incidente t�o vulgar como a publica��o de uma folha? Nem todos os cidad�os que acham bom ou mau um ministerio fazem declara��es taes pela imprensa, nem s�o obrigados a fazel-as. Realmente, era um mysterio a intrus�o do Cotrim neste negocio, n�o menos que a sua aggress�o pessoal. Nossas rela��es at� ent�o tinham sido lhanas e benevolas; n�o me lembrava nenhum dissentimento, nenhuma sombra, nada, depois da reconcilia��o. Ao contrario, as recorda��es eram de verdadeiros obsequios; assim, por exemplo, sendo eu deputado, pude obter-lhe uns fornecimentos para o arsenal de marinha, fornecimentos que elle continuava a fazer com a maior pontualidade, e dos quaes me dizia algumas semanas antes, que no fim de mais trez annos, podiam dar-lhe uns duzentos contos. Pois a lembran�a de tamanho obsequio n�o teve for�a para obstar que elle viesse a publico enxovalhar o cunhado? Devia ser mui poderoso o motivo da declara��o, que o fazia commetter ao mesmo tempo um destempero e uma ingratid�o; confesso que era um problema insoluvel... CAPITULO CXLIX Theoria do beneficio ... T�o insoluvel que o Quincas Borba n�o p�de dar com elle, apezar de estudal-o longamente e com boa vontade.--Ora adeus! concluiu; nem todos os problemas valem cinco minutos de atten��o. Quanto � censura de ingratid�o, o Quincas Borba rejeitou-a inteiramente, n�o como improvavel, mas como absurda, por n�o obedecer �s conclus�es de uma boa philosophia humanistica: --N�o me p�des negar um facto, disse elle; � que o prazer do beneficiador � sempre maior que o do beneficiado. Que � o beneficio? � um acto que faz cessar certa priva��o do beneficiado. Uma vez produzido o effeito essencial, isto �, uma vez cessada a priva��o, torna o organismo ao estado anterior, ao estado indifferente. Supp�e que tens apertado em demasia o c�s das cal�as; para fazer cessar o incommodo, desabot�as o c�s, respiras, saboreas um instante de gozo, o organismo torna � indifferen�a, e n�o te lembras dos teus dedos que praticaram o acto. N�o havendo nada que perdure, � natural que a memoria se esvae�a, porque ella n�o � uma planta aerea, precisa de ch�o. A esperan�a de outros favores, � certo, conserva sempre no beneficiado a lembran�a do primeiro; mas este facto, ali�s um dos mais sublimes que a philosophia p�de achar em seu caminho, explica-se pela memoria da priva��o, ou, usando de outra f�rmula, pela priva��o continuada na memoria, que repercute a dor passada e aconselha a precau��o do remedio opportuno. N�o digo que, ainda sem esta circumstancia, n�o aconte�a, algumas vezes, persistir a memoria do obsequio, acompanhada de certa affei��o mais ou menos intensa; mas s�o verdadeiras aberra��es, sem nenhum valor aos olhos de um philosopho. --Mas, repliquei eu, se nenhuma raz�o ha para que perdure a memoria do obsequio no obsequiado, menos ha de haver em rela��o ao obsequiador. Quizera que me explicasses este ponto. --N�o se explica o que � de sua natureza evidente, retorquiu o Quincas Borba; mas eu direi alguma cousa mais. A persistencia do beneficio na memoria de quem o exerce explica-se pela natureza mesma do beneficio e seus effeitos. Primeiramente, ha o sentimento de uma boa ac��o, e deductivamente a consciencia de que somos capazes de boas ac��es; em segundo logar, recebe-se uma convic��o de superioridade sobre outra creatura, superioridade no estado e nos meios; e esta � uma das cousas mais legitimamente agradaveis, segundo as melhores opini�es, ao organismo humano. Erasmo, que no seu _Elogio da Sandice_ escreveu algumas cousas boas, chamou a atten��o para a complacencia com que dois burros se co�am um ao outro. Estou longe de rejeitar essa observa��o de Erasmo; mas direi o que elle n�o disse, a saber, que se um dos burros co�ar melhor o outro, esse ha de ter nos olhos