Project Gutenberg's Memorias Postumas de Braz Cubas, by Machado de Assis

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Title: Memorias Postumas de Braz Cubas

Author: Machado de Assis

Release Date: June 2, 2017 [EBook #54829]

Language: Portuguese


*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK MEMORIAS POSTUMAS DE BRAZ CUBAS ***




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MEM�RIAS P�STHUMAS

DE

BRAZ CUBAS

POR

MACHADO DE ASSIS

RIO DE JANEIRO

TYPOGRAPHIA NACIONAL

1881




OBRAS DO AUTOR

    Mem�rias P�sthumas de Braz Cubas
    Helena, romance
    Yay� Garcia, romance
    Resurrei��o, romance
    A m�o e a luva, romance
    Historias da meia noite
    Contos Fluminenses
    Americanas, poesias
    Phalenas, poesias
    Chrysalidas, poesias
    Tu s�, tu, puro amor, com�dia
    Os deuses de casaca, com�dia
    Desencantos, com�dia
    Theatro




AO LEITOR


Que, no alto do principal de seus livros, confessasse Stendhal havel-o
escripto para cem leitores, cousa � que admira e consterna. O que n�o
admira, nem provavelmente consternar� � se este outro livro n�o tiver
os cem leitores de Stendhal, nem cincoenta, nem vinte, e quando muito,
dez. Dez? Talvez cinco. Trata-se, na verdade, de uma obra diffusa,
na qual eu, Braz Cubas, se adoptei a f�rma livre de um Sterne, de
um Lamb, ou de um de Maistre, n�o sei se lhe metti algumas rabugens
de pessimismo. P�de ser. Obra de finado. Escrevi-a com a penna da
galhofa e a tinta da melancholia; e n�o � difficil antever o que poder�
sair desse connubio. Accresce que a gente grave achar� no livro umas
apparencias de puro romance, ao passo que a gente frivola n�o achar�
nelle o seu romance usual; e eil-o ahi fica privado da estima dos
graves e do amor dos frivolos, que s�o as duas columnas maximas da
opini�o.

Mas eu ainda espero angariar as sympatias da opini�o, e o meio efficaz
para isso � fugir a um prologo explicito e longo. O melhor prologo
� o que cont�m menos cousas, ou o que as diz de um geito obscuro e
truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinario que
empreguei na composi��o destas _Mem�rias_, trabalhadas c� no outro
seculo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, e ali�s desnecessario ao
entendimento da obra. A obra em si mesma � tudo: se te agradar, fino
leitor, pago-me da tarefa; se te n�o agradar, pago-te com um piparote,
e adeus.

BRAZ CUBAS.



                               AO VERME

                                  QUE

                     PRIMEIRO ROEU AS FRIAS CARNES

                            DO MEU CADAVER

                                DEDICO

                        COMO SAUDOSA LEMBRAN�A

                                 ESTAS

                          MEM�RIAS P�STHUMAS




CAPITULO I


Obito do autor


Algum tempo hesitei se devia abrir estas memorias pelo principio ou
pelo fim, isto �, se poria em primeiro logar o meu nascimento ou a
minha morte. Supposto o uso vulgar seja come�ar pelo nascimento, duas
considera��es me levaram a adoptar differente methodo: a primeira � que
eu n�o sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para
quem a campa foi outro ber�o; a segunda � que o escripto ficaria assim
mais galante e mais novo. Moys�s, que tambem contou a sua morte, n�o a
poz no introito, mas no cabo: differen�a radical entre este livro e o
Pentateuco.

Dito isto, expirei �s duas horas da tarde de uma sexta feira do mez de
agosto de 1869, na minha bella chacara de Catumby. Tinha uns sessenta
e quatro annos, rijos e prosperos, era solteiro, possuia cerca de
tresentos contos e fui acompanhado ao cemiterio por onze amigos.
Onze amigos! Verdade � que n�o houve cartas nem annuncios. Accresce
que chovia--peneirava--uma chuvinha miuda, triste e constante, t�o
constante e t�o triste, que levou um daquelles fieis da ultima hora
a intercalar esta engenhosa id�a no discurso que proferiu � beira de
minha cova:--�V�s, que o conhecestes, meus senhores, v�s podeis dizer
commigo que a natureza parece estar chorando a perda irreparavel de
um dos mais bellos caracteres que tem honrado a humanidade. Este ar
sombrio, estas gotas do ceu, aquellas nuvens escuras que cobrem o
azul como um crepe funereo, tudo isso � a dor crua e m� que lhe r�e �
natureza as mais intimas entranhas; tudo isso � um sublime louvor ao
nosso illustre finado.�

Bom e fiel amigo! N�o, n�o me arrependo das vinte apolices que lhe
deixei. E foi assim que cheguei � clausula dos meus dias; foi assim que
me encaminhei para o _undiscovered country_ de Hamlet, sem as ancias
nem as duvidas do mo�o principe, mas pausado e tropego, como quem se
retira tarde do expectaculo. Tarde e aborrecido. Viram-me ir umas nove
ou dez pessoas, entre ellas tres senhoras,--minha irm� Sabina, casada
com o Cotrim,--a filha, um lyrio do valle,--e... Tenham paci�ncia!
daqui a pouco lhes direi quem era a terceira senhora. Contentem-se de
saber que essa anonyma, ainda que n�o parenta, padeceu mais do que as
parentas. � verdade, padeceu mais. N�o digo que se carpisse, n�o digo
que se deixasse rolar pelo ch�o, epileptica. Nem o meu �bito era cousa
altamente dramatica... Um solteir�o que expira aos sessenta e quatro
annos, n�o parece que reuna em si todos os elementos de uma tragedia. E
dado que sim, o que menos convinha a essa anonyma era apparental-o. De
p�, � cabeceira da cama, com os olhos est�pidos, a boca entreaberta, a
triste senhora mal podia cr�r na minha extinc��o.

--Morto! morto! dizia comsigo.

E a imagina��o della, como as cegonhas que um illustre viajante viu
desferirem o v�o desde o Illysso �s ribas africanas, sem embargo das
ruinas e dos tempos,--a imagina��o dessa senhora tambem voou por
sobre os destro�os presentes at� �s ribas de uma Africa juvenil...
Deixal-a ir; l� iremos mais tarde; l� iremos quando eu me restituir aos
primeiros annos. Agora, quero morrer tranquillamente, methodicamente,
ouvindo os solu�os das damas, as fallas baixas dos homens, a chuva que
tamborila nas folhas de tinhor�o da chacara, e o som estridulo de uma
navalha que um amolador est� afiando l� f�ra, � porta de um correeiro.
Juro-lhes que essa orchestra da morte foi muito menos triste do que
podia parecer; e de certo ponto em deante chegou a ser deliciosa.
A vida estrebuchava-me no peito, com uns impetos de vaga marinha,
esvaia-se-me a consciencia, eu descia � immobilidade physica e moral,
e o corpo fazia-se-me planta, e pedra, e lodo, e cousa nenhuma.

Morri de uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, do
que uma id�a grandiosa e util, a causa da minha morte, � possivel que o
leitor me n�o creia, e todavia � verdade. Vou expor-lhe summariamente o
caso. Julgue-o por si mesmo.




CAPITULO II


O emplasto


Com effeito, um dia de manh�, estando a passear na chacara,
pendurou-se-me uma id�a no trapezio que eu tinha no cerebro. Uma vez
pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais arrojadas
cabriolas de volantim, que � possivel crer. Eu deixei-me estar a
contemplal-a. Subito, deu um grande salto, estendeu os bra�os e as
pernas, at� tomar a f�rma de um X: decifra-me ou devoro-te.

Essa id�a era nada menos que a inven��o de um medicamento sublime, um
emplasto anti-hypocondriaco, destinado a alliviar a nossa melancholica
humanidade. Na peti��o de privilegio que ent�o redigi, chamei a
atten��o do governo para esse resultado, verdadeiramente christ�o.
Todavia, n�o neguei aos amigos as vantagens pecuniarias que deviam
resultar da distribui��o de um producto de tamanhos e t�o profundos
effeitos, Agora, por�m, que estou c� do outro lado da vida, posso
confessar tudo: o que me influiu principalmente foi o gosto de ver
impressas nos jornaes, mostradores, folhetos, esquinas, e emfim nas
caixinhas do remedio, estas tres palavras: _emplasto Braz Cubas._ Para
que negal-o? Eu tinha a paix�o do arruido, do cartaz, do foguete de
lagrimas. Talvez os modestos me arguam esse defeito; fio por�m que esse
talento me h�o de reconhecer os habeis; e eu era habil. Assim, a minha
id�a trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o publico,
outra para mim. De um lado, philanthropia e lucro; de outro lado, s�de
de nomeada. Digamos:--amor da gloria.

Um tio meu, conego de prebenda inteira, costumava dizer que o amor da
gloria temporal era a perdi��o das almas, que s� devem cobi�ar a gloria
eterna. Ao que retorquia outro tio, official de um dos antigos ter�os
de infantaria, que o amor da gloria era a cousa mais verdadeiramente
humana que ha no homem, e, conseguintemente, a sua mais genuina fei��o.

Decida o leitor entre o militar e o conego; eu volto ao emplasto.




CAPITULO III


Genealogia


Mas, j� que fallei nos meus dous tios, deixem-me fazer aqui um curto
esbo�o genealogico.

O fundador da minha familia foi um certo Dami�o Cubas, que floreceu
na primeira metade do seculo XVIII. Era tanoeiro de officio, natural
do Rio de Janeiro, onde teria morrido na penuria e na obscuridade,
se s�mente exercesse a tanoaria. Mas n�o; fez-se lavrador, plantou,
colheu, permutou o seu producto por boas e honradas patacas, at� que
morreu, deixando grosso cabedal a um filho, o licenciado Luiz Cubas.
Neste rapaz � que verdadeiramente come�a a serie de meus av�s--dos
av�s que a minha familia sempre confessou--, porque o Dami�o Cubas era
afinal de contas um tanoeiro, e talvez mau tanoeiro, ao passo que o
Luiz Cubas estudou em Coimbra, primou no Estado, e foi um dos amigos
particulares do vice-rei conde da Cunha.

Como este appellido de Cubas lhe cheirasse excessivamente a tanoaria,
allegava meu pae, bisneto do Dami�o, que o dito appellido f�ra dado a
um cavalleiro, heroe nas jornadas da Africa, em premio da fa�anha que
praticou, arrebatando tresentas cubas aos mouros. Meu pae era homem de
imagina��o; escapou � tanoaria nas azas de um _calembour._ Era um bom
caracter meu pae, var�o digno e leal como poucos. Tinha, � verdade, uns
fumos de pacholice; mas quem n�o � um pouco pachola nesse mundo? Releva
notar que elle n�o recorreu � inventiva, sen�o depois de experimentar
a falsifica��o; primeiramente, entroncou-se na familia daquelle meu
famoso homonymo, o capit�o-m�r Braz Cubas, que fundou a villa de S.
Vicente, onde morreu em 1592, e por esse motivo � que me deu o nome de
Braz. Oppoz-se-lhe por�m a familia do capit�o-m�r; e foi ent�o que elle
imaginou as tresentas cubas mouriscas.

Vivem ainda alguns membros de minha familia, minha sobrinha Venancia,
por exemplo, o lyrio do valle, que � a flor das damas do seu tempo;
vive o pae, o Cotrim, um sujeito que... Mas n�o anticipemos os
successos; acabemos de uma vez com o nosso emplasto.




CAPITULO IV


A id�a fixa


A minha id�a, depois de tantas cabriolas, constituira-se id�a fixa.
Deus te livre, leitor, de uma id�a fixa; antes um argueiro, antes uma
trave no olho. V� o Cavour; foi a id�a fixa da unidade italiana que o
matou. Verdade � que o Bismark n�o morreu; mas, cumpre advertir que
a natureza � uma grande caprichosa e a historia uma eterna loureira.
Por exemplo, o Suetonio deu-nos um Claudio, que era um verdadeiro
banana,--ou �uma abobora� como lhe chamou Seneca, e um Tito, que
mereceu ser as delicias de Roma. Veiu modernamente um professor e achou
meio de demonstrar que ambos esses conceitos eram erroneos e abstrusos,
e que dos dous cesares, o delicioso, o verdadeiramente delicioso, foi
o �abobora� de Seneca. E tu, madama Lucrecia, flor dos Borgias, se um
poeta te pintou como a Messalina catholica, appareceu um Gregorovius
incredulo que te apagou muito essa qualidade, e, se n�o vieste a
lyrio, tambem n�o ficaste pantano. Eu deixo-me estar entre o poeta e o
sabio.

Viva pois a historia, a voluvel historia que d� para tudo; e, tornando
� id�a fixa, direi que � ella a que faz os var�es fortes e os doudos;
a id�a mobil, vaga ou furta-cor � a que faz os Claudios,--formula
Suetonio.

Era fixa a minha id�a, fixa como... N�o me occorre nada que seja assaz
fixo nesse mundo: talvez a lua, talvez as pyramides do Egypto, talvez
a finada dieta germanica. Veja o leitor a compara��o que melhor lhe
quadrar, veja-a e n�o esteja dahi a torcer-me o nariz, s� porque ainda
n�o cheg�mos � parte narrativa destas memorias. L� iremos. Creio que
prefere a anecdota � reflex�o, como os outros leitores, seus confrades,
e acho que faz muito bem. Pois l� iremos. Todavia, importa dizer que
este livro � escripto com pachorra, com a pachorra de um homem j�
desaffrontado da brevidade do seculo, obra supinamente philosophica, de
uma philosophia desegual, agora austera, logo brincalhona, cousa que
n�o edifica nem destr�e, n�o inflamma nem reg�la, e � todavia mais do
que passatempo e menos do que apostolado.

Vamos l�; rectifique o seu nariz, e tornemos ao emplasto. Deixemos a
historia com os seus caprichos de dama elegante. Nenhum de n�s pelejou
a batalha de Salamina, nenhum escreveu a confiss�o do Augsburgo; pela
minha parte, se alguma vez me lembro de Cromwell, � s� pela id�a de que
Sua Alteza, com a mesma m�o que trancara o parlamento, teria imposto
aos inglezes o emplasto Braz Cubas. N�o se riam dessa victoria commum
da pharmacia e do puritanismo. Quem n�o sabe que ao p� de cada bandeira
grande, publica, ostensiva, ha muitas vezes varias outras bandeiras
modestamente particulares, que se hasteam e fluctuam � sombra daquella,
com ella cahem, e n�o poucas vezes lhe sobrelevam? Mal comparando, �
como a arraia-miuda, que se acolhia � sombra do castello-feudal; cahiu
este e a arraia ficou. Verdade � que se fez gra�da e castell�... N�o, a
compara��o n�o presta.




CAPITULO V


Em que apparece a orelha de uma senhora


Vae se n�o quando, estando eu occupado em preparar e apurar a minha
inven��o, recebi em cheio um golpe de ar; adoeci logo, e n�o me
tratei. Tinha o emplasto no cerebro; trazia commigo a id�a fixa dos
doudos e dos fortes. Via-me, ao longe, ascender do ch�o das turbas, e
remontar ao ceu, como uma aguia immortal; e n�o � deante de t�o excelso
expectaculo que um homem pode sentir a dor que o punge. No outro dia
estava peor; tratei-me emfim, mas incompletamente, sem methodo, nem
cuidado, nem persistencia; tal foi a origem do mal que me trouxe �
eternidade. Sabem ja que morri n'uma sexta feira, dia aziago, e creio
haver provado que foi a minha inven��o que me matou. Ha demonstra��es
menos l�cidas e n�o menos triumphantes.

N�o era impossivel, entretanto, que eu chegasse a galgar o cimo de um
seculo, e a figurar nas folhas publicas, entre macrobios. Tinha saude
e robustez. Supponha-se que, em vez de estar lan�ando os alicerces de
uma inven��o pharmaceutica, tratava de colligir os elementos de uma
institui��o politica, ou de uma reforma religiosa. Vinha a corrente
do ar, que vence, em efficacia, o calculo humano, e l� se ia tudo. Um
sopro de ar foi portanto o meu gr�o de ar�a de Cromwell. Assim corre a
sorte dos homens.

Com esta reflex�o me despedi eu da mulher, n�o direi mais discreta, mas
com certeza mais formosa entre as contemporaneas suas, a anonyma do
primeiro capitulo, a tal, cuja imagina��o � semelhan�a das cegonhas do
Illysso... Tinha ent�o 54 annos, era uma ruina, uma imponente ruina.
Imagine o leitor que nos am�mos, ella e eu, muitos annos antes, e que
um dia, j� enfermo, vejo-a assomar � porta da alcova...




CAPITULO VI


Chim�ne, qui l'eut dit?--Rodrigue, qui l'eut cru?