algum indicio especial de satisfa��o. Porque � que uma mulher bonita olha muitas vezes para o espelho, sen�o porque se acha bonita, e porque isso lhe d� certa superioridade sobre uma multid�o de outras mulheres menos bonitas ou absolutamente feias? A consciencia � a mesma cousa; remira-se a miudo, quando se acha bella. Nem o remorso � outra cousa mais do que o trejeito de uma consciencia que se v� hedionda. N�o esque�as que, sendo tudo uma simples irradia��o de Humanitas, o beneficio e seus effeitos, s�o phenomenos perfeitamente admir�veis. CAPITULO CL Rota��o e transla��o Ha em cada empreza, affei��o ou edade um cyclo inteiro da vida humana. O primeiro numero do meu jornal encheu-me a alma de uma vasta aurora, coroou-me de verduras, restituiu-me a lepidez da mocidade. Seis mezes depois batia a hora da velhice, e dahi a duas semanas a da morte, que foi clandestina, como a de D. Placida. No dia em que o jornal amanheceu morto, respirei como um homem que vem de longo caminho. De modo que, se eu disser que a vida humana nutre de si mesma outras vidas, mais ou menos ephemeras, como o corpo alimenta os seus parasitas, creio n�o dizer uma cousa inteiramente absurda. Mas, para n�o arriscar essa figura menos nitida e adequada, prefiro uma imagem astronomica: o homem executa � roda do grande mysterio um movimento duplo de rota��o e transla��o; tem os seus dias, deseguaes como os de Jupiter, e delles comp�e o seu anno mais ou menos longo. No momento em que eu terminava o meu movimento de rota��o, concluia o Lobo Neves o seu movimento de transla��o. Morria com o p� na escada ministerial. Correu ao menos, durante algumas semanas, que elle ia ser ministro; e pois que o boato me encheu de muita irrita��o e inveja, n�o � impossivel que a noticia da morte me deixasse alguma tranquillidade, allivio, e um ou dous minutos de prazer. Prazer � muito, mas � verdade; juro aos seculos que � a pura verdade. Fui ao enterro. Na sala mortuaria achei Virgilia, ao p� do feretro, a solu�ar. Quando levantou a cabe�a, vi que chorava deveras. Ao sair o enterro, abra�ou-se ao caix�o, afflicta; vieram tiral-a e leval-a para dentro. Digo-vos que as lagrimas eram verdadeiras. Eu fui ao cemiterio; e, para dizer tudo, n�o tinha muita vontade de falar; levava uma pedra na garganta ou na consciencia. No cemiterio, principalmente quando deixei cair a p� de cal sobre o caix�o, no fundo da cova, o baque surdo da cal deu-me um estremecimento passageiro, � certo, mas desagradavel; e depois a tarde tinha o peso e a c�r do chumbo; o cemiterio, as roupas pretas... CAPITULO CLI Philosophia dos epitaphios Sa�, afastando-me dos grupos, e fingindo ler os epitaphios. E, ali�s, gosto dos epitaphios; elles s�o, entre a gente civilisada, uma express�o daquelle pio e secreto egoismo que induz o homem a arrancar � morte um farrapo ao menos da sombra que passou. Dahi vem, talvez, a tristeza inconsolavel dos que levam os seus mortos � valla commum; parece-lhes que a podrid�o anonyma os alcan�a a elles mesmos. CAPITULO CLII A moeda do Vespasiano Tinham ido todos; s� o meu carro esperava pelo dono. Accendi um charuto; afastei-me do cemiterio. N�o podia sacudir dos olhos a ceremonia do enterro, nem dos ouvidos os solu�os de Virgilia. Os solu�os, principalmente, tinham o som vago e mysterioso de um problema. Virgilia trahira o marido, com sinceridade; e agora chorava-o com sinceridade. Eis uma combina��o difficil que n�o pude fazer em todo o trajecto; em casa, por�m, apeando-me do carro, suspeitei que a combina��o era possivel, e at� facil. Meiga Natura! A taxa da dor � como a moeda de Vespasiano; n�o cheira � origem, e tanto se colhe do mal como do bem. A moral reprehender�, porventura, a minha complice; � o que te n�o importa, implacavel amiga, uma vez