Vejo-a assomar � porta da alcova, pallida, commovida, trajada de preto,
e alli ficar durante uns dez segundos, sem animo de entrar, ou detida
pela presen�a de um homem que estava commigo. Da cama, onde jazia,
contemplei-a durante esse tempo, esquecido de lhe dizer nada ou de
fazer nenhum gesto. Havia j� dous annos que nos n�o viamos; e eu via-a
agora n�o qual era, mas qual fora**, quaes foramos ambos, porque um
Ezechias mysterioso fizera recuar o sol at� os dias juvenis. Recuou
o sol, sacudi todas as miserias; e este punhado de p�, que a morte
ia espalhar na eternidade do nada, p�de mais do que tempo, que � o
ministro da morte. Nenhuma agua de Juventa egualaria alli a simples
saudade.

Cream-me, o menos mau � recordar; ninguem se fie da felicidade
presente; ha nella uma gota da baba de Caim. Corrido o tempo e cessado
o espasmo, ent�o sim, ent�o talvez se p�de gozar deveras, porque entre
uma e outra dessas duas illus�es, melhor � a que se gosta, sem doer.

N�o durou muito a evoca��o; a realidade dominou logo; o presente
expelliu o passado. Talvez eu exponha ao leitor, em algum canto deste
livro, a minha theoria das edi��es humanas. O que por agora importa
saber � que Virgilia--chamava-se Virgilia--entrou na alcova, firme,
com a gravidade que lhe davam as roupas e os annos, e veiu at� o meu
leito. O extranho levantou-se e sahiu. Era um sujeito, que me visitava
todos os dias para fallar do cambio, da colonisa��o e da necessidade de
desenvolver a via��o ferrea; nada mais interessante para um moribundo.
Saiu; Virgilia deixou-se estar de p�; durante algum tempo ficamos a
olhar um para o outro, sem articular palavra. Quem diria? De dous
grandes namorados, de duas paix�es sem freio, nada mais havia alli,
vinte annos depois; havia apenas dous cora��es murchos, devastados pela
vida e saciados della, n�o sei se em egual d�se, mas emfim saciados.
Virgilia tinha agora a belleza da velhice, um ar austero e maternal;
estava menos magra do que quando a vi, pela ultima vez, n'uma festa
de S. Jo�o, na Tijuca; e porque era das que resistem muito, s� agora
come�avam os cabellos escuros a intercalar-se de alguns fios de prata.

--Anda visitando os defuntos? disse-lhe eu.--Ora, defuntos! respondeu
Virgilia com um muxoxo. E depois de me apertar as m�os:--Ando a ver se
ponho os vadios para a rua.

N�o tinha a caricia lacrymosa de outro tempo; mas a voz era amiga e
doce. Sentou-se. Eu estava s�, em casa, com um simples enfermeiro;
podiamos fallar um ao outro, sem perigo. Virgilia deu-me longas
noticias de f�ra, narrando-as com gra�a, com um certo travo de m�
lingua, que era o sal da palestra; eu, prestes a deixar o mundo, sentia
um prazer satanico em mofar delle, em persuadir-me que n�o deixava nada.

--Que id�as essas! interrompeu-me Virgilia um tanto zangada. Olhe que
eu n�o volto mais. Morrer! Todos n�s havemos de morrer; basta estarmos
vivos.

E vendo o relogio:

--Jesus! s�o tres horas. Vou-me embora.

--J�?

--J�; virei amanh� ou depois.

--N�o sei se faz bem, retorqui; o doente � um solteir�o e a casa n�o
tem senhoras...

--Sua mana?

--Ha de vir c� passar uns dias, mas n�o p�de ser antes de sabbado.

Virgilia reflectiu um instante, levantou os hombros e disse com
gravidade:

--Estou velha! Ninguem mais repara em mim. Mas, para cortar duvidas,
virei com o Nhonh�.

Nhonh� era um bacharel, unico filho de seu casamento, que, na edade
de cinco annos, f�ra complice inconsciente de nossos amores. Vieram
juntos, dous dias depois; e confesso que, ao vel-os alli, na minha
alcova, fui tomado de um acanhamento que nem me permittiu corresponder
logo �s palavras affaveis do rapaz. Virgilia adivinhou-mo e disse ao
filho:

--Nhonh�, n�o repares nosso grande manhoso que ahi est�; n�o quer
fallar para fazer crer que est� � morte.

Sorriu o filho; eu creio quo tambem sorri; e tudo acabou em pura
galhofa. Virgilia estava serena e risonha, tinha o aspecto das
vidas immaculadas. Nenhum olhar suspeito, nenhum gesto que pudesse
denunciar nada; uma egualdade de palavra e de espirito, uma domina��o
sobre si mesma, que pareciam e talvez fossem raras. Como tocassemos,
casualmente, n'uns amores illegitimos, meio secretos, meio divulgados,
vi-a fallar com desdem e um pouco de indigna��o da mulher de que se
tratava, ali�s sua amiga; e o filho sentia-se satisfeito, ouvindo
aquella palavra digna e forte, e eu perguntava a mim mesmo o que diriam
de n�s os gavi�es, se Buffon tivesse nascido gavi�o...

Era o meu delirio que come�ava.




CAPITULO VII


O delirio


Que me conste, ainda ninguem relatou o seu proprio delirio; fa�o-o eu,
e a sciencia m'o agradecer�. Se o leitor n�o � dado � contempla��o
destes phenomenos mentaes, p�de saltar o capitulo; v� direito �
narra��o. Mas, por menos curioso que seja, sempre lhe digo que �
interessante saber o que se passou na minha cabe�a durante uns vinte a
trinta minutos.

Primeiramente, tomei a figura de um barbeiro chinez, bojudo, destro,
escanhoando um mandarim, que me pagava o trabalho com belisc�es e
confeitos: caprichos de mandarim.

Logo depois, senti-me transformado na _Summa Theologica_ de S. Thomaz,
impressa n'um volume, e encadernada em marroquim, com fechos de prata e
estampas; id�a esta que me deu ao corpo a mais completa immobilidade;
e ainda agora me lembra que, sendo as minhas m�os os fechos do livro,
e cruzando-as eu sobre o ventre, alguem as descruzava (Virgilia de
certo), porque a attitude lhe dava a imagem de um defunto.

Ultimamente, restituido � f�rma humana, vi chegar um hippopotamo, que
me arrebatou. Deixei-me ir, calado, n�o sei se por medo ou confian�a,
mas, dentro em pouco, a carreira de tal modo se tornou vertiginosa, que
me atrevi a interrogal-o, e com alguma arte lhe disse que a viagem me
parecia sem destino.

--Engana-se, replicou o animal, n�s vamos � origem dos seculos.

Insinuei que deveria ser muitissimo longe; mas o hippopotamo n�o me
entendeu ou n�o me ouviu, se � que n�o fingiu uma dessas cousas; e,
perguntando-lhe, visto que elle fallava, se era descendente do cavallo
de Achilles ou da asna de Bala�o, retorquiu-me com um gesto peculiar a
estes dous quadrupedes: abanou as orelhas. Pela minha parte fechei os
olhos e deixei-me ir � ventura. J� agora n�o se me d� de confessar que
sentia umas taes ou quaes cocegas de curiosidade, por saber onde ficava
a origem dos seculos, se era t�o mysteriosa como a origem do Nilo, e
sobretudo se valia alguma cousa mais ou menos do que a consumma��o dos
mesmos seculos; tudo isto reflex�es de um cerebro enfermo. Como ia de
olhos fechados, n�o via o caminho; lembra-me s� que a sensa��o de frio
augmentava com a jornada, e que chegou uma occasi�o em que me pareceu
entrar na regi�o dos gelos eternos. Com effeito, abri os olhos e vi que
o meu animal galopava n'uma planicie branca de neve, com uma ou outra
montanha de neve, vegeta��o de neve, e varios animaes grandes e de
neve. Tudo neve; chegava a gelar-nos um sol de neve. Tentei fallar, mas
apenas pude grunhir esta pergunta anciosa:

--Onde estamos?

--J� pass�mos o Eden.

--Bem; paremos na tenda de Abrah�o.

--Mas se n�s caminhamos para traz! redarguiu motejando a minha
cavalgadura.

Fiquei vexado e aturdido. A jornada entrou a parecer-me enfadonha e
extravagante, o frio incommodo, a conduc��o violenta, e o resultado
impalpavel. E depois--cogita��es de enfermo--dado que chegassemos ao
fim indicado, n�o era impossivel que os seculos, irritados com lhes
devassarem a origem, me esmagassem entre as unhas, que deviam ser t�o
seculares como elles. Em quanto assim pensava, iamos devorando caminho,
e a planicie voava debaixo dos nossos p�s, at� que o animal estacou, e
pude olhar mais tranquillamente em torno de mim. Olhar s�mente; nada
vi, al�m da immensa brancura da neve, que desta vez invadira o proprio
ceu*, at� alli azul. Talvez, a espa�os, me apparecia uma ou outra
planta, enorme, brutesca, meneando ao vento as suas largas folhas. O
silencio daquella regi�o era egual ao do sepulchro: dissera-se que a
vida das cousas fic�ra estupida deante do homem.

Cahiu do ar? destacou-se da terra? n�o sei; sei que um vulto immenso,
uma figura de mulher me appareceu ent�o, fitando-me uns olhos
rutilantes como o sol. Tudo nessa figura tinha a vastid�o das f�rmas
selvaticas, e tudo escapava � comprehens�o do olhar humano, porque os
contornos perdiam-se no ambiente, e o que parecia espesso era muita voz
diaphano. Estupefacto, n�o disse nada, n�o cheguei sequer a soltar um
grito; mas, ao cabo de algum tempo, que foi breve, perguntei quem era e
como se chamava; curiosidade de delirio.

--Chama-me Natureza ou Pandora; sou tua m�e e tua inimiga.

Ao ouvir esta ultima palavra, recuei um pouco, tomado de susto. A
figura soltou uma gargalhada, que produziu em torno de n�s o effeito de
um tuf�o; as plantas torceram-se e um longo gemido quebrou a mudez das
cousas externas.

--N�o te assustes, disse ella, minha inimizade n�o mata; � sobretudo
pela vida que se affirma. Vives: n�o quero outro flagello.

--Vivo? perguntei eu, enterrando as unhas nas m�os, como para
certificar-me da existencia.

--Sim, verme, tu vives. N�o receies perder esse andrajo que � teu
orgulho; provar�s ainda, por algumas horas, o p�o da d�r e o vinho
da miseria. Vives: agora mesmo que ensandeceste, vives; e se a tua
consci�ncia rehouver um instante de sagacidade, tu dir�s que queres
viver.

Dizendo isto, a vis�o estendeu o bra�o, segurou-me pelos cabellos e
levantou-me ao ar, como se f�ra uma simples pluma. S� ent�o pude
ver-lhe de perto o rosto, que era enorme. Nada mais quieto; nenhuma
contors�o violenta, nenhuma express�o de odio ou ferocidade; a fei��o
unica, geral, completa, era a da impassibilidade egoista, a da eterna
surdez, a da vontade immovel. Raivas, se as tinha, ficavam encerradas
no cora��o. Ao mesmo tempo, nesse rosto de express�o glacial, havia um
ar de juventude, mescla de for�a e vi�o, diante do qual me sentia eu o
mais debil e descrepito dos seres.

--Entendeste-me? disse ella, no fim de algum tempo de mutua
contempla��o.

--N�o, respondi; nem quero entender-te; tu �s absurda, tu �s uma
fabula. Estou sonhando, de certo, ou, se � verdade que enlouqueci, tu
n�o passas de uma concep��o de alienado, isto �, uma cousa v�, que a
raz�o ausente n�o p�de reger nem palpar. Natureza, tu? a Natureza que
eu conhe�o � s� m�e e n�o inimiga; n�o faz da vida um flagello, nem,
como tu, traz esse rosto indifferente, como o sepulchro. E porque
Pandora?

--Porque levo na minha bolsa os bens e os males, e o maior de todos, a
esperan�a, consola��o dos homens. Tremes?

--Sim; o teu olhar fascina-me.

--Creio; eu n�o sou somente a vida; sou tambem a morte, e tu est�s
prestes a devolver-me o que te emprestei. Grande lascivo, espera-te a
voluptuosidade do nada.

Quando esta palavra echoou, como um trov�o, naquelle immenso valle,
afigurou-se-me que era o ultimo som que chegava a meus ouvidos;
pareceu-me sentir a decomposi��o subita de mim mesmo. Ent�o, encarei-a
com olhos supplices, e pedi mais alguns annos.

--Pobre minuto! exclamou. Para que queres tu mais alguns instantes
de vida? Para devorar e seres devorado depois? N�o est�s farto do
expectaculo e da luta? Conheces de sobejo tudo o que eu te deparei
menos torpe ou menos afflictivo: o alvor do dia, a melancholia da
tarde, a quieta��o da noite, os aspectos da terra, o somno, emfim, o
maior beneficio das minhas m�os. Que mais queres tu, sublime idiota?

--Viver somente, n�o te pe�o mais nada. Quem me poz no cora��o este
amor da vida, se n�o tu? e, se eu amo a vida, porque te has de golpear
a ti mesma, matando-me?

--Porque j� n�o preciso de ti. N�o importa ao tempo o minuto que passa,
mas o minuto que vem. O minuto que vem � forte, jocundo, supp�e trazer
em si a eternidade, e traz a morte, e perece como o outro, mas o
tempo subsiste. Egoismo, dizes tu? Sim, egoismo, n�o tenho outra lei.
Egoismo, conserva��o. A on�a mata o novilho porque o raciocinio da
on�a � que ella deve viver, e se o novilho � tenro tanto melhor: eis o
estatuto universal. Sobe e olha.

Isto dizendo, arrebatou-me ao alto de uma montanha. Inclinei os olhos
a uma das vertentes, e contemplei, durante um tempo largo, ao longe,
atravez de um nevoeiro, uma cousa unica. Imagina tu, leitor, uma
reduc��o dos seculos, e um desfilar de todos elles, as ra�as todas,
todas as paix�es, o tumulto dos imperios, a guerra dos appetites e
dos odios, a destrui��o reciproca dos seres e das cousas. Tal era
o expectaculo, acerbo e curioso expectaculo. A historia do homem
e da terra tinha assim uma intensidade que lhe n�o podiam dar nem
a imagina��o nem a sciencia, porque a sciencia � mais lenta e a
imagina��o mais vaga, emquanto que o que eu alli via era a condensa��o
viva de todos os tempos. Para descrevel-a seria preciso fixar o
relampago. Os seculos desfilavam n'um turbilh�o, e, n�o obstante,
porque os olhos do delirio s�o outros, eu via tudo o que passava diante
de mim,--flagellos e delicias,--desde essa cousa que se chama gloria
at� essa outra que se chama miseria, e via o amor multiplicando a
miseria, e via a miseria aggravando a debilidade. Ahi vinham a cobi�a
que devora, a colera que inflamma, a inveja que baba, e a enxada e a
penna, humidas de suor, e a ambi��o, a fome, a vaidade, a melancholia,
a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, at�
destruil-o, como um farrapo. Eram as formas varias de um mal, que ora
mordia a viscera, ora mordia o pensamento, e passeiava eternamente as
suas vestes de arlequim, em derredor da especie humana. A dor cedia
alguma vez, mas cedia � indifferen�a, que era um somno sem sonhos,
ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Ent�o o homem, flagellado e
rebelde, corria diante da fatalidade das cousas, atraz de uma figura
nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpavel, outro
de improvavel, outro de invisivel, cosidos todos a ponto precario,
com a agulha da imagina��o; e essa figura,--nada menos que a chimera
da felicidade,--ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar
pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e ent�o ella ria, como um
escarneo, e sumia-se, como uma illus�o.

Ao contemplar tanta calamidade, n�o pude reter um grito de angustia,
que Natureza ou Pandora escutou sem protestar nem rir; e n�o sei por
que lei de transtorno cerebral, fui eu que me puz a rir,--de um riso
descompassado e idiota.

--Tens raz�o, disse eu, a cousa � divertida e vale a pena,--talvez
monotona--mas vale a pena. Quando Job amaldi�oava o dia em que f�ra
concebido, � porque lhe davam ganas de ver c� de cima o espect�culo.
Vamos l�, Pandora, abre o ventre, e digere-me; a cousa � divertida, mas
digere-me.