que lhe recebeste pontualmente as lagrimas. Meiga, tres vezes meiga Natura! CAP�TULO CLIII O alienista Come�o a ficar pathetico; e prefiro dormir. Dormi, sonhei que era nababo, e acordei com a id�a de ser nababo. Eu gostava, �s vezes, de imaginar esses contrastes de regi�o, estado e credo. Alguns dias antes tinha pensado na hypothese de uma revolu��o social, religiosa e politica, que transferisse o arcebispo de Cantuaria a simples collector de Petropolis, e fiz longos calculos para saber se o collector eliminaria o arcebispo, ou se o arcebispo rejeitaria o collector, ou que por��o de arcebispo p�de jazer n'um collector, ou que somma de collector p�de combinar com um arcebispo, etc. Quest�es insoluveis, apparentemente, mas na realidade perfeitamente soluveis, desde que se attenda que p�de haver n'um arcebispo dous arcebispos,--o da bulla e o outro. Est� dito, vou ser nababo. Era um simples gracejo; disse-o, todavia, ao Quincas Borba, que olhou para mim com certa cautella e pena, levando a sua bondade a communicar-me que eu estava doudo. Ri-me a principio; mas a nobre convic��o do philosopho incutiu-me certo medo. A unica objec��o contra a palavra do Quincas Borba � que n�o me sentia doudo, mas n�o tendo geralmente os doudos outro conceito de si mesmos, tal objec��o ficava sem valor. E v�de se ha algum fundamento na cren�a popular de que os philosophos s�o homens alheios �s cousas minimas. No dia seguinte mandou-me o Quincas Borba um alienista. Conhecia-o, fiquei aterrado. Elle por�m houve-se com a maior delicadeza e habilidade, despedindo-se t�o alegremente que me animou a perguntar-lhe se deveras me n�o achava doudo. --N�o, disse elle sorrindo; raros homens ter�o tanto juizo como o senhor. --Ent�o o Quincas Borba enganou-se? --Redondamente. E depois:--Ao contrario, se � amigo delle... pe�o-lhe que o distraia... que... --Justos ceus! Parece-lhe?... Um homem de tamanho espirito! um philosopho! N�o importa; a loucura entra em todas as casas. Imaginem a minha afflic��o. O alienista, vendo o effeito de suas palavras, reconheceu que eu era amigo do Quincas Borba, e tratou de diminuir a gravidade da advertencia. Observou que podia n�o ser nada, e accrescentou at� que um gr�osinho de sandice, longe de fazer mal, dava certo pico � vida. Como eu rejeitasse com horror esta opini�o, o alienista sorriu e disse-me uma cousa t�o extraordinaria, t�o extraordinaria, que n�o merece menos de um capitulo. CAPITULO CLIV Os navios do Pireu --Ha de lembrar-se, disse-me o alienista, daquelle famoso maniaco atheniense, que suppunha que todos os navios entrados no Pireu eram de sua propriedade. N�o passava de um pobret�o, que talvez n�o tivesse, para dormir, a cuba de Diogenes; mas a posse imaginaria dos navios valia por todas as drachmas da Hellade. Ora bem, ha em todos n�s um maniaco de Athenas; e quem jurar que n�o possuiu alguma vez, mentalmente, dous ou tres patachos, pelo menos, p�de crer que jura falso. --Tambem o senhor? perguntei-lhe. --Tambem eu. --Tambem eu? --Tambem o senhor; e o seu criado, n�o menos, se � seu criado esse homem que alli est� sacudindo os tapetes � janella. De facto, era um dos meus criados que batia os tapetes, emquanto n�s falavamos no jardim, ao lado. O alienista notou ent�o que elle escancar�ra as janellas todas, desde longo tempo, que al��ra as cortinas, que devass�ra o mais possivel a sala, ricamente alfaiada, para que a vissem de f�ra, e concluiu:--Este seu criado tem a mania do atheniense: cr� que os navios s�o delle; uma hora de illus�o que lhe d� a maior felicidade da terra. CAPITULO CLV Reflex�o cordial --Se o alienista tem raz�o, disse eu commigo, n�o haver� muito que lastimar o Quincas Borba; e uma quest�o de mais ou de menos. Comtudo, � justo cuidar delle, e evitar que lhe entrem no cerebro maniacos de outras paragens. CAPITULO CLVI Orgulho tem servilidade O Quincas Borba divergiu do alienista em rela��o ao meu criado.--P�de-se, por imagem, disse elle, attribuir ao teu criado a mania de atheniense; mas imagens n�o s�o id�as nem observa��es tomadas � natureza. O que o teu criado tem � um sentimento nobre e perfeitamente regido pelas leis do Humanitismo: � o orgulho da servilidade. A inten��o delle � mostrar que n�o � criado de _qualquer._--Depois chamou a minha atten��o para os cocheiros de casa grande, mais impertigados que o amo, para os criados de hotel, cuja solicitude obedece �s varia��es sociaes da freguezia, etc. E concluiu que era tudo a express�o daquelle sentimento delicado e nobre,--prova cabal de que muitas vezes o homem, ainda a engraxar botas, � sublime. CAPITULO CLVII Phase brilhante --Sublime �s tu, bradei eu, lan�ando-lhe os bra�os ao pesco�o. Com effeito, era imposs�vel crer que um homem t�o profundo pudesse chegar � demencia; e foi o que lhe disse ap�s o meu abra�o, denunciando-lhe a suspeita do alienista. N�o posso descrever a impress�o que lhe fez a denuncia; lembra-me que elle estremeceu e ficou muito pallido. Foi por esse tempo que eu me reconciliei outra vez com o Cotrim, sem chegar a saber a causa do dissentimento. Reconcilia��o opportuna, porque a solid�o pesava-me, como um remorso, e a vida era para mim a peor das fadigas, que � a fadiga sem trabalho. Pouco depois fui convidado por elle a filiar-me n'uma Ordem Terceira; o que eu n�o fiz sem consultar o Quincas Borba: --Vae se queres, disse-me este, mas temporariamente. Eu trato de annexar � minha philosophia uma parte dogmatica e liturgica. O Humanitismo ha de ser tambem uma religi�o, a do futuro, a unica verdadeira. O christianismo � bom para as mulheres e os mendigos, e as outras religi�es n�o valem mais do que essa: or�am todas pela mesma vulgaridade ou fraqueza. O paraiso christ�o � um digno emulo do paraiso mussulmano; e quanto ao nirvana de Buddha n�o passa de uma concep��o de paralyticos. Ver�s o que � a religi�o humanistica. A absorp��o final, a phase _contractiva_, � a reconstitui��o da substancia, n�o o seu anniquilamento, etc. Vae aonde te chamam; n�o esque�as, por�m, que �s o meu califa. E vede agora a minha, modestia; filiei-me na Ordem Terceira de ***, exerci alli alguns cargos, foi essa a phase mais brilhante da minha vida. N�o obstante, calo-me, n�o digo nada, n�o conto os meus servi�os, o que fiz aos pobres e aos enfermos, nem as recompensas que recebi, nada, n�o digo absolutamente nada. Talvez a economia social pudesse ganhar alguma cousa, si eu mostrasse como todo e qualquer premio estranho vale pouco ao lado do premio subjectivo e immediato; mas seria romper o silencio que jurei guardar neste ponto. Demais, os phenomenos da consciencia s�o de difficil analyse; por outro lado, se contasse um, teria de contar todos os que a elle se prendessem, e acabava fazendo um capitulo de psychologia. Affirmo s�mente que foi a phase mais brilhante da minha vida. Os quadros eram tristes; tinham a monotonia da desgra�a, que � t�o aborrecida como a do gozo, e talvez peor. Mas a alegria que se d� � alma dos doentes e dos pobres, � recompensa de algum valor; e n�o me digam que � negativa, por s� recebel-a o obsequiado. N�o; eu recebia-a de um modo reflexo, e ainda assim grande, t�o grande que me dava excellente id�a de mim mesmo. CAPITULO CLVIII Dous encontros No fim de alguns annos, tres ou quatro, estava enfarado do officio, e deixei-o, n�o sem um donativo importante, que me deu direito ao retrato na sacristia. N�o acabarei, por�m, o capitulo sem dizer que vi morrer no hospital da Ordem, adivinhem quem?... a linda Marcella; e vi-a morrer no mesmo dia em que, visitando um corti�o, para