A resposta foi compellir-me fortemente a olhar para baixo, e a ver os
seculos que continuavam a passar, velozes e turbulentos, as gera��es
que se superpunham �s gera��es, umas tristes, como os Hebreus do
captiveiro, outras alegres, como os devassos de Commodo, e todas
ellas pontuaes na sepultura. Quiz fugir, mas uma for�a mysteriosa me
retinha os p�s; ent�o disse commigo:--�Bem, os seculos v�o passando,
chegar� o meu, e passar� tambem, at� o ultimo, que me dar� a decifra��o
da eternidade.� E fixei os olhos, e continuei a ver as edades, que
vinham chegando e passando, j� ent�o tranquillo e resoluto, n�o sei
at� se alegre. Talvez alegre. Cada seculo trazia a sua por��o de
sombra e de luz, de apathia e de combate, de verdade e de erro, e o
seu cortejo de systemas, de id�as novas, de novas illus�es; em cada
um delles rebentavam as verduras de uma primavera, e amarelleciam
depois, para remo�ar mais tarde. Ao passo que a vida tinha assim uma
regularidade de calendario, fazia-se a historia e a civilisa��o, e o
homem, nu e desarmado, armava-se e vestia-se, construia o tugurio e
o palacio, a rude ald�a e Thebas de cem portas, creava a sciencia,
que perscruta, e a arte que enleva, fazia-se orador, mecanico,
philosopho, corria a face do globo, descia ao ventre da terra, subia
� esphera das nuvens, collaborando assim na obra mysteriosa, com que
entretinha a necessidade da vida e a melancholia do desamparo. Meu
olhar, enfarado e distrahido*, viu emfim chegar o seculo presente, e
atraz delle os futuros. Aquelle vinha agil, destro, vibrante, cheio
de si, um pouco diffuso, audaz, sabedor, mas ao cabo t�o miseravel
como os primeiros, e assim passou e assim passaram os outros, com a
mesma rapidez e egual monotonia. Redobrei de atten��o; fitei a vista;
ia emfim ver o ultimo,--o ultimo!; mas ent�o j� a rapidez da marcha
era tal, que escapava a toda a comprehens�o; ao p� della o relampago
seria um seculo. Talvez por isso entraram os objectos a trocarem-se;
uns cresceram, outros minguaram, outros perderam-se no ambiente; um
nevoeiro cobriu tudo,--menos o hippopotamo que alli me trouxera, e que
ali�s come�ou a diminuir, a diminuir, a diminuir, at� ficar do tamanho
de um gato. Era effectivamente um gato. Encarei-o bem; era o meu gato
_Sult�o_, que brincava � porta da alcova, com uma bola de papel...




CAPITULO VIII


Raz�o contra Sandice


J� o leitor comprehendeu que era a Raz�o que voltava � casa, e
convidava a Sandice a sair, clamando, e com melhor jus, as palavras de
Tartufo:

     La maison est � moi, c'est � vous d'en sortir.

Mas � sestro antigo da Sandice criar amor �s casas alheias, de modo
que, apenas senhora de uma, difficilmente lh'a far�o despejar. �
sestro; n�o se tira dahi; ha muito que lhe callejou a vergonha. Agora,
se advertirmos no immenso numero de casas que occupa, umas de vez,
outras durante as suas esta��es calmosas, concluiremos que esta amavel
peregrina � o terror dos proprietarios. No nosso caso, houve quasi
um disturbio � porta do meu cerebro, porque a adventicia n�o queria
entregar a casa, e a dona n�o cedia da inten��o de tomar o que era seu.
Afinal, j� a Sandice se contentava com um cantinho no sot�o.

--N�o, senhora, replicou a Raz�o, estou can�ada de lhe ceder sot�os,
can�ada e experimentada, o que voc� quer � passar mansamente do sot�o �
sala de jantar, dahi � de visitas e ao resto.

--Est� bem, deixe-me ficar algum tempo mais, estou na pista de um
mysterio.

--Que mysterio?

--De dous, emendou a Sandice; o da vida e o da morte; pe�o-lhe s� uns
dez minutos.

A Raz�o poz-se a rir.

--Has de ser sempre a mesma cousa... sempre a mesma cousa... sempre a
mesma cousa...

E, dizendo isto, travou-lhe dos pulsos e arrastou-a para f�ra; depois
entrou e fechou-se. A Sandice ainda gemeu algumas supplicas; ainda
grunhiu algumas zangas; mas desenganou-se depressa, deitou a lingua de
f�ra, em ar de surriada, e foi andando... foi andando... Provavelmente
andar� at� � consumma��o dos seculos.




CAPITULO IX


Transi��o


E vejam agora com que destreza, com que fina arte fa�o eu a maior
transi��o deste livro. Vejam: o meu delirio come�ou em presen�a
de Virgilia; Virgilia foi o meu gr�o peccado da juventude; n�o ha
juventude sem meninice; meninice supp�e nascimento; e eis aqui como
chegamos n�s, sem esfor�o, ao dia 20 de outubro de 1805, em que nasci.
Viram? Nenhuma juntura apparente, nada que divirta a atten��o pausada
do leitor; nada. De modo que o livro fica assim com todas as vantagens
do methodo, sem a rigidez do methodo. Na verdade, era tempo. Que isto
de methodo, sendo, como �, uma cousa indispensavel, todavia � melhor
tel-o sem gravata nem suspensorios, mas um pouco � fresca e � solta,
como quem n�o se lhe d� da visinha fronteira, nem do inspector de
quarteir�o. � como a eloquencia, que ha uma genuina e vibrante, de uma
arte natural e feiticeira, e outra tesa, engommada e chocha. Vamos ao
dia 20 de Outubro.




CAPITULO X


Naquelle dia...


Naquelle dia, a arvore dos Cubas brotou uma graciosa flor. Nasci;
recebeu-me nos bra�os a Pascoela, insigne parteira minhota, que
se gabava de ter aberto a porta do mundo a uma gera��o inteira de
fidalgos. N�o � impossivel que meu pae lhe ouvisse tal declara��o;
creio, todavia, que o sentimento paterno � que o induziu a gratifical-a
com duas meias dobras. Lavado e enfaixado, fui desde logo o heroe da
nossa casa. Cada qual prognosticava a meu respeito o que mais lhe
quadrava ao sabor. Meu tio Jo�o, o antigo official de infantaria,
achava-me um certo olhar de Bonaparte, cousa que meu pae n�o p�de ouvir
sem nauseas; meu tio Ildefonso, ent�o simples padre, farejava-me conego.

--Conego � o que elle ha de ser, e n�o digo mais por n�o parecer
orgulho; mas n�o me admiraria nada se Deus o destinasse � um bispado...
� verdade, um bispado; n�o � cousa impossivel. Que diz voc�, mano
Bento?

Meu pae respondia a todos que eu seria o que Deus quizesse; e al�ava-me
ao ar, como se intentasse mostrar-me � cidade e ao mundo; perguntava a
todos se eu me parecia com elle, se era intelligente, bonito...

Digo essas cousas por alto, segundo as ouvi narrar annos depois; ignoro
a m�r parte dos pormenores daquelle famoso dia. Sei que a visinhan�a
veiu ou mandou comprimentar o recem-nascido, e que durante as primeiras
semanas muitas foram as visitas em nossa casa. N�o houve cadeirinha
que n�o trabalhasse; aventou-se muita casaca e muito cal��o; e se h�o
conto os mimos, os beijos, as admira��es, as ben��os, � porque, se os
contasse, n�o acabaria mais o capitulo, e � preciso acabal-o.

Item, n�o posso dizer nada do meu baptizado, porque nada me referiram
a tal respeito, a n�o ser que foi uma das mais galhardas festas do
anuo seguinte, 1806; baptizei-me na egreja de S. Domingos, uma ter�a
feira de mar�o, dia claro, luminoso e puro, sendo padrinhos o coronel
Rodrigues de Mattos e sua senhora. Um e outro descendiam de velhas
familias do norte e honravam dev�ras o sangue que lhes corria nas
veias, outr'ora derramado na guerra contra Hollanda. Cuido que os nomes
de ambos foram das primeiras cousas que aprendi; e certamente os dizia
com muita gra�a, ou revelava algum talento precoce, porque n�o havia
pessoa extranha diante de quem me n�o obrigassem a recital-os.

--Nhonh�, diga a estes senhores como � que se chama seu padrinho.

--Meu padrinho? � o coronel Paulo Vaz Lobo Cezar de Andrade e Souza
Rodrigues de Mattos; minha madrinha � a Excellentissima Senhora D.
Maria Luiza de Macedo Rezende e Souza Rodrigues de Mattos.

--� muito esperto o seu menino, commentavam os ouvintes.

--Muito esperto, concordava meu pae; e os olhos babavam-se-lhe de
orgulho, e elle espalmava a m�o sobre a minha cabe�a, fitava-me longo
tempo, namorado, cheio de si.

Item, comecei a andar, n�o sei bem quando, mas antes do tempo. Talvez
por apressar a natureza, obrigavam-me cedo a agarrar �s cadeiras,
pegavam-me da fralda, davam-me carrinhos de p�u.--S� s�, nhonh�, s� s�,
dizia-me a mucama. E eu, attrahido pelo chocalho de lata, que minha m�e
agitava diante de mim, l� ia para a frente, cahe aqui, cahe acol�; e
andava, provavelmente mal, mas andava, e fiquei andando.




CAPITULO XI


O menino � pai do homen.


Cresci; e nisso � que a familia n�o interveiu; cresci naturalmente,
como crescem as magnolias e os gatos. Talvez os gatos s�o menos
matreiros, e, com certeza, as magnolias s�o menos inquietas do que eu
era na minha infancia. Um poeta dizia que o menino � pae do homem. Se
isto � verdade, vejamos alguns lineamentos do menino.

Desde os cinco annos merecera eu a alcunha de �menino diabo�; e
verdadeiramente n�o era outra cousa; fui dos mais malignos do meu
tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso. Por exemplo, um
dia quebrei a cabe�a de uma escrava, porque me neg�ra uma colh�r do
doce de coco que estava fazendo, e, n�o contente com o maleficio,
deitei um punhado de cinza ao tacho, e, n�o satisfeito da travessura,
fui dizer a minha m�e que a escrava � que estrag�ra o doce �por
pirra�a�; e eu tinha apenas seis annos. Prudencio, um moleque de casa,
era o meu cavallo de todos os dias; punha as m�os no ch�o, recebia um
cordel nos queixos, � guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma
varinha na m�o, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e elle
obedecia,--algumas vezes gemendo,--mas obedecia sem dizer palavra,
ou, quando muito, um--�ai, nhonh�!�--ao que eu retorquia:--�Cala a
boca, besta!�--Esconder os chap�os das visitas, deitar rabos de papel
a pessoas graves, puxar pelo rabicho das cabelleiras, dar belisc�es
nos bra�os das matronas, e outras muitas fa�anhas deste jaez, eram
mostras de um genio indocil, mas devo crer que eram tambem express�es
de um espirito robusto, porque meu pae tinha-me em grande admira��o;
e se �s vezes me reprehendia, � vista de gente, fazia-o por simples
formalidade: em particular dava-me beijos.

N�o se conclua daqui que eu levasse todo o resto da minha vida a
quebrar a cabe�a dos outros nem a esconder-lhes os chap�os; mas
opiniatico, egoista e algo contemptor dos homens, isso fui; se n�o
passei o tempo a esconder-lhes os chap�os, alguma vez lhes puxei pelo
rabicho das cabelleiras.

Outrosim, affei�oei-me � contempla��o da injusti�a humana, inclinei-me
a attenual-a, a explical-a, a classifical-a por partes, a entendel-a,
n�o segundo um padr�o rigido, mas ao sabor das circumstancias e
logares. Minha m�e doutrinava-me a seu modo, fazia-me decorar alguns
preceitos e ora��es; mas eu sentia que, mais do que as ora��es, me
governavam os nervos e o sangue, e a boa regra perdia o espirito, que
a faz viver, para se tornar uma v� formula. De manh�, antes do ming�u,
e de noite, antes da cama, pedia a Deus que me perdoasse, assim como
eu perdoava aos meus devedores; mas entre a manh� e a noite fazia uma
grande maldade, e meu pae, passado o alvoro�o, dava-me pancadinhas na
cara, e exclamava a rir: Ah! bregeiro! ah! bregeiro!

Sim, meu pae adorava-me, tinha-me esse amor sem merito, que � um
simples e forte impulso da carne; amor que a raz�o n�o contrasta
nem r�ge. Minha m�e era uma senhora fraca, de pouco cerebro e muito
cora��o, assaz credula, sinceramente piedosa,--caseira, apezar de
bonita, e modesta, apezar de abastada; temente �s trovoadas e ao
marido. O marido era na terra o seu deus. Da collabora��o dessas duas
creaturas nasceu a minha educa��o, que, se tinha alguma cousa boa, era
no geral viciosa, incompleta, e, em partes, negativa. Meu tio conego
fazia �s vezes alguns reparos ao irm�o; dizia-lhe que elle me dava
mais liberdade do que ensino, e mais affei��o do que emenda; mas meu
pae respondia que applicava na minha educa��o um systema inteiramente
superior ao systema usado; e por este modo, sem confundir o irm�o,
illudia-se a si proprio.

Havia em minha m�e uma sombra de melancholia, que eu herdei, como
herdei de meu pae a fatuidade. Os aspectos da vida accrescentaram-lhe a
natural tendencia. Tinha cora��o de mais, uma sensibilidade melindrosa,
exigente, doentia.

De envolta com a transmiss�o e a educa��o, houve ainda o exemplo
extranho, o meio domestico. Vimos os paes; vejamos os tios. Um delles,
o Jo�o, era um homem de lingua solta, vida galante, conversa picaresca.
Desde os onze annos entrou a admittir-me �s anecdotas, reaes ou n�o,
eivadas todas de obscenidade ou immundicie. N�o me respeitava a
adolescencia, como n�o respeitava a batina do irm�o; com a differen�a
que este fugia logo que elle enveredava por assumpto escabroso. Eu n�o;
deixava-me estar, sem entender nada, a principio, depois entendendo, e
emfim achando-lhe gra�a. No fim de certo tempo, quem o procurava era
eu; e elle gostava muito de mim, dava-me doces, levava-me a passeio. Em
casa, quando l� ia passar alguns dias, n�o poucas vezes me aconteceu
achal-o, no fundo da chacara, no lavadouro, a palestrar com as escravas
que batiam roupa; e ahi � que era um desfiar de anecdotas, de ditos,
de perguntas, e um estalar de risadas, que ninguem podia ouvir, porque
o lavadouro ficava muito longe de casa. As pretas, com uma tanga
no ventre, a arrega�ar-lhes um palmo dos vestidos, umas dentro do
tanque, outras f�ra, inclinadas sobre as pe�as de roupa, a batel-as, a
ensaboal-as, a torcel-as, iam ouvindo e redarguindo �s pilherias do tio
Jo�o, e a commental-as de quando em quando com esta palavra:

--Cruz, diabo!... Este sinh� Jo�o � o diabo!

Bem differente era o tio conego. Esse tinha muita austeridade e
pureza; taes dotes, comtudo, n�o real�avam um espirito superior,
apenas compensavam um espirito mediocre. N�o era homem que visse a
parte substancial da egreja; via o lado externo, a hierarchia, as
preeminencias, as sobrepelizes, as circumflex�es. Vinha antes da
sacristia que do altar. Uma lacuna no ritual excitava-o mais do que
uma infrac��o dos mandamentos. Agora, a tantos annos de distancia,
n�o estou certo se elle poderia atinar facilmente com um trecho de
Tertuliano, ou expor, sem titubear, a historia do symbolo de Nic�a;
mas ninguem, nas festas cantadas, sabia melhor o numero e caso das
cortezias que se deviam ao officiante. Conego foi a unica ambi��o de
sua vida; e dizia de cora��o que era a maior dignidade a que podia
aspirar. Piedoso, severo nos costumes, minucioso na observancia das
regras, frouxo, acanhado, subalterno, possuia algumas virtudes, em que
era exemplar, mas carecia absolutamente da for�a de as incutir, de as
imp�r aos outros.

N�o digo nada de minha tia materna, D. Emerenciana, e ali�s era a
pessoa que mais autoridade tinha sobre mim; essa differen�ava-se
grandemente dos outros; mas viveu pouco tempo em nossa companhia,
uns dous annos. Outros parentes e alguns intimos n�o merecem a pena
de ser citados; n�o tivemos uma vida commum, mas intermittente, com
grandes claros de separa��o. O que importa � a express�o geral do meio
domestico, e essa ahi fica indicada,--vulgaridade de caracteres, amor
das apparencias rutilantes, do arruido, frouxid�o da vontade, dominio
do capricho, e o mais. Dessa terra e desse estrume � que nasceu esta
fl�r.




CAPITULO XII


Um episodio de 1814


Mas eu n�o quero passar adeante, sem contar summariamente um galante
episodio de 1814; tinha nove annos.

Napole�o, quando eu nasci, estava j� em todo o explendor da gloria
e do poder; era imperador e grange�ra inteiramente a admira��o dos
homens. Meu pae, que � for�a de persuadir os outros da nossa nobreza,
acabara persuadindo-se a si proprio, nutria contra elle um odio
puramente mental. Era isso motivo de renhidas contendas em nossa casa,
porque meu tio Jo�o, n�o sei se por espirito de classe e sympathia de
officio, perdoava no despota o que admirava no general, meu tio padre
era inflexivel contra o corso, os outros parentes dividiam-se; dahi as
controversias e as rusgas.

Chegando ao Rio de Janeiro a noticia da primeira qu�da de Napole�o,
houve naturalmente grande abalo em nossa casa, mas nenhum chasco ou
remoque. Os vencidos, testemunhas do regozijo publico, julgaram mais
decoroso o silencio; alguns foram al�m e bateram palmas. A popula��o,
cordialmente alegre, n�o regateou demonstra��es de affecto � real
familia; houve illumina��es, salvas, _Te-Deum_, cortejo e acclama��es.
Figurei nesses dias com um espadim novo, que meu padrinho me dera no
dia de Santo Antonio; e, francamente, interessava-me mais o espadim
do que a qu�da de Bonaparte. Nunca me esqueceu esse phenomeno. Nunca
mais deixei de pensar commigo que o nosso espadim � sempre maior do que
a espada de Napole�o. E notem que eu ouvi muito discurso, quando era
vivo, li muita pagina rumorosa de grandes id�as e maiores palavras, mas
n�o sei porque, no fundo dos applausos que me arrancavam da boca, l�
echoava alguma vez este conceito de experimentado:

--Vae-te embora, tu s� cuidas do espadim.

N�o se contentou a minha familia em ter um quinh�o anonymo no regozijo
publico; entendeu opportuno e indispensavel celebrar a destitui��o
do imperador com um jantar, e tal jantar que o ruido das acclama��es
chegasse aos ouvidos de Sua Alteza, ou, quando menos, de seus
ministros. Dito e feito. Veiu abaixo toda a velha prataria, herdada do
meu av� Luiz Cubas; vieram as toalhas de Flandres, as grandes jarras
da India; matou-se um capado; encommendaram-se �s madres da Ajuda as
compotas e marmeladas; lavaram-se, arearam-se, poliram-se as salas,
escadas, casti�aes, arandellas, as vastas mangas de vidro, todos os
apparelhos do luxo classico.

Dada a hora, achou*-se reunida uma sociedade selecta, o juiz de f�ra,
tres ou quatro officiaes militares, alguns commerciantes e lettrados,
varios funccionarios da administra��o, uns com suas mulheres e filhas,
outros sem ellas, mas todos commungando no desejo de atolar a memoria
de Bonaparte no papo de um per�. N�o era um jantar, mas um _Te-Deum_;
foi o que pouco mais ou menos disse um dos lettrados presentes, o
Dr. Villa�a, glosador insigne, que accrescentou aos pratos de casa o
acepipe das musas. Lembra-me, como se fosse hontem, lembra-me de o ver
erguer-se, com a sua longa cabelleira de rabicho, casaca de seda, uma
esmeralda no dedo, pedir a meu tio padre que lhe repetisse o mote,
e, repetido o mote, cravar os olhos na testa de uma senhora, depois
tossir, al�ar a m�o direita, toda fechada, menos o dedo indice, que
apontava para o tecto; e, assim posto e composto, devolver o mote
glosado. N�o fez uma glosa, mas tres; depois jurou aos seus deuses n�o
acabar mais. Pedia um mote, davam-lh'o, elle glosava-o promptamente,
e logo pedia outro e mais outro; a tal ponto que uma das senhoras
presentes n�o p�de calar a sua grande admira��o.

--A senhora diz isso, retorquia modestamente o Villa�a, porque nunca
ouviu o Bocage, como eu ouvi, no fim do s�culo, em Lisboa. Aquillo sim!
que facilidade! e que versos! Tivemos lutas de uma e duas horas, no
botequim do Nicola, a glosarmos, no meio de palmas e bravos. Immenso
talento o do Bocage! Era o que me dizia, ha dias, a Sra. duqueza de
Cadaval...

E estas tres palavras ultimas, expressas com muita emphasis, produziram
em toda a assembl�a um fremito de admira��o e pasmo. Pois esse homem
t�o dado, t�o simples, al�m de pleitear com poetas, discreteava com
duquezas! Um Bocage e uma Cadaval! Ao contacto de tal homem, as
damas sentiam-se superfinas; os var�es olhavam-n'o com respeito,
alguns com inveja, n�o raros com incredulidade. Elle, entretanto,
ia caminho, a accummular adjectivo sobre adjectivo, adverbio sobre
adverbio, a desfiar todas as rimas de _tyranno_ e de _usurpador._ Era
� sobremeza; ninguem j� pensava em comer. No intervallo das glosas,
corria um borborinho alegre, um palavrear de estomagos satisfeitos;
os olhos, molles e humidos, ou vivos e calidos, espregui�avam-se ou
saltitavam de uma ponta a outra da meza, atulhada de doces e fructas,
aqui o ananaz em fatias, alli o mel�o em talhadas, as compoteiras de
crystal deixando ver o doce de coco, finamente ralado, amarello como
uma gemma,--ou ent�o o melado escuro e grosso, n�o longe do queijo
e do car�. De quando em quando um riso jovial, amplo, desabotoado,
um riso de familia, vinha quebrar a gravidade politica do banquete.
No meio do interesse grande e commum, agitavam-se tambem os pequenos
e particulares. As mo�as fallavam das modinhas que haviam de cantar
ao cravo, e do minuete e do solo inglez; nem faltava matrona que
promettesse bailar um oitavado de compasso, s� para mostrar como
folg�ra nos seus bons tempos de crian�a. Um sujeito, ao p� de mim, dava
a outro noticia recente dos negros novos, que estavam a vir, segundo
cartas que recebera de Loanda, uma carta em que o sobrinho lhe dizia
ter j� negociado cerca de quarenta cabe�as, e outra-carta em que...
Trazia-as justamente na algibeira, mas n�o as podia ler naquella
occasi�o. O que afian�ava � que podiamos contar, s� nessa viagem, uns
cento e vinte negros, pelo menos.

--Tr�s...tr�s...tr�s...fazia o Villa�a batendo com as m�os uma na
outra. O rumor cessava de subito, como um estacado de orchestra,
e todos os olhos se voltavam para o glosador. Quem ficava longe
aconcheava a m�o atraz da orelha para n�o perder palavra; a m�r parte,
antes mesmo da glosa, tinha j� um meio riso de applauso, trivial e
candido.

Quanto a mim, l� estava, solitario e deslembrado, a namorar uma
certa compota da minha fei��o. No fim de cada glosa ficava muito
contente, esperando que fosse a ultima; mas n�o era, e a sobremeza
continuava intacta. Ninguem se lembrava de dar a primeira voz. Meu
pae, � cabeceira, saboreava a goles extensos, a alegria dos convivas,
mirava-se todo nos car�es alegres, nos pratos, nas flores, deliciava-se
com a familiaridade travada entre os mais distantes espiritos, influxo
de um bom jantar. Eu via isso, porque arrastava os olhos da compota
para elle e delle para a compota, como a pedir-lhe que m'a servisse;
mas fazia-o em v�o. Elle n�o via nada; via-se a si mesmo. E as glosas
succediam-se, como bategas d'agua, obrigando-me a recolher o desejo e
o pedido. Pacientei quanto pude; e n�o pude muito. Pedi em voz baixa o
doce; emfim, bradei, berrei, bati com os p�s. Meu pae, que seria capaz
de me dar o sol, se eu lh*'o exigisse, chamou um escravo para me servir
o doce; mas era tarde. A tia Emerenciana arranc�ra-me da cadeira e
entreg�ra-me a uma escrava, n�o obstante os meus gritos e repell�es.

N�o foi outro o delicto do glosador: retard�ra a compota e dera causa
� minha exclus�o. Tanto bastou para que eu cogitasse uma vingan�a,
qualquer que fosse, mas grande e exemplar, cousa que de alguma maneira
o tornasse ridiculo. Que elle era um homem grave o Dr. Villa�a, medido
e lento, quarenta e sete annos, casado e pae. N�o me contentava o
rabo de papel nem o rabicho da cabelleira; havia de ser cousa peor.
Entrei a espreital-o, durante o resto da tarde, a seguil-o, na chacara,
aonde todos desceram a passear. Vi-o conversar com D. Eusebia, irm� do
sargento-m�r Domingues, uma robusta donzellona, que se n�o era bonita,
tambem n�o era feia.

--Estou muito zangada com o senhor, dizia ella.

--Porque?

--Porque ... n�o sei porque ... porque � a minha sina ... creio �s
vezes que � melhor morrer...

Tinham penetrado n'uma pequena moita; era lusco-fusco; eu segui-os. O
Villa�a levava nos olhos umas chispas de vinho e de volupia.

--Deixe-me, disse ella.

--Ninguem nos v�. Morrer, meu anjo? Que id�as s�o essas! Voc� sabe que
eu morrerei tambem ... que digo?... morro todos os dias, de paix�o, de
saudades...

D. Eusebia levou o len�o aos olhos. O glosador vasculhava na memoria
algum peda�o litterario, e achou este, que mais tarde verifiquei ser de
uma das operas do Judeu:

--N�o chores, meu bem; n�o queiras que o dia amanhe�a com duas auroras.

Disse isto; puxou-a para si; ella resistiu um pouco, mas deixou-se ir;
uniram os rostos, e eu ouvi estalar, muito ao de leve, um beijo, o mais
medroso dos beijos.

--O Dr. Villa�a deu um beijo em D. Eusebia! bradei eu correndo pela
chacara.

Foi um estouro esta minha palavra; a estupefac��o immobilisou a todos;
os olhos espraiavam-se a uma e outra banda; trocavam-se sorrisos,
segredos, � socapa, as m�es arrastavam as filhas, pretextando o sereno.
Meu pae puxou-me as orelhas, disfar�adamente, irritado dev�ras com
a indiscri��o; mas no dia seguinte, ao almo�o, lembrando o caso,
sacudiu-me o nariz, a rir:--Ah! brejeiro! ah! brejeiro!




CAPITULO XIII


Um salto


Unamos agora os p�s e demos um salto por cima da eschola, a enfadonha
eschola, onde aprendi a ler, escrever, contar, dar cacholetas,
apanhal-as, e ir fazer diabruras, ora nos morros, ora nas praias, onde
quer que fosse propicio a ociosos.

Tinha amarguras esse tempo; tinha os ralhos, os castigos, as li��es
arduas e longas, e pouco mais, mui pouco e mui leve. S� era pesada a
palmatoria, e ainda assim... � palmatoria, terror dos meus dias pueris,
tu que foste o _compelle intrare_ com que um velho mestre, ossudo e
calvo, me incutiu no cerebro o alphabeto, a prosodia, a syntaxe, e o
mais que elle sabia, benta palmatoria, t�o praguejada dos modernos,
quem me dera ter ficado sob o teu jugo, com a minha alma imberbe, as
minhas ignorancias, e o meu espadim, aquelle espadim de 1814, t�o
superior � espada de Napole�o! Que querias tu, afinal, meu velho mestre
de primeiras lettras? Li��o de c�r e compostura na aula; nada mais,
nada menos do que quer a vida, que � a mestra das ultimas lettras;
com a differenca que tu, se me mettias medo, nunca me metteste zanga.
Vejo-te ainda agora entrar na sala, com as tuas chinellas de couro
branco, capote, len�o na m�o, calva � mostra, barba rapada; vejo-te
sentar, bufar, grunhir, absorver uma pitada inicial, e chamar-nos
depois � li��o. E fizeste isto durante vinte e tres annos, calado,
obscuro, pontual, mettido n'uma casinha da rua do Piolho, sem enfadar
o mundo com a tua mediocridade, at� que um dia d�ste o grande mergulho
nas trevas, e ninguem te chorou, salvo um preto velho,--ninguem, nem
eu, que te devo os rudimentos da escripta.

Chamava-se Ludgero o mestre; quero escrever-lhe o nome todo nesta
pagina: Ludgero Barata,--um nome funesto, que servia aos meninos de
eterno mote a chufas. Um de n�s, o Quincas Borba, esse ent�o era cruel
com o pobre homem. Duas, tres vezes por semana, havia de lhe deixar na
algibeira das cal�as,--umas largas cal�as de enfiar--, ou na gaveta
da mesa, ou ao p� do tinteiro, uma barata morta. Se elle a encontrava
ainda nas horas da aula, dava um pulo, circulava os olhos chammejantes,
dizia-nos os ultimos nomes; eramos sevandijas, capadocios, mal criados,
moleques.--Uns tremiam, outros rosnavam; o Quincas Borba, por�m,
deixava-se estar quieto, com os olhos espetados no ar.

Uma fl�r, o Quincas Borba. Nunca em minha infancia, nunca em toda a
minha vida, achei um menino mais gracioso, inventivo e travesso. Era
a fl�r, e n�o j� da eschola, sen�o de toda a cidade. A m�e, viuva,
com alguma cousa de seu, adorava o filho e trazia-o amimado, aceiado,
enfeitado, com um vistoso pagem atraz, um pagem que nos deixava gazear
a eschola, ir ca�ar ninhos de passaros, ou perseguir lagartixas no
morro do Livramento e da Concei��o, ou simplesmente arruar, � toa,
como dous peraltas sem emprego. E de imperador! Era um gosto ver o
Quincas Borba fazer de imperador nas festas do Espirito Santo. De
resto, nos nossos jogos pueris, elle escolhia sempre um papel de rei,
ministro, general, uma supremacia, qualquer que fosse. Tinha garbo o
traquinas, e gravidade, certa magnificencia nas attitudes, nos meneios.
Quem diria que... Suspendamos a penna; n�o adeantemos os successos.
Fujamos sobretudo desse passado t�o remoto, t�o coberto, ai de mim! de
cruzes funebres. Vamos do um salto a 1822, data da nossa independencia
politica, e do meu primeiro captiveiro pessoal.




CAPITULO XIV


O primeiro beijo


Tinha dezesete annos; pungia-me um bu�osinho que eu forcejava por
trazer a bigode. Os olhos, vivos e resolutos, eram a minha fei��o
verdadeiramente mascula. Como ostentasse certa arrogancia, n�o se
distinguia bem se era uma crian�a com fumos de homem, se um homem
com ares de menino. Ao cabo, era um lindo gar��o, lindo e audaz, que
entrava na vida de botas e esporas, chicote na m�o e sangue nas veias,
cavalgando um corsel nervoso, rijo, veloz, como o corsel das antigas
balladas, que o romantismo foi buscar ao castello medieval, para dar
com elle nas ruas do nosso seculo. O peor � que o estafaram a tal
ponto, que foi preciso deital-o � margem, onde o realismo o veiu achar,
comido de lazeira e vermes, e, por compaix�o, o transportou para os
seus livros.

Sim, eu era esse gar��o bonito, airoso, abastado; e facilmente
se imagina que mais de uma dama inclinou deante de mim a fronte
pensativa, ou levantou para mim os olhos cobi�osos. De todas por�m a
que me captivou logo foi um ... uma ... n�o sei se diga; este livro �
casto, ao menos na inten��o; na inten��o � castissimo. Mas v� l�; ou se
ha de dizer tudo ou nada. A que me captivou foi uma dama hespanhola,
Marcella, a �linda Marcella�, como lhe chamavam os rapazes do tempo.
E tinham raz�o os rapazes. Era filha de um hortel�o das Asturias;
disse-m'o ella mesma, n'um dia de sinceridade, porque a opini�o aceita
� que nascera de um lettrado de Madrid, victima da invas�o franceza,
ferido, encarcerado, espingardeado, quando ella tinha apenas doze
annos. _Cosas de Espa�a._ Quem quer que fosse, por�m, o pae, lettrado
ou hortel�o, a verdade � que Marcella n�o possuia a innocencia rustica,
e mal chegava a entender a moral do codigo. Era boa mo�a, lepida,
sem escrupulos, um pouco tolhida pela austeridade do tempo, que lhe
n�o permittia arrastar pelas ruas os seus estouvamentos e berlindas;
luxuosa, impaciente, amiga de dinheiro e de rapazes. Naquelle anno,
morria ella de amores por um certo Xavier, sujeito abastado e
tisico,--uma perola.

Vi-a, pela primeira vez, no Rocio Grande, na noite das luminarias, logo
que constou a declara��o da independencia, uma festa de primavera, um
amanhecer da alma publica. Eramos dous rapazes, o povo e eu; vinhamos
da infancia, com todos os arrebatamentos da juventude. Vi-a sahir
de uma cadeirinha, airosa e vistosa, um corpo esbelto, ondulante,
um desgarre, alguma cousa que nunca achara nas mulheres puras.
--Segue-me, disse ella ao pagem. E eu segui-a, t�o pagem como o outro,
como se a ordem me fosse dada, deixei-me ir namorado, vibrante, cheio
das primeiras auroras. A meio caminho, chamaram-lhe �linda Marcella�,
lembrou-me que ouvira tal nome a meu tio Jo�o, e fiquei, confesso que
fiquei tonto.