distribuir esmolas, achei... Agora � que n�o s�o capazes de adivinhar... achei a fl�r da moita, Eugenia, a filha de D. Eusebia e do Villa�a, t�o coxa como a deixara, e ainda mais triste. Esta, ao reconhecer-me, ficou pallida, e baixou os olhos; mas foi obra de um instante. Ergueu logo a cabe�a, e fitou-me com muita dignidade. Comprehendi que n�o receberia esmolas da minha algibeira, e estendi-lhe a m�o, como faria � esposa de um capitalista. Cortejou-me e fechou-se no cubiculo. Nunca mais a vi; n�o soube nada da vida della, nem se a m�e era morta, nem que desastre a trouxera a tamanha miseria. Sei que continuava coxa e triste. Foi com esta impress�o profunda que cheguei ao hospital, onde Marcella entrara na vespera, e onde a vi expirar meia hora depois, feia, magra, decrepita... CAPITULO CLIX A semi-demencia Comprehendi que estava velho, e precisava de uma for�a; mas o Quincas Borba partira seis mezes antes para Minas Geraes, e levou comsigo a melhor das philosophias. Voltou quatro mezes depois, e entrou-me em casa, certa manh�, quasi no estado em que eu o vira no Passeio Publico. A differen�a � que o olhar era outro. Vinha demente. Contou-me que, para o fim de aperfei�oar o Humanitismo, queim�ra o manuscripto todo e ia recome�al-o. A parte dogmatica ficava completa, embora n�o escripta; era a verdadeira religi�o do futuro. --Juras por Humanitas? perguntou-me. --Sabes que sim. A voz mal podia sair-me do peito; e ali�s n�o tinha descoberto toda a cruel verdade. O Quincas Borba n�o s� estava louco, mas sabia que estava louco, e esse resto de consciencia, como uma frouxa lamparina no meio das trevas, complicava muito o horror da situa��o. Sabia-o, e n�o se irritava contra o mal; ao contrario, dizia-me que era ainda uma prova de Humanitas, que assim brincava comsigo mesmo. Recitava-me longos capitulos do livro, e antiphonas, e litanias espirituaes; chegou at� a reproduzir uma dansa sacra que inventara para as ceremonias do Humanitismo. A gra�a lugubre com que elle levantava e sacudia as pernas era singularmente fantastica. Outras vezes amuava-se a um canto, com os olhos fitos no ar, uns olhos em que, de longe em longe, fulgurava um raio persistente da raz�o, triste como uma lagrima... Morreu pouco tempo depois, em minha casa, jurando e repetindo sempre que a dor era uma illus�o, e que Pangloss, o calumniado Pangloss, n�o era t�o tolo como o suppoz Voltaire. CAPITULO CLX Das negativas Entre a morte do Quincas Borba e a minha, mediaram os successos narrados na primeira parte do livro. O principal delles foi a inven��o do _emplasto Braz Cubas_, que morreu commigo, por causa da molestia que apanhei. Divino emplasto, tu me darias o primeiro logar entre os homens, acima da sciencia e da riqueza, porque eras a genuina e directa inspira��o do ceu. O acaso determinou o contrario; e ahi vos ficaes eternamente hypocondriacos. Este ultimo capitulo � todo de negativas. N�o alcancei a celebridade do emplasto, n�o fui ministro, n�o fui califa, n�o conheci o casamento. Verdade � que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de n�o comprar o p�o com o suor do meu rosto. Mais: n�o padeci a morte de D. Placida, nem a semi-demencia do Quincas Borba. Sommadas umas cousas e outras, qualquer pessoa imaginar� que n�o houve mingua nem sobra, e conseguintemente que sai quite com a vida. E imaginar� mal; porque ao chegar a este outro lado do mysterio, achei-me com um pequeno saldo, que � a derradeira negativa deste capitulo de negativas:--N�o tive filhos, n�o transmitti a nenhuma creatura o legado da nossa miseria. FIM �NDICE Ao leitor v Dedicat�ria vii Capitulo I Obito do auto II O emplasto III Genealogia IV A id�a fixa V Em que apparece a orelha de uma senhora VI Chim�ne, qui l'eut dit? Rodrigue, qui l'eut cru? VII O delirio VIII Raz�o contra Sandice IX Transi��o X Naquelle dia XI O menino � pae do homem XII Um episodio de 1814 XIII Um salto XIV O primeiro beijo XV Marcella XVI Uma reflex�o immoral XVII Do trapezio o outras cousas XVIII Vis�o do corredor XIX A bordo XX Bacharelo-me XXI O almocreve XXII Volta ao Rio XXIII Triste, mas curto XXIV Curto, era alegre XXV Na Tijuca XXVI O autor hesita XXVII Virgilia? XXVIII Contanto que XXIX A visita XXX A flor da moita XXXI A borboleta preta XXXII C�xa de nascen�a XXXIII Bem aventurados os que n�o descem XXXIV A uma alma sensivel XXXV O caminho de Damasco XXXVI A proposito de botas XXXVII Emfim! XXXVIII A quarta edi��o XXXIX O visinho XL Na sege XLI A allucina��o XLII Que escapou a Aristoteles XLIII Marqueza, porque eu serei marquez XLIV Um Cubas! XLV Notas XLVI A heran�a XLVII O recluso XLVIII Um primo de Virgilia XLIX A ponta do nariz L Virgilia casada LI � minha! LII O embrulho mysterioso LIII . . . . . . LIV A pendula LV O velho dialogo de Ad�o e Eva LVI O momento opportuno LVII Destino LVIII Confidencia LIX Um encontro LX O abra�o LXI Um projecto LXII O travesseiro LXIII Fujamos! LXIV A transac��o LXV Olheiros e escutas LXVI As pernas LXVII A casinha LXVIII O vergalho LXIX Um gr�o de sandice LXX D. Placida LXXI O sen�o do livro LXXII O bibliomano LXXIII O _lunch_ LXXIV Historia de D. Placida LXXV Commigo LXXVI O estrume LXXVII Entrevista LXXVIII A presidencia LXXIX Compromisso de gato LXXX De secretario LXXXI A reconcilia��o LXXXII Quest�o de botanica LXXXIII 13 LXXXIV O conflicto LXXXV O cimo da montanha LXXXVI O mysterio LXXXVII Geologia LXXXVIII O enfermo LXXXIX _In extremis_ XC O velho colloquio do Ad�o e Caim XCI Uma carta extraordinaria XCII Um homem extraordinario XCIII O jantar XCIV A causa secreta XCV Flores de antanho XCVI A carta anonyma XCVII Entre a boca e a testa XCVIII Supprimido XCIX Na plateia C O caso provavel CI A revolu��o dalmata CII De repouso CIII Distrac��o CIV Era elle! CV Equivalencia das janellas CVI Jogo perigoso CVII Bilhete CVIII Que se n�o entende CIX O philosopho CX 31 CXI O muro CXII A opini�o CXIII A solda CXIV Fim do um dialogo CXV O almo�o CXVI Philosophia das folhas velhas CXVII O Humanitismo CXVIII A terceira for�a CXIX Parenthesis CXX _Compelle intrare_ CXXI Morro abaixo CXXII Uma inten��o mui fina CXXIII O verdadeiro Cotrim CXXIV V� de intermedio CXXV Epitaphio CXXVI Desconsola��o CXXVII Formalidade CXXVIII Na camara CXXIX Sem remorsos CXXX Por intercallar no cap. CXXIX CXXXI De uma calumnia CXXXII Que n�o � serio CXXXIII O principio de Helvetius CXXXIV Cincoenta annos CXXXV _Oblivion_ CXXXVI Inutilidade CXXXVII A barretina CXXXVIII A um critico CXXXIX De como n�o fui ministro d'Estado CXL Que explica o anterior CXLI Os c�es CXLII O pedido secreto CXLIII N�o vou CXLIV Utilidade relativa CXLV Simples repeti��o CXLVI O programma CXLVII O desatino CXLVIII O problema insoluvel CXLIX Theoria do beneficio CL Rota��o e transla��o CLI Philosophia dos epitaphios CLII A moeda de Vespasiano CLIII O alienista CLIV Os navios do Pireu CLV Reflex�o cordial CLVI Orgulho da servilidade CLVII Phase brilhante CLVIII Dous encontros CLIX A semi-demencia CLX Das negativas End of the Project Gutenberg EBook of Memorias Postumas de Braz Cubas, by Machado de Assis *** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK MEMORIAS POSTUMAS DE BRAZ CUBAS *** ***** This file should be named 54829-8.txt or 54829-8.zip ***** This and all associated files of various formats will be found in: http://www.gutenberg.org/5/4/8/2/54829/ Produced by Laura Natal Rodriguez & Marc D'Hooghe at Free Literature (online soon in an extended version, also linking to free sources for education worldwide ... 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