Tres dias depois perguntou-me meu tio, em segredo, se queria ir a uma
ceia de mo�as, nos Cajueiros. Fomos; era em casa de Marcella. O Xavier,
com todos os seus tuberculos, presidia ao banquete nocturno, em que
eu pouco ou nada comi, porque s� tinha olhos para a dona da casa.
Que gentil que ella estava a hespanhola! Havia mais uma meia duzia
de mulheres,--todas de partido--, e bonitas, cheias de gra�a, mas a
hespanhola... O enthusiasmo, alguns goles de vinho, o genio imperioso,
estouvado, tudo isso me levou a fazer uma cousa unica; � sahida, �
porta da rua, disse a meu tio que esperasse um instante, e tornei a
subir as escadas.

--Esqueceu alguma cousa? perguntou Marcella de p�, no patamar.

--O len�o.

Ella ia abrir-me caminho para tornar � sala; eu segurei-lhe nas m�os,
puxei-a para mim, e dei-lhe um beijo. N�o sei se ella disse alguma
cousa, se gritou, se chamou alguem; n�o sei nada; sei que desci outra
vez as escadas, veloz como um tuf�o, e incerto como um ebrio.




CAPITULO XV


Marcella


Gastei trinta dias para ir do Rocio Grande ao cora��o de Marcella,
n�o j� cavalgando o corsel do c�go desejo, mas o asno da paci�ncia,
a um tempo manhoso e teimoso. Que, na verdade, ha dous meios de
grangear a vontade das mulheres: o violento, como o touro de Europa,
e o insinuativo, como o cysne de Leda e a chuva de ouro de Danae,
tres inventos do padre Zeus, que, por estarem f�ra da moda, ahi ficam
trocados no cavallo e no asno. N�o direi as tra�as que urdi, nem
as pitas, nem as alternativas de confian�a e temor, nem as esperas
baldadas, nem nenhuma outra dessas cousas preliminares. Affirmo-lhes
que o asno foi digno do corsel,--um asno de Sancho, deveras philosopho,
que me levou � casa della, no fim do citado periodo; apeei-me, bati-lhe
na anca e mandei-o pastar.

Primeira commo��o da minha juventude, que doce que me foste! Tal devia
ser, na crea��o biblica, o effeito do primeiro sol. Imagina tu esse
effeito do primeiro sol, a bater de chapa na face de um mundo em flor.
Pois foi a mesma cousa, leitor amigo, e se alguma vez contaste dezoito
annos, deves lembrar-te que foi assim mesmo.

Teve duas phases a nossa paix�o, ou liga��o, ou qualquer outro nome,
que eu de nomes n�o curo; teve a phase consular e a phase imperial.
Na primeira, que foi curta, regemos o Xavier e eu, sem que elle
jamais acreditasse dividir commigo o governo de Roma; mas, quando a
credulidade n�o p�de resistir � evidencia, o Xavier depoz as insignias,
e eu concentrei todos os poderes na minha m�o; foi a phase cesariana.
Era meu o universo; mas, ai triste! n�o o era de gra�a. Foi-me preciso
colligir dinheiro, multiplical-o, invental-o. Primeiro explorei as
larguezas de meu pae; elle dava-me tudo o que eu lhe pedia, sem
reprehens�o, sem demora, sem frieza; dizia a todos que eu era rapaz
e que elle o fora tambem. Mas a tal extremo chegou o abuso, que elle
restringiu um pouco as franquezas, depois mais, depois mais. Ent�o
recorri a minha m�e, e induzi-a a desviar alguma cousa, que me dava �s
escondidas. Era pouco; lancei m�o de um recurso ultimo: entrei a saccar
sobre a heran�a de meu pae, a assignar obriga��es, que devia resgatar
um dia com usura.

--Na verdade, dizia-me Marcella, quando eu lhe levava alguma seda,
alguma joia; na verdade, voc� quer brigar commigo... Pois isto � cousa
que se fa�a... um presente t�o caro...

E, se era joia, dizia isto a contemplal-a entre os dedos, a procurar
melhor luz, a ensaial-a em si, e a rir, e a beijar-me com uma
reincidencia impetuosa e sincera; mas, protestando, derramava-se-lhe
a felicidade dos olhos, e eu sentia-me feliz com v�l-a assim. Gostava
muito das nossas antigas dobras de ouro, e eu levava-lhe quantas podia
obter; Marcella juntava-as todas dentro de uma caixinha de ferro,
cuja chave ninguem nunca j�mais soube onde ficava; escondia-a por
medo dos escravos. A casa em que morava, nos Cajueiros, era propria.
Eram solidos e bons os moveis, de jacarand� lavrado, e todas as
demais alfaias, espelhos, jarras, baixella,--uma linda baixella da
India, que lhe do�ra um desembargador. Baixella do diabo, deste-me
grandes repell�es aos nervos. Disse-o muita vez � pr�pria dona;
n�o lhe dissimulava o tedio que me faziam esses e outros despojos
dos seus amores de antanho. Ella ouvia-me e ria, com uma express�o
candida,--candida e outra cousa, que eu nesse tempo n�o entendia bem;
mas agora, relembrando o caso, penso que era um riso mixto, como devia
ter a creatura que nascesse, por exemplo, de uma bruxa de Shakespeare
com um seraphim de Klopstock. N�o sei se me explico. E porque tinha
noticia dos meus zelos tardios, parece que gostava de os a�ular mais.
Assim foi que um dia, como eu lhe n�o pudesse dar certo collar, que
ella vira n'um joalheiro, retorquiu-me que era um simples gracejo, que
o nosso amor n�o precisava de t�o vulgar estimulo.

--N�o lhe perd�o, se voc� fizer de mim essa triste id�a, concluiu
amea�ando-me com o dedo.

E logo, subita como um passarinho, espalmou as m�os, cingiu-me com
ellas o rosto, puxou-me a si e fez um tregeito gracioso, um momo de
crian�a. Depois, reclinada na marqueza, continuou a fallar daquillo,
com simplicidade e franqueza. J�mais consentiria que lhe comprassem os
affectos. Vendera muita vez as apparencias, mas a realidade, guardava-a
para poucos. O Duarte, por exemplo, o alferes Duarte, que ella am�ra
dev�ras, dous annos antes, s� a custo conseguia dar-lhe alguma cousa de
valor, como me acontecia a mim; ella s� lhe aceitava sem reluctancia os
mimos de escasso pre�o, como a cruz de ouro, que lhe deu, uma vez, de
festas.

--Esta cruz...

Dizia isto, mettendo a m�o no seio e tirando uma cruz fina, de ouro,
presa a uma fita azul e pendurada ao collo.

--Mas essa cruz, observei eu, n�o me disseste que era teu pae que...

Marcella abanou a cabe�a com um ar de lastima:

--N�o percebeste* que era mentira, que eu dizia isso para te n�o
molestar? Vem c�, _chiquito_, n�o sejas assim desconfiado commigo...
Amei a outro; que importa, se acabou? Um dia, quando nos separarmos...

--N�o digas isso! bradei eu.

--Tudo cessa! Um dia...

N�o p�de acabar; um solu�o estrangulou-lhe a voz; estendeu as m�os,
tomou das minhas, conchegou-me ao seio, e sussurrou-me baixo ao
ouvido:--Nunca, nunca, meu amor! Eu agradeci-lh'o com os olhos
humidos. No dia seguinte levei-lhe o collar que havia recusado.

--Para te lembrares de mim, quando nos separarmos, disse eu.

Marcella teve primeiro um silencio indignado; depois fez um gesto
magnifico: tentou atirar o collar � rua. Eu retive-lhe o bra�o;
pedi-lhe muito que n�o me fizesse tal desfeita, que ficasse com a joia.
Sorriu e ficou.

Entretanto, pagava-me � farta os sacrif�cios; espreitava os meus mais
reconditos pensamentos; n�o havia desejo a que n�o acudisse com alma,
sem esfor�o, por uma especie de lei da consciencia e necessidade
do cora��o. Nunca o desejo era razoavel, mas um capricho puro, uma
criancice, vel-a trajar de certo modo, com taes e taes enfeites, este
vestido e n�o aquelle, ir a passeio ou outra cousa assim, e ella cedia
a tudo, risonha e palreira.

--Voc� � das Arabias, dizia-me.

E ia p�r o vestido, a renda, os brincos, com uma obediencia de
encantar.




CAPITULO XVI


Uma reflex�o immoral


Occorre-me uma reflex�o immoral, que � ao mesmo tempo uma correc��o de
estylo. Cuido haver dito, no cap. XIII, que Marcella morria de amores
pelo Xavier. N�o morria, vivia. Viver n�o � a mesma cousa que morrer
assim o affirmam todos os joalheiros desse mundo, gente muito vista
na grammatica. Bons joalheiros, que seria do amor se n�o fossem os
vossos dixes e fiados? Um ter�o ou um quinto do universal commercio
dos cora��es. Esta � a reflex�o immoral que eu pretendia fazer, a qual
� ainda mais obscura do que immoral, porque n�o se entende bem o que
eu quero dizer. O que eu quero dizer � que a mais bella testa do mundo
n�o fica menos bella, se a cingir um diadema de pedras finas; nem menos
bella, nem menos amada. Marcella, por exemplo, que era bem bonita,
Marcella amou-me...




CAPITULO XVII


Do trapezio e outras cousas


... Marcella amou-me durante quinze mezes e onze contos de r�is; nada
menos. Meu pae, logo que teve aragem dos onze contos, sobresaltou-se
dev�ras; achou que o caso excedia as raias de um capricho juvenil.

--Desta vez, disse elle, vaes para a Europa; vaes cursar uma
Universidade, provavelmente Coimbra; quero-te para homem serio e n�o
para arruador e gatuno. E como eu fizesse um gesto de espanto:--Gatuno,
sim, senhor; n�o � outra cousa um filho que me faz isto...

Saccou da algibeira os meus titulos de divida, j� resgatados por elle,
e sacudiu-m'os na cara;--V�s, peralta? � assim que um mo�o deve zelar o
nome dos seus? Pensas que eu e meus av�s ganh�mos o dinheiro em* casas
de jogo ou a vadiar pelas ruas? Pelintra! Desta vez ou tomas juizo, ou
ficas sem cousa nenhuma.

Estava furioso; mas de um furor temperado e curto. Eu ouvi-o calado, e
nada oppuz � ordem da viagem, como de outras vezes fizera; ruminava, a
id�a de levar Marcella commigo. Fui ter com ella; expuz-lhe a crise e
fiz-lhe a proposta. Marcella ouviu-me com os olhos no ar, sem responder
logo; como insistisse, disse-me que ficava, que n�o podia ir para a
Europa.

--Porque n�o?

--N�o posso, disse ella com ar dolente; n�o posso ir respirar aquelles
ares, emquanto me lembrar de meu pobre pae, morto por Napole�o...

--Qual delles: o hortel�o ou o advogado?

Marcella franziu a testa, cantarolou uma seguidilha, entre dentes;
depois queixou-se do calor, e mandou vir um copo de alu�. Trouxe-lh'o
a mucama, n'uma salva de prata, que fazia parte dos meus onze contos.
Marcella offereceu-me polidamente o refresco; minha resposta foi dar
com a m�o no copo e na salva; entornou-se-lhe o liquido no rega�o, a
preta deu um grito, eu bradei-lhe que se fosse embora. Ficando a s�s,
derramei todo o desespero de meu cora��o; disse-lhe que ella era um
monstro, que j�mais me tivera amor, que me deixara descer a tudo, sem
ter ao menos a desculpa da sinceridade; chamei-lhe muitos nomes feios,
fazendo muitos gestos descompostos. Marcella deix�ra-se estar sentada,
a estalar as unhas nos dentes, fria como um peda�o de marmore. Tive
impetos de a estrangular, de a humiliar ao menos, subjugando-a a meus
p�s. Ia talvez fazel-o; mas a ac��o trocou-se n'outra; fui eu que me
atirei aos p�s della, contricto e supplice; beijei-lh'os, recordei
aquelles mezes da nossa felicidade solitaria, repeti-lhe os nomes
queridos de outro tempo, sentado no ch�o, com a cabe�a entre os joelhos
della, apertando-lhe muito as m�os; offegante, desvairado, pedi-lhe com
lagrymas que me n�o desamparasse... Marcella esteve alguns instantes a
olhar para mim, calados ambos, at� que brandamente me desviou e, com um
ar enfastiado:

--N�o me aborre�a, disse.

Levantou-se, sacudiu o vestido, ainda molhado, e caminhou para a
alcova.--N�o! bradei eu; n�o has de entrar... n�o quero... Ia a
lan�ar-lhe as m�os: era tarde; ella entr�ra e fechara-se.

Sahi desatinado; gastei duas mortaes horas a vaguear pelos bairros mais
excentricos e desertos, onde fosse difficil dar commigo. Ia mastigando
o meu desespero, com uma especie de gula morbida; evocava os dias, as
horas, os instantes de delirio, e ora me comprazia em crer que elles
eram eternos, que tudo aquillo era um pesadelo, ora, enganando-me a mim
mesmo, tentava rejeital-os de mim, como um fardo inutil. Ent�o resolvia
embarcar immediatamente para cortar a minha vida em duas metades, e
deleitava-me com a id�a de que Marcella, sabendo da partida, ficaria
ralada de saudades e remorsos. Que ella amara-me a tonta, devia de
sentir alguma cousa, uma lembran�a qualquer, como do alferes Duarte...
Nisto, o dente do ciume enterrava-se-me no cora��o; e toda a natureza
me bradava que era preciso levar Marcella commigo.

--Por for�a... por for�a... dizia eu ferindo o ar com uma punhada.

Emfim, tive uma id�a salvadora... Ah! trapezio dos meus peccados,
trapezio das concep��es abstrusas! A id�a salvadora trabalhou nelle,
como a do emplasto (cap. II.). Era nada menos que fascinal-a,
fascinal-a muito, deslumbral-a, arrastal-a; lembrou-me pedir-lhe por
um meio mais concreto do que a supplica. N�o medi as consequencias;
recorri a um derradeiro emprestimo; fui � rua dos Ourives, comprei a
melhor joia da cidade, tres diamantes grandes, encastoados n'um pente
de marfim; corri � casa de Marcella.

Marcella estava reclinada n'uma rede, o gesto molle e can�ado, uma das
pernas pendentes, a ver-se-lhe o p�sinho cal�ado de meia de seda, os
cabellos soltos, derramados, o olhar quieto e somnolento.

--Vem commigo, disse eu, arranjei recursos...temos muito dinheiro,
ter�s tudo o que quizeres...Olha, toma.

E mostrei-lhe o ponte com os diamantes, Marcella teve um leve
sobresalto; a pupilla rutilou como a de um gavi�o faminto; ella ergueu
metade do corpo, e, apoiada n'um cotovello, olhou para o pente durante
alguns instantes curtos; depois retirou os olhos; tinha se dominado.
Ent�o, eu lancei-lhe as m�os aos cabellos, colligi-os, enlacei-os �
pressa, improvisei um toucado, sem nenhum alinho, e rematei-o com o
pente de diamantes; recuei, tornei a aproximar-me, corrigi-lhe as
madeixas, abaixei-as do um lado, busquei alguma symetria naquella
desordem, tudo com unia minuciosidade e um carinho de m�e.

--Prompto, disse eu.

--Doudo! foi a sua primeira resposta.

A segunda foi puxar-me para si, e pagar-me o sacrificio com um beijo, o
mais ardente de todos. Depois tirou o pente, admirou muito a materia e
o lavor, olhando a espa�os para mim, e abanando a cabe�a, com um ar de
reprehens�o:

--Ora voc�! dizia.

--Vens commigo?

Marcella reflectiu um instante. N�o gostei da express�o com que
passeava os olhos de mim para a parede, e da parede para a joia;
mas toda a m� impress�o se desvaneceu, quando ella me respondeu
resolutamente:

--Vou. Quando embarcas?

--Daqui a dous ou tres dias.

--Vou.

Agradeci-lh'o de joelhos. Tinha achado a minha Marcella dos primeiros
dias, e disse-lh'o; ella sorriu, e foi guardar a joia, emquanto eu
descia a escada.




CAPITULO XVIII


Vis�o do corredor


No fim da escada, ao fundo do corredor escuro, parei alguns instantes
para respirar, apalpar-me, convocar as id�as dispersas, rehaver-me
emfim no meio de tantas sensa��es profundas e contrarias. Achava-me
feliz. Certo � que os diamantes corrompiam-me um pouco a felicidade;
mas n�o � menos certo que uma dama bonita pode muito bem amar os gregos
e os seus presentes. E depois eu confiava na minha boa Marcella; podia
ter defeitos, mas amava-me...

--Um anjo! murmurei eu olhando para o tecto do corredor.

E ahi, como um escarneo, vi o olhar de Marcella, aquelle olhar que
pouco antes me dera uma sombra de desconfian�a, o qual chispava de
cima de um nariz, que era ao mesmo tempo o nariz de Bakbarah e o meu.
Pobre namorado das _Mil e uma noites!_ Vi-te alli mesmo correr atraz da
mulher do vizir, ao longo da galeria, ella a acenar-te com a posse,
e tu a correr, a correr, a correr, at� a alameda comprida, donde
sahiste � rua, onde todos os correeiros te apuparam e desancaram. Ent�o
pareceu-me que o corredor de Marcella era a alameda, e que a rua era a
de Bagdad. Com effeito, olhando para a porta, vi na cal�ada, tres dos
correeiros, um de batina, outro de libr�, outro � paisana, os quaes
todos tres entraram no corredor, tomaram-me pelos bra�os, metteram-me
n'uma sege, meu pae � direita, meu tio conego � esquerda, o da libr�
na bol�a, e l� me levaram � casa do intendente de policia, donde fui
transportado a uma galera que devia seguir para Lisboa. Imaginem se
resisti; mas toda a resistencia era inutil.

Tres dias depois segui barra f�ra, abatido e mudo. N�o chorava sequer;
tinha uma id�a fixa... Malditas id�as fixas! A dessa occasi�o era dar
um mergulho no oceano, repetindo o nome de Marcella.




CAPITULO XIX


A bordo


Eramos onze passageiros, um homem doudo, acompanhado pela mulher, dous
rapazes que iam a passeio, quatro commerciantes e dous criados. Meu
pae recommendou-me a todos, come�ando pelo capit�o do navio, que ali�s
tinha muito que cuidar de si, porque, al�m do mais, levava a mulher
tisica em ultimo gr�u.

N�o sei se o capit�o suspeitou alguma cousa do meu funebre projecto, ou
se meu pae o poz de sobreaviso; sei que n�o me tirava os olhos de cima;
chamava-me para toda a parte. Quando n�o podia estar commigo, levava-me
para a mulher. A mulher ia quasi sempre n'uma camilha raza, a tossir
muito, e a afian�ar que me havia de mostrar os arredores de Lisboa.
N�o estava magra, estava transparente; era impossivel que n�o morresse
de uma hora para outra. O capit�o fingia n�o crer na morte proxima,
talvez por enganar-se a si mesmo. Eu n�o sabia nem pensava nada. Que
me importava a mim o destino de uma mulher tisica, no meio do oceano? O
mundo para mim era Marcella.

Uma noite, logo no fim do uma semana, achei ensejo propicio para
morrer. Subi cauteloso, mas encontrei o capit�o, que junto � amurada,
tinha os olhos fitos no horizonte.

--Algum temporal? disse eu.

--N�o, respondeu elle estremecendo; n�o; admiro o explendor da noite.
Veja; est� celestial!

O estylo desmentia da pessoa, assaz rude e apparentemente alheia a
locu��es rebuscadas. Fitei-o; elle pareceu saborear o meu espanto.
No fim de alguns segundos, pegou-me na m�o e apontou para a lua,
perguntando-me porque n�o fazia uma ode � noite; respondi-lhe que n�o
era poeta. O capit�o rosnou alguma cousa, deu dous passos, metteu a
m�o no bolso, saccou um peda�o de papel, muito amarrotado; depois, �
luz de uma lanterna, leu uma ode horaciana sobre a liberdade da* vida
maritima. Eram versos delle.

--Que tal?

N�o me lembra o que lhe disse; lembra-me que elle me apertou a m�o
com muita for�a e muitos agradecimentos; logo depois recitou-me dous
sonetos; ia recitar-me outro, quando o vieram chamar da parte da
mulher.--L� vou, disse elle; e recitou-me o terceiro soneto, com pausa,
com amor.

Fiquei s�; mas a musa do capit�o varrera-me do espirito os pensamentos
m�us; preferi dormir, que � modo interino de morrer. No dia seguinte,
acordamos debaixo de um temporal, que metteu medo a toda a gente,
menos ao doudo; esse entrou a dar pulos, a dizer que a filha o mandava
buscar, n'uma berlinda; a morte de uma filha f�ra a causa da loucura.
N�o, nunca me ha de esquecer a figura hedionda do pobre homem, no
meio do tumulto das gentes e dos uivos do furac�o, a cantarolar e a
bailar, com os olhos a saltarem-lhe da cara, pallido, a coma hirsuta,
descomposta. �s* vezes parava, erguia ao ar as m�os ossudas, fazia
umas cruzes com os dedos, depois um xadrez, depois umas argolas, e ria
muito, desesperadamente. A mulher n�o podia j� cuidar delle; entregue
ao terror da morte, rezava por si mesma a todos os santos do c�u.*
Emfim, a tempestade amainou depois de longas horas; e confesso que foi
uma divers�o excellente � tempestade do meu cora��o. Eu, que meditava
ir ter com a morte, n�o ousei fital-a quando ella veiu ter commigo.

Amainou o temporal, o capit�o veiu perguntar-me se tivera medo, se
estivera em risco, se n�o ach�ra sublime o expectaculo; tudo isso com
um interesse de amigo. Naturalmente a conversa versou sobre a vida do
mar; o capit�o perguntou-me se n�o gostava de idyllios piscatorios; eu
respondi-lhe ingenuamente que n�o sabia o que era.

--Vae ver, respondeu elle.

E recitou-me um poemasinho, depois outro,--uma egloga,--e emfim cinco
sonetos, com os quaes rematou nesse dia a confidencia litteraria. No
dia seguinte, antes de me recitar nada, explicou-me o capit�o que s�
por motivos graves abra�ara a profiss�o maritima, porque a av� queria
que elle fosse padre, e com effeito possuia algumas lettras latinas;
n�o chegou a ser padre, mas n�o deixou de ser poeta, que era a sua
voca��o natural; e em prova de que tal era a sua voca��o, recitou-me
logo, de corpo presente, uma centena de versos. Notei um phenomeno: os
ademanes que elle usava eram taes, que uma vez me fizeram rir; mas o
capit�o, quando recitava, de tal sorte olhava para dentro de si mesmo,
que n�o viu nem ouviu nada.

Os dias passavam, e as aguas, e os versos, e com elles ia tambem
passando a vida da mulher. Estava por pouco. Um dia, logo depois do
almo�o, disse-me o capit�o que a enferma talvez n�o chegasse ao fim da
semana.

--J�! exclamei.

--Passou muito mal a noite.

Fui vel-a; achei-a, na verdade, quasi moribunda, mas fallando ainda de
descan�ar em Lisboa alguns dias, antes de ir commigo a Coimbra, porque
era seu proposito levar-me � Universidade. Deixei-a consternado; fui
achar o marido a olhar para as vagas, que vinham morrer na costado
do navio, e tratei de o consolar; elle agradeceu-me, relatou-me a
historia dos seus amores, elogiou a fidelidade e a dedica��o da
mulher, relembrou os versos que lhe fez, e recitou-m'os. Neste ponto
vieram buscal-o da parte della; corremos ambos; era uma crise. Esse
e o dia seguinte foram crueis; o terceiro foi o da morte; eu fugi
ao expectaculo, tinha-lhe repugnancia. Meia hora depois encontrei o
capit�o, sentado n'um m�lho de cabos, com a cabe�a nas m�os; disse-lhe
alguma cousa de conforto.

--Morreu como uma santa, respondeu elle; e, para que estas palavras
n�o pudessem ser levadas � conta de fraqueza, ergueu-se logo, sacudiu
a cabe�a, e fitou o horizonte, com um gesto longo e profundo.--Vamos,
continuou, entreguemol-a � cova que nunca mais se abre.

Effectivamente, poucas horas depois, era o cadaver lan�ado ao mar,
com as ceremonias do costume. A tristeza murch�ra todos os rostos;
o do viuvo trazia a express�o de um cabe�o rijamente lascado pelo
raio. Grande silencio. A vaga abriu o ventre, acolheu o despojo,
fechou-se,--uma leve ruga,--e a galera foi andando. Eu deixei-me estar
alguns minutos, � popa, com os olhos naquelle ponto incerto do mar em
que ficava um de n�s... Fui dalli ter com o capit�o, para distrahil-o.

--Obrigado, disse-me elle comprehendendo a inten��o; creia que nunca me
esquecerei dos seus bons servi�os. Deus � que lh'os ha de pagar. Pobre
Leocadia! tu te lembrar�s de n�s no ceu.

Enxugou com a manga uma lagrima importuna; eu busquei um derivativo na
poesia, que era a paix�o delle. Fallei-lhe dos versos, que me lera,
e offereci-me para imprimil-os. Os olhos do capit�o animaram-se um
pouco.--Talvez aceite, disse elle; mas n�o sei... s�o bem frouxos
versos. Jurei-lhe que n�o; pedi que os reunisse e me d�sse antes do
desembarque.

--Pobre Leocadia! murmurou elle sem responder ao pedido. Um cadaver...
o mar... o ceu... o navio...

No dia seguinte veiu ler-me um epicedio composto de fresco, em que
estavam memoradas as circumstancias da morte e da sepultura da
mulher; leu-m'o com a voz commovida dev�ras, e a m�o tremula; no fim
perguntou-me se os versos eram dignos do thesouro que perdera.

--S�o, disse eu.

--N�o haver� estro, ponderou elle, no fim de um instante, mas ninguem
me negar� sentimento, se n�o � que o proprio sentimento prejudicou a
perfei��o....

--N�o me parece; acho os versos perfeitos.

--Sim, eu creio que... Versos de marujo.

--De marujo poeta.

Elle levantou os hombros, olhou para o papel, e tornou a recitar
a composi��o, mas j� ent�o sem tremuras, accentuando as inten��es
litterarias, dando relevo �s imagens e melodia aos versos. No fim,
confessou-me que era a sua obra mais acabada, eu disse-lhe que sim;
elle apertou-me muito a m�o e predisse-me um grande futuro.




CAPITULO XX


Bacharelo-me


Um grande futuro! Em quanto esta palavra me batia no ouvido, devolvia
eu os olhos, ao longe, no horizonte mysterioso e vago. Uma id�a
expellia outra, a ambi��o desmontava Marcella. Um grande futuro?
Talvez naturalista, litterato, archeologo, banqueiro, politico, ou at�
bispo,--bispo que fosse,--uma vez que fosse um cargo, uma preeminencia,
uma grande reputa��o, uma posi��o superior. A ambi��o, dado que fosse
aguia, quebrou nessa occasi�o o ovo, e desvendou a pupilla fulva e
penetrante. Adeus, amores; adeus, Marcella; dias de delirio, joias
sem pre�o, vida sem regimen, adeus. C� me vou �s fadigas e � gloria;
deixo-vos com as calcinhas da primeira edade.

E foi assim que desembarquei em Lisboa e segui para Coimbra. A
Universidade esperava-me com as suas materias arduas, e n�o sei
se profundas; estudei-as muito mediocremente, e nem por isso perdi
o gr�u de bacharel; deram-m'o com a solemnidade do estylo, ap�s
os annos da lei; uma bella festa que me encheu de orgulho e de
saudades,--principalmente de saudades. Tinha eu conquistado em Coimbra
uma grande nomeada de foli�o; era um academico estroina, superficial,
tumultuario e petulante, dado �s aventuras, fazendo romantismo pratico
e liberalismo theorico, vivendo na pura f� dos olhos pretos e das
constitui��es escriptas. No dia em que a Universidade me attestou, em
pergaminho, uma sciencia que eu estava longe de trazer arraigada no
cerebro, confesso que me achei de de algum modo logrado, ainda que
orgulhoso. Explico-me: o diploma era uma carta de alforria; se me dava
a liberdade, dava-me a responsabilidade. Guardei-o, deixei as margens
do Mondego, e vim por alli f�ra assaz desconsolado, mas sentindo j�
uns impetos, uma curiosidade, um desejo de acotovellar os outros, de
influir, de gozar, de viver,--de prolongar a Universidade pela vida
adeante...




CAPITULO XXI


O almocreve


Vae ent�o, empacou o jumento em que eu vinha montado; fustiguei-o, elle
deu dous corcovos, depois mais tres, emfim mais um, que me sacudiu
f�ra da sella, e com tal desastre, que o p� esquerdo me ficou preso no
estribo; tento agarrar-me ao ventre do animal, mas j� ent�o, espantado,
disparou pela estrada f�ra. Digo mal: tentou disparar, e effectivamente
deu dous saltos, mas um almocreve, que alli estava, acudiu atempo de
lhe pegar na redea e detel-o, n�o sem esfor�o nem perigo. Dominado o
bruto, desvencilhei-me do estribo e puz-me de p�.

--Olhe do que vosmec� escapou, disse o almocreve.

E era verdade; se o jumento corre por alli f�ra, contundia-me
dev�ras, e n�o sei se a morte n�o estaria no fim do desastre; cabe�a
partida, uma congest�o, qualquer transtorno c� dentro; e l� se me
ia a bacharelice em flor. O almocreve salvara-me talvez a vida;
era positivo; eu sentia-o no sangue que me agitava o cora��o. Bom
almocreve! emquanto eu tornava � consciencia de mim mesmo, elle cuidava
de concertar os arreios do jumento, com muito zelo e arte. Resolvi
dar-lho tres moedas de ouro das cinco que trazia commigo; n�o porque
tal fosse o pre�o da minha vida,--essa era inestimavel; mas por que era
uma recompensa digna da dedica��o com que elle me salvou. Est� dito,
dou-lhe as tres moedas.

--Prompto, disse elle apresentando-me a redea da cavalgadura.

--Daqui a nada, respondi; deixa-me, que ainda n�o estou em mim...

--Ora qual!

--Pois n�o � certo que ia morrendo?

--Se o jumento corre por ahi f�ra, � possivel; mas, com a ajuda do
Senhor, viu vosmec� que n�o aconteceu nada.

Fui aos alforges, tirei um collete velho, em cujo bolso trazia as cinco
moedas de ouro, e durante esse tempo cogitei se n�o era excessiva a
gratifica��o, se n�o bastavam duas moedas. Talvez uma. Com effeito, uma
moeda era bastante para lhe dar estreme��es de alegria. Examinei-lhe
a roupa; era um pobre diabo, que nunca jamais vira uma moeda de ouro.
Portanto, uma moeda. Tirei-a, vi-a reluzir � luz do sol; n�o a viu o
almocreve, por que eu tinha-lhe voltado as costas; mas suspeitou-o
talvez, entrou a fallar ao jumento de um modo significativo; dava-lhe
conselhos, dizia-lhe que tomasse juizo, que o �senhor doutor� podia
castigal-o; um monologo paternal. Valha-me Deus! at� ouvi estalar um
beijo: era o almocreve que lhe beijava a testa.

--Ol�! exclamei.

--Queira vosmec� perdoar, mas o diabo do bicho est� a olhar para a
gente com tanta gra�a...

Ri-me, hesitei, metti-lhe na m�o um cruzado em prata, cavalguei o
jumento, e segui a trote largo, um pouco vexado, melhor direi um pouco
incerto do effeito da pratinha. Mas a algumas bra�as de distancia,
olhei para traz, o almocreve fazia-me grandes cortezias, com evidentes
mostras de contentamento. Adverti que devia ser assim mesmo; eu
pagara-lhe bem, pagara-lhe talvez de mais. Metti os dedos no bolso
do collete que trazia no corpo e senti umas moedas de cobre; eram os
vintens que eu devera ter dado ao almocreve, em logar do cruzado em
prata. Porque, emfim, elle n�o levou em mira nenhuma recompensa ou
virtude, cedeu a um impulso natural, ao temperamento, aos habitos do
officio; accresce que a circumstancia de estar, n�o mais adeante nem
mais atraz, mas justamente no ponto do desastre, parecia constituil-o
simples instrumento de Providencia; e de um ou de outro modo, o
merito do acto era positivamente nenhum. Fiquei desconsolado com esta
reflex�o, chamei-me prodigo, lancei o cruzado � conta das minhas
dissipa��es antigas; tive (porque n�o direi tudo?) tive remorsos.




CAPITULO XXII


Volta ao Rio


Jumento de uma figa, cortaste-me o fio �s reflex�es. J� agora n�o digo
o que pensei dalli at� Lisboa, nem o que fiz em Lisboa, na peninsula e
em outros logares da Europa, da velha Europa, que nesse tempo parecia
remo�ar. N�o, n�o direi que assisti �s alvoradas do romantismo, que
tambem eu fui fazer poesia effectiva no rega�o da Italia; n�o direi
cousa nenhuma. Teria de escrever um diario de viagem e n�o umas
memorias, como estas s�o, nas quaes s� entra a substancia da vida.

Ao cabo de alguns annos de peregrina��o attendi �s supplicas de meu
pae:--�Vem, dizia elle na ultima carta; se n�o vieres depressa, achar�s
tua m�e morta!� Esta ultima palavra foi para mim um golpe. Eu amava
minha m�e; tinha ainda deante dos olhos as circumstancias da ultima
ben��o que ella me dera, a bordo do navio. �Meu triste filho, nunca
mais te verei�, solu�ava a pobre senhora apertando-me ao peito. E
essas palavras resoavam-me agora, como uma prophecia realizada.

Note-se que eu estava em Veneza, ainda rescendente aos versos de lord
Byron; l� estava, mergulhado em pleno sonho, revivendo o preterito,
crendo-me na Serenissima Republica. � verdade; uma vez aconteceu-me
perguntar ao locandeiro se o doge ia a passeio nesse dia.--Que doge,
_signor mio?_ Cahi em mim, mas n�o confessei a illus�o; disse-lhe que
a minha pergunta era um genero de charada americana; elle mostrou
comprehender, e accrescentou que gostava muito das charadas americanas.
Era um locandeiro. Pois deixei tudo isso, o locandeiro, o doge, a ponte
dos Suspiros, a gondola, os versos do lord, as damas do Rialto, deixei
tudo, e disparei como uma bala na direc��o do Rio de Janeiro.

Vim... Mas n�o; n�o alonguemos este capitulo. �s vezes, esque�o-me a
escrever, e a penna vae comendo papel, com grave prejuizo meu, que
sou autor. Capitulos compridos quadram melhor a leitores pesad�es; e
n�s n�o somos um publico _in-folio_, mas _in_-12, pouco texto, larga
margem, typo elegante, corte dourado e vinhetas... principalmente
vinhetas... N�o, n�o alonguemos o capitulo.




CAPITULO XXIII


Triste, mas curto


Vim; e n�o nego que, ao avistar a cidade natal, tive uma sensa��o nova.
N�o era effeito da minha patria politica; era-o do logar da infancia,
a rua, a torre, o chafariz da esquina, a mulher de mantilha, o preto
do ganho, as cousas e scenas da meninice, buriladas na memoria. Nada
menos que uma renascen�a. O espirito, como um passaro, n�o se lhe deu
da corrente dos annos, arrepiou o v�o na direc��o da fonte original, e
foi beber da agua fresca e pura, ainda n�o mesclada do enxurro da vida.

Reparando bem, ha ahi um logar-commum. Outro logar-commum, tristemente
commum, foi a consterna��o da familia. Meu pae abra�ou-me com
lagrimas.--Tua m�e n�o p�de viver, disse-me elle. Com effeito, n�o era
j� o rheumatismo que a matava, era um cancro no estomago. A infeliz
padecia de um modo cr�, porque o cancro � indifferente �s virtudes do
sujeito; quando r�e, r�e; roer � o seu officio. Minha irm� Sabina, j�
ent�o casada com o Cotrim, andava a cair de fadiga. Pobre mo�a! dormia
tres horas por noite, nada mais. O proprio tio Jo�o estava abatido e
triste. D. Eusebia e algumas outras senhoras l� estavam tambem, n�o
menos tristes e n�o menos dedicadas.

--Meu filho!

A dor suspendeu por um pouco as tenazes; um sorriso allumiou o rosto da
enferma, sobre o qual a morte batia a aza eterna. Era menos um rosto do
que uma caveira; a belleza pass�ra, como um dia brilhante; restavam os
ossos, que n�o emmagrecem nunca. Mal poderia conhecel-a; havia oito ou
nove annos que nos n�o viamos. Ajoelhado, ao p� da cama, com as m�os
della entre as minhas, fiquei mudo e quieto, sem ousar fallar, porque
cada palavra seria um solu�o, e n�s temiamos avisal-a do fim. V�o
temor! Ella sabia que estava prestes a acabar; disse-m'o; verificamol-o
na seguinte manh�.

Longa foi a agonia, longa e cruel, de uma crueldade minuciosa, fria,
repisada, que me encheu de dor e estupefac��o. Era a primeira vez
que eu via morrer alguem. Conhecia a morte de outiva; quando muito,
tinha-a visto j� petrificada no rosto de algum cadaver, que acompanhei
ao cemiterio, ou trazia-lhe a id�a embrulhada nas amplifica��es de
rhetorica dos professores de cousas antigas,--a morte aleivosa de
Cesar, a austera de Socrates, a orgulhosa de Cat�o. Mas esse duello do
ser e do n�o ser, a morte em ac��o, dolorida, contrahida, convulsa,
sem apparelho politico ou philosophico, a morte de uma pessoa amada,
essa foi a primeira vez que a pude encarar. N�o chorei; lembra-me
que n�o chorei durante o expectaculo; tinha os olhos estupidos, a
garganta presa, a consci�ncia boquiaberta. Que? uma creatura t�o
docil, t�o meiga, t�o santa, que nunca jamais fizera verter uma
lagrima de desgosto, m�e carinhosa, esposa immaculada, era for�a que
morresse assim, trateada, mordida pelo dente tenaz de uma doen�a
sem misericordia? Confesso que tudo aquillo me pareceu obscuro,
incongruente, insano...

Triste capitulo; passemos a outro mais alegre.




CAPITULO XXIV


Curto, mas alegro


Fiquei prostrado. E comtudo era eu, nesse tempo, um fiel compendio de
trivialidade e presump��o. Jamais o problema da vida e da morte me
opprimira o cerebro; nunca at� esse dia me debru�ara sobre o abysmo do
Inexplicavel; faltava-me o essencial, que � o estimulo, a vertigem...

Para lhes dizer a verdade toda, eu reflectia as opini�es de um
cabelleireiro, que achei em Modena, o qual se distinguia por n�o as
ter absolutamente. Era a flor dois cabelleireiros; por mais demorada
que fosse a opera��o do toucado, n�o enfadava nunca; elle intercalava
as penteadelas com muitos motes e pulhas, cheios de um pico, de
um sabor... E n�o tinha outra philosophia. Nem eu. N�o digo que a
Universidade me n�o tivesse ensinado alguma; mas eu decorei-lhe s�
as formulas, o vocabulario, o esqueleto. Tratei-a, como tratei o
latim: embolsei tres versos de Virgilio, dous de Horacio, uma duzia
de locu��es moraes e politicas, para as despezas da conversa��o.
Tratei-os como tratei a historia e a jurisprudencia. Colhi de todas as
cousas a phraseologia, a casca, a ornamenta��o, que eram para o meu
espirito, vaidoso e nu, o mesmo que, para o peito do selvagem, s�o as
conchas do mar e os dentes de pessoa morta.

Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e real�o a
minha mediocridade; advirta que a franqueza � a primeira virtude de um
defunto. Na vida, o olhar da opini�o, o contraste dos interesses, a
luta das cobi�as obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfar�ar
os rasg�es e os remendos, a n�o estender ao mundo as revela��es que
faz � consci�ncia; e o melhor da obriga��o � quando, � for�a de
emba�ar os outros, emba�a-se um homem a si mesmo, porque em tal caso
poupa-se o vexame, que � uma sensa��o penosa, e a hypocrisia, que �
um vicio hediondo. Mas, na morte, que differen�a! que desabafo! que
liberdade! Como a gente p�de sacudir f�ra a capa, deitar ao fosso as
lentejoulas, despregar-se, despintar-se, desaffeitar-se, confessar
lisamente o que foi e o que deixou de ser! Porque, em summa, j� n�o ha
visinhos, nem amigos, nem inimigos, nem conhecidos, nem extranhos; n�o
ha plat�a. O olhar da opini�o, esse olhar agudo e judicial, perde a
virtude, logo que pisamos o territorio da morte; n�o digo que elle se
n�o estenda para c�, e nos n�o examine e julgue; mas a n�s � que n�o
se nos d� do exame nem do julgamento. Senhores vivos, n�o ha nada t�o
incommensuravel como o desdem dos finados.




CAPITULO XXV


Na Tijuca


Ui! l� me ia a penna a escorregar para o emphatico. Sejamos simples,
como era simples a vida que levei na Tijuca, durante as primeiras
semanas depois da morte de minha m�e.

No setimo dia, acabada a missa funebre, travei de uma espingarda,
alguns livros, roupa, charutos, um moleque,--o Prudencio da capitulo
XI,--e fui metter-me n'uma velha, casa de nossa propriedade. Meu
pae forcejou por me torcer a resolu��o, mas eu � que n�o podia nem
queria obedecer-lhe. Sabina desejava que eu fosse morar com ella algum
tempo,--duas semanas, ao menos; meu cunhado esteve a ponto de me levar
� fina for�a. Era um bom rapaz este Cotrim; pass�ra de estroina a
circumspecto. Agora commerciava em generos de estiva, labutava de manh�
at� � noite, com ardor, com perseveran�a. De noite, sentado � janella,
a encaracolar as sui�as, n�o pensava em outra cousa. Amava a mulher e
um filho, que ent�o tinha, e que lhe morreu alguns annos depois. Diziam
que era avaro.

Renunciei tudo; tinha o espirito attonito. Creio que por ent�o �
que come�ou a desabotoar em mim a hypocondria, essa flor amarella,
solitaria e morbida, de um cheiro inebriante e subtil.--�Que bom
que � estar triste e n�o dizer cousa nenhuma!�--Quando esta palavra
de Shakespeare me chamou a atten��o, confesso que senti em mim um
echo, um echo delicioso. Lembra-me que estava sentado, debaixo de um
tamarineiro, com o livro do poeta aberto nas m�os, e o espirito ainda
mais cabisbaixo do que a figura,--ou jurur�, como dizemos das gallinhas
tristes. Apertava ao peito a minha dor taciturna, com uma sensa��o
unica, uma cousa a que poderia chamar volupia do aborrecimento. Volupia
do aborrecimento: decora esta express�o, leitor; guarda-a, examina-a,
e se n�o chegares a entendel-a, podes concluir que ignoras uma das
sensa��es mais subtis desse mundo e daquelle tempo.

�s vezes ca�ava, outras dormia, outras lia,--lia muito,--outras emfim
n�o fazia nada; deixava-me atoar de id�a em id�a, de imagina��o em
imagina��o, como uma borboleta vadia ou faminta; e as horas iam
pingando uma a uma, o sol cahia, as sombras da noite velavam a montanha
e a cidade. Ninguem me visitava; recommendei expressamente que me
deixassem s�. Um dia, dous dias, tres dias, uma semana inteira passada
assim, sem dizer palavra, era bastante para sacudir-me da Tijuca f�ra
e restituir-me ao bulicio. Com effeito, ao cabo de sete dias, estava
farto da solid�o; a dor applac�ra; o espirito j� se n�o contentava com
o uso da espingarda e dos livros, nem com a vista do arvoredo e do ceu.
Reagia a mocidade, era preciso viver. Metti no bah� o problema da vida
e da morte, os hypocondriacos do poeta, as camisas, as medita��es, as
gravatas, e ia fechal-o, quando o moleque Prudencio me disse que uma
pessoa do meu conhecimento se mud�ra na vespera para uma casa roxa,
situada a duzentos passos da nossa.

--Quem?

--Nhonh� talvez n�o se lembre mais de D. Eusebia...

--Lembra-me... � ella?

--Ella e a filha. Vieram hontem de manh�.

Occorreu-me logo o episodio de 1814, e senti-me vexado; mas adverti que
os acontecimentos tinham-me dado raz�o. Na verdade, f�ra impossivel
evitar as rela��es intimas do Villa�a com a irm� do sargento-m�r; antes
mesmo do meu embarque, j� se boquejava mysteriosamente no nascimento
de uma menina. Meu tio Jo�o mandou-me dizer depois que o Villa�a, ao
morrer, deixara um bom legado a D. Eusebia, cousa que deu muito que
fallar em todo o bairro. O proprio tio Jo�o, guloso de escandalos, n�o
tratou de outro assumpto na carta, ali�s de muitas folhas. Tinham-me
dado raz�o os acontecimentos. Ainda por�m que m'a n�o dessem, 1814 l�
ia longe, e, com elle, a travessura, e o Villa�a, e o beijo da moita;
finalmente, nenhumas rela��es estreitas existiam entre mim e ella. Fiz
commigo essa reflex�o e acabei de fechar o bah�.

--Nhonh� n�o vae visitar sinh� D. Eusebia? perguntou-me o Prudencio.
Foi ella quem vestiu o corpo da minha defunta senhora.

Lembrei-me que a vira, entre outras senhoras, por occasi�o da morte e
do enterro; ignorava por�m que ella houvesse prestado a minha m�e esse
derradeiro obsequio. A pondera��o do moleque era razoavel; eu devia-lhe
uma visita; determinei fazel-a immediatamente, e descer.




CAPITULO XXVI


O autor hesita


S�bito ou�o uma voz:--Ol�, meu rapaz, isto n�o � vida! Era meu pae, que
chegava com duas propostas na algibeira. Sentei-me no bah� e recebi-o
sem alvoro�o. Elle esteve alguns instantes de p�, a olhar para mim;
depois estendeu-me a m�o com um gesto commovido:

--Meu filho, conforma-te com a vontade de Deus.

--J� me conformei, foi a minha resposta, e beijei-lhe a m�o.

N�o tinha almo�ado; almo��mos juntos. Nenhum de n�s alludiu ao triste
motivo da minha reclus�o. Uma s� vez fall�mos nisso, de passagem,
quando meu pae fez recahir a conversa na Regencia; foi ent�o que
alludiu � carta de pezames que um dos Regentes lhe mandara. Trazia a
carta comsigo, j� bastante amarrotada, talvez por havel-a lido a muitas
outras pessoas. Creio haver dito que era de um dos Regentes. Leu-m'a
duas vezes.

--J� lhe fui agradecer este signal de considera��o, concluiu meu pae, e
acho que deves ir tambem...

--Eu?

--Tu; � um homem notavel, faz hoje as vezes de Imperador. Demais trago
commigo uma id�a, um projecto, ou... sim, digo-te tudo; trago dous
projectos, um logar de deputado e um casamento.

Meu pae disse isto com pausa, e n�o no mesmo tom, mas dando �s palavras
um geito e disposi��o, cujo fim era caval-as mais profundamente no
meu espirito. A proposta, por�m, desdizia tanto das minhas sensa��es
ultimas, que eu cheguei a n�o entendel-a bem. Meu pae n�o fraqueou e
repetiu-a; encareceu o logar e a noiva.

--Aceitas?

--N�o entendo de politica, disse eu depois de um instante; quanto �
noiva... deixe-me viver como um urso, que sou.

--Mas os ursos casam-se, replicou elle.

--Pois traga-me uma ursa. Olhe, a Ursa-Maior.

Riu-se meu pae, e depois de rir, tornou a fallar serio. Era-me
necessaria a carreira politica, dizia elle, por vinte e tantas raz�es,
que deduziu com singular volubilidade, illustrando-as com exemplos
de pessoas do nosso conhecimento. Quanto � noiva, bastava que eu a
visse; se a visse, iria logo pedil-a ao pae, logo, sem demora de um
dia. Experimentou assim a fascina��o, depois a persuas�o, depois a
intima��o; eu n�o dava resposta, afiava a ponta de um palito ou fazia
bolas de miolo de p�o, a sorrir ou a reflectir; e, para tudo dizer, nem
docil nem rebelde � proposta. Sentia-me aturdido. Uma parte de mim
mesmo dizia que sim, que uma esposa formosa e uma posi��o politica eram
bens dignos de apre�o; outra dizia que n�o; e a morte de minha m�e me
apparecia como um exemplo da fragilidade das cousas, das affei��es, da
familia...

--N�o vou daqui sem uma resposta definitiva, disse meu pae.
De-fi-ni-ti-va! repetiu, batendo as syllabas com o dedo.

Bebeu o ultimo gole de caf�; repotreou-se, e entrou a fallar de tudo,
do senado, da camara, da Regencia, da restaura��o, do Evaristo, de um
coche que pretendia comprar, da nossa casa de Matta-cavallos... Eu
deixava-me estar ao canto da mesa, a escrever desvairadamente n'um
peda�o de papel, com uma ponta de lapis; tra�ava uma palavra, uma
phrase, um verso, um nariz, um triangulo, e repetia-os muitas vezes,
sem ordem, ao acaso, assim:

                         arma virumque cano
     A
     Arma virumque cano
               arma virumque cano
          arma virumque
                         arma virumque cano
               virumque

Machinalmente tudo isto; e, n�o obstante, havia certa l�gica, certa
deduc��o; por exemplo, foi o _virumque_ que me fez chegar ao nome
do proprio poeta, por causa da primeira syllaba; ia a escrever
_virumque_--e sae-me _Virgilio_, ent�o continuei:

     Vir                         Virgilio
          Virgilio       Virgilio
                 Virgilio
                                 Virgilio

Meu pae, um pouco despeitado com aquella indifferen�a, ergueu-se, veiu
a mim, lan�ou os olhos ao papel...

--Virgilio! exclamou. �s tu, meu rapaz; a tua noiva chama-se justamente
Virgilia.




CAPITULO XXVII


Virgilia?


Virgilia? Mas ent�o era a mesma senhora que alguns annos depois...? A
mesma; era justamente a senhora, que em 1869 devia assistir aos meus
ultimos dias, e que antes, muito antes, teve larga parte nas minhas
mais intimas sensa��es. Naquelle tempo contava apenas uns quinze ou
dezeseis annos, e era talvez a mais atrevida creatura da nossa ra�a,
e, com certeza, a mais voluntariosa. N�o digo que j� lhe coubesse
a primazia da belleza, entre as mocinhas do tempo, porque isto n�o
� romance, em que o autor sobredoura a realidade e fecha os olhos
�s sardas e espinhas; mas tambem n�o digo que lhe maculasse o rosto
nenhuma sarda ou espinha; n�o. Era bonita, fresca, sahia das m�os da
natureza, cheia daquelle feiti�o, precario e eterno, que o individuo
passa a outro individuo, para os fins secretos da crea��o. Era isto
Virgilia, e era clara, muito clara, faceira, ignorante, pueril, cheia
de uns impetos mysteriosos; muita pregui�a e alguma devo��o,--devo��o,
ou talvez medo; creio que medo.

Ahi tem o leitor, em poucas linhas, o retrato physico e moral da pessoa
que devia influir mais tarde na minha vida; era aquillo com dezeseis
annos. Tu que me l�s, se ainda fores viva, quando estas paginas vierem
� luz,--tu que me l�s, Virgilia amada, n�o reparas na differen�a entre
a linguagem de hoje e a que primeiro empreguei quando te vi? Cr� que
era t�o sincero ent�o como agora; a morte n�o me tornou rabujento, nem
injusto.

--Mas, dir�s tu, se voc� n�o guardou na retina da memoria a imagem do
que fui, como � que p�de assim discernir a verdade daquelle tempo, e
exprimil-a depois de tantos annos?

Ah! indiscreta! ah! ignorantona! Mas � isso mesmo que nos faz
senhores da terra, � esse poder de restaurar o passado, para tocar a
instabilidade das nossas impress�es e a vaidade dos nossos affectos.
Deixa l� dizer o Pascal que o homem � um cani�o pensante. N�o; �
uma errata pensante, isso sim. Cada esta��o da vida � uma edi��o,
que corrige a anterior, e que ser� corrigida tambem, at� a edi��o
definitiva, que o editor d� de gra�a aos vermes.




CAPITULO XXVIII


Contanto que...


--Virgilia? interrompi eu.

--Sim, senhor; � o nome da noiva. Um anjo, meu pateta, um anjo sem
azas. Imagina uma mo�a assim, desta altura, viva como um azougue, e uns
olhos... filha do Dutra...

--Que Dutra?

--O Conselheiro Dutra; n�o conheces; uma influencia politica. Vamos l�;
aceitas?

N�o respondi logo; fitei por alguns segundos a ponta do botim; declarei
depois que estava disposto a examinar as duas cousas, a candidatura e o
casamento, comtanto que...

--Comtanto que?

--Comtanto que n�o fique obrigado a aceitar as duas; creio que posso
ser separadamente homem casado ou homem publico...

--Todo o homem publico deve ser casado, interrompeu sentenciosamente
meu pae. Mas seja como queres; estou por tudo; fico certo de que a
vista far� f�. Demais, a noiva e o casamento s�o a mesma cousa... isto
�, n�o... saber�s depois... V�; aceito a dila��o, comtanto que...

--Comtanto que?.. interrompi eu imitando-lhe a voz.

--Ah! brejeiro! Comtanto que n�o te deixes ficar ahi inutil, obscuro,
e triste; n�o gastei dinheiro, cuidados, empenhos, para te n�o ver
brilhar, como deves, e te convem, e a todos n�s; � preciso continuar
o nosso nome, continual-o e illustral-o ainda mais. Olha, estou com
sessenta annos, mas se fosse necess�rio come�ar vida nova, come�ava-a
sem hesitar um s� minuto. Teme a obscuridade, Braz; foge do que �
infimo. Olha que os homens valem por differentes modos, e que o mais
seguro de todos � valer pela opini�o dos outros homens. N�o estragues
as vantagens da tua posi��o, os teus meios...

E foi por deante o magico, a agitar deante de mim um chocalho, como me
faziam, em pequeno, para eu andar depressa, e a flor da hypocondria
recolheu-se ao bot�o para deixar a outra flor menos amarella, e nada
morbida,--o amor da nomeada, o emplasto Braz Cubas.




CAPITULO XXIX


A visita


Vencera meu pae; dispuz-me a aceitar o diploma e o casamento, Virgilia
e a camara dos deputados.--As duas Virgilias, disse elle n'um assomo
de ternura politica. Aceitei-os; meu pae deu-me dous fortes abra�os.
Era o seu proprio sangue que elle, emfim, reconhecia. Rigorosamente,
o filho delle acabava de desembarcar naquelle instante, de rodaque de
linho e m�os nos bolsos. Havia ent�o nos olhos de meu pae alguma cousa
do velho Cid; era a alma que colligira n'uma s� flamma todas as ultimas
scentelhas.

--Desces commigo?

--Des�o amanh�. Vou fazer primeiramente uma visita a D. Eusebia...

Meu pae torceu o nariz, mas n�o disse nada; despediu-se e desceu. Eu,
na tarde desse mesmo dia, fui visitar D. Eusebia. Achei-a a reprehender
um preto jardineiro, mas deixou tudo para vir fallar-me, com um
alvoro�o, um prazer t�o sincero, que me desacanhou logo. Creio que
chegou a cingir-me com o seu par de bra�os robustos. Fez-me sentar ao
p� de si, na varanda, entre muitas exclama��es de contentamento.

--Ora, o Br�zinho! Um homem! Quem diria, ha annos... Um homemzarr�o! E
bonito! Qual! Voc� n�o se lembra bem de mim...

Disse-lhe que sim, que n�o era possivel esquecer uma amiga t�o
familiar de nossa casa. D. Eusebia come�ou a fallar de minha m�e, com
muitas saudades, com tantas saudades, que me captivou logo, posto
me entristecesse. Ella percebeu-o nos meus olhos, e torceu a r�dea
� conversa��o; pediu-me que lhe contasse a viagem, os estudos, os
namoros... Sim, os namoros tambem; confessou-me que era uma velha
patusca. Nisto recordei-me do episodio de 1814, ella, o Villa�a, a
moita, o beijo, o meu grito; e estando a recordal-o, ou�o um ranger de
porta, um farfalhar de saias e esta palavra:

--Mam�e... mam�e...




CAPITULO XXX


A flor da moita


A voz e as saias pertenciam a uma mocinha morena, que se deteve �
porta, alguns instantes, ao ver gente extranha. Silencio curto e
constrangido. D. Eusebia quebrou-o, enfim, com resolu��o e franqueza:

--Vem c�, Eugenia, disse ella, comprimenta o Dr. Braz Cubas, filho do
Sr. Cubas; veiu da Europa.

E voltando-se para mim:

--Minha filha Eugenia.

Eugenia, a flor da moita, mal respondeu ao gesto de cortezia que lhe
fiz; olhou-me admirada e acanhada, e lentamente se aproximou da cadeira
da m�e. A m�e arranjou-lhe uma das tran�as do cabello, cuja ponta se
desmanchara.--Ah! travessa! dizia. N�o imagina, doutor, o que isto
�... E beijou-a com t�o expansiva ternura que me commoveu um pouco;
lembrou-me minha m�e, e,--direi tudo,--tive umas cocegas de ser pae.

--Trav�ssa? disse eu. Pois j� n�o est� em edade propria, ao que parece.

--Quantos lhe d�?

--Dezesete.

--Menos um.

--Dezeseis. Pois ent�o! � uma mo�a.

N�o p�de Eugenia encobrir a satisfa��o que sentia com esta minha
palavra, mas emendou-se logo, e ficou como d'antes, erecta, fria e
muda. Na verdade, ella parecia ainda mais mulher do que era; seria
crian�a nos seus folgares de mo�a; mas assim quieta, impassivel,
tinha a compostura da mulher casada. Talvez essa circumstancia lhe
diminuia um pouco da gra�a virginal. Depressa nos familiaris�mos; a m�e
fazia-lhe grandes elogios, eu escutava-os de boa sombra; e ella sorria,
com os olhos fulgidos, como se l� dentro do cerebro lhe estivesse a
voar uma borboletinha de azas de ouro e olhos de diamante...

Digo l� dentro, porque c� f�ra o que esvoa�ou foi uma borboleta preta,
que subitamente penetrou na varanda, e come�ou a bater as azas em
derredor de D. Eusebia. D. Eusebia deu um grito, levantou-se, praguejou
umas palavras soltas:--T'esconjuro!... s�e, diabo!... Virgem Nossa
Senhora!...

--N�o tenha medo, disse eu; e, tirando o len�o, expelli a borboleta. D.
Eusebia sentou-se outra vez, offegante, um pouco envergonhada; a filha,
pode ser que pallida de medo, dissimulava a impress�o com muita for�a
de vontade. Apertei-lhes a m�o e sa�, a rir commigo da supersti��o
das duas mulheres, um rir philosophico, desinteressado, superior.
De tarde, vi passar a cavallo afilha de D. Eusebia, seguida de um
pagem; fez-me um comprimento com a ponta do chicote; e confesso que me
lisongeei com a id�a de que, alguns passos adeante, ella voltaria a
cabe�a para traz; mas n�o voltou.




CAPITULO XXXI


A borboleta preta


No dia seguinte, como eu estivesse a preparar-me para descer, entrou
no meu quarto uma borboleta, t�o negra como a outra, e muito maior do
que ella. Lembrou-me o caso da vespera, e ri-me; entrei logo a pensar
na filha de D. Eusebia, no susto que tivera, e na dignidade que, apezar
delle, soube conservar. A borboleta, depois de esvoa�ar muito em torno
de mim, pousou-me na testa. Sacudi-a, ella foi pousar na vidra�a; e,
porque eu a sacudisse de novo, sa�u* dalli e veiu parar em cima de um
velho retrato de meu pae. Era negra como a noite; e o gesto brando
com que, uma vez posta, come�ou a mover as azas, tinha um certo ar
escarninho, uma especie de ironia mephistophelica, que me aborreceu
muito. Dei de hombros, sa� do quarto; mas tornando l�, minutos depois,
e achando-a ainda no mesmo logar, senti um repell�o dos nervos, lancei
m�o de uma toalha, bati-lhe e ella ca�u.

N�o ca�u morta; ainda torcia o corpo e movia as farpinhas da cabe�a.
Apiedei-me; tomei-a na palma da m�o e fui depol-a no peitoril da
janella. Era tarde; a infeliz expirou dentro de alguns segundos. Fiquei
um pouco aborrecido, incommodado.

--Tambem porque diabo n�o era ella azul? disse eu commigo.

E esta reflex�o,--uma das mais profundas que se tem feito, desde a
inven��o das borboletas,--me consolou do maleficio, e me reconciliou
commigo mesmo. Deixei-me estar a contemplar o cadaver, com alguma
sympathia, confesso. Imaginei que ella sa�ra do mato, almo�ada e feliz.
A manh� era linda. Veiu por alli f�ra, modesta e negra, espairecendo
as suas borboletices sob a vasta cupula de um c�o azul, que � sempre
azul, para todas as azas. Passa pela minha janella, entra e d� commigo.
Supponho que nunca teria visto um homem; n�o-sabia, portanto, o que era
o homem; descreveu infinitas voltas em torno do meu corpo, e viu que
me movia, que tinha olhos, bra�os, pernas, um ar divino, uma estatura
collossal. Ent�o disse comsigo: �Este � provavelmente o inventor das
borboletas.� A id�a subjugou-a, aterrou-a; mas o medo, que � tambem
suggestivo, insinuou-lhe que o melhor modo de agradar ao seu creador
era beijal-o na testa; e ella beijou-me na testa. Quando enxotada por
mim, foi pousar na vidra�a, viu dalli o retrato de meu pae, e n�o �
impossivel que descobrisse meia verdade, a saber, que estava alli o pae
do inventor das borboletas, e voou a pedir-lhe misericordia.

Pois um golpe de toalha rematou a aventura. N�o lhe valeu a immensidade
azul, nem a alegria das flores, nem a pompa das folhas verdes, contra
uma toalha de rosto, dous palmos de linho cr�. Vejam como � bom ser
superior �s borboletas! Porque, �* justo dizel-o, se ella fosse azul,
ou c�r de laranja, n�o teria mais segura a vida; n�o era impossivel
que eu a atravessasse com um alfinete, para recreio dos olhos. N�o
era. Esta ultima id�a restituiu-me a consola��o, uni o dedo grande ao
polegar, despedi um piparote e o cadaver caiu no jardim. Era tempo; ahi
vinham j� as providas formigas... N�o, volto � primeira id�a; creio que
para ella era melhor ter nascido azul.




CAPITULO XXXII


Coxa de nascen�a


Fui dalli acabar os preparativos da viagem. J� agora n�o me demoro
mais. Des�o immediatamente; des�o ainda que algum leitor circumspecto
me detenha para perguntar se o capitulo passado � apenas uma sensaboria
ou se chega a empulha��o... Ai de mim! N�o contava com D. Eusebia.
Estava prompto, quando me entrou por casa. Vinha convidar-me para
transferir a descida, e ir l� jantar nesse dia. Cheguei a recusar; mas
instou tanto, tanto, tanto, que n�o pude deixar de aceitar; demais,
era-lhe devida aquella compensa��o; fui.

Eugenia desataviou-se nesse dia por minha causa. Creio que foi por
minha causa,--se � que n�o andava muita vez assim. Nem as bichas de
ouro, que trazia na vespera, lhe pendiam agora das orelhas, duas
orelhas finamente recortadas n'uma cabe�a de nympha. Um simples vestido
branco, de cassa, sem enfeites, tendo ao collo, em vez de broche, um
bot�o de madreperola, e outro bot�o nos punhos, fechando as mangas, e
nem sombra de pulseira.

Era isso no corpo; n�o era outra cousa no espirito. Id�as claras,
maneiras ch�s, certa gra�a natural, um ar de senhora, e n�o sei se
alguma outra cousa; sim, a boca, exactamente a boca da m�e, a qual me
lembrava o episodio de 1814, e ent�o dava-me impetos de glosar o mesmo
mote � filha...

--Agora vou mostrar-lhe a chacara, disse a m�e, logo que exgot�mos o
ultimo gole de caf�.

Sa�mos � varanda, dalli � chacara; e foi ent�o que notei uma
circumstancia. Eugenia coxeava um pouco, t�o pouco, que eu cheguei a
perguntar-lhe se machucara o p�. A m�e calou-se; a filha respondeu sem
titubear:

--N�o, senhor, sou coxa de nascen�a.

Mandei-me a todos os diabos; chamei-me desastrado, grosseir�o. Com
effeito, a simples possibilidade de ser coxa era bastante para lhe
n�o perguntar nada. Ent�o lembrou-me que da primeira vez que a vi na
vespera--a mo�a cheg�ra-se lentamente � cadeira da m�e, e que naquelle
dia j� a achei � mesa de jantar. Talvez fosse para encobrir o defeito;
mas por que raz�o o confessava agora? Olhei para ella e reparei que ia
triste.

Tratei de apagar os vestigios de meu desaso;--n�o me foi difficil, por
que a m�e era, segundo confessara, uma velha patusca, e promptamente
travou de conversa commigo. Vimos toda a chacara, arvores, flores,
tanque de patos, tanque de lavar, uma infinidade de cousas, que ella me
ia mostrando, e commentando, ao passo que eu, de soslaio, perscrutava
os olhos de Eugenia...

Palavra que o olhar de Eugenia n�o era coxo, mas direito, perfeitamente
s�o; vinha de uns olhos pretos e tranquillos. Creio que duas ou tres
vezes baixaram elles a terra, um pouco turvados; mas duas ou tres
vezes s�mente; em geral, fitavam-me com franqueza, sem temeridade, nem
biocos.




CAPITULO XXXIII


Bemaventurados os que n�o descem


O peor � que era coxa. Uns olhos t�o l�cidos, uma boca t�o fresca, uma
compostura t�o senhoril; e coxa! Esse contraste faria suspeitar que a
natureza � �s vezes um immenso escarneo. Porque bonita, se coxa? porque
coxa, se bonita? Tal era a pergunta que eu vinha fazendo a mim mesmo
ao voltar para casa, de noite; e n�o atinava com a solu��o do enigma.
O melhor que ha, quando se n�o resolve um enigma, � sacudil-o pela
janella f�ra; foi o que eu fiz; lancei m�o de uma toalha e enxotei essa
outra borboleta preta, que me adejava no cerebro. Fiquei alliviado e
fui dormir. Mas o sonho, que � uma fresta do espirito, deixou novamente
entrar o bichinho, e ahi fiquei eu a noite toda a cavar o mysterio, sem
explical-o.

Amanheceu chovendo, transferi a descida; mas no outro dia, a manh�
era limpida e azul, e apezar disso deixei-me ficar, n�o menos que
no terceiro dia, e no quarto, at� o fim da semana. Manh�s bonitas,
frescas, convidativas; l� em baixo a familia a chamar-me, e a noiva, e
o parlamento, e eu sem acudir a cousa nenhuma, enlevado ao p� da minha
Venus Manca. Enlevado � uma maneira de real�ar o estylo; n�o havia
enlevo, mas gosto, uma certa satisfa��o physica e moral. Queria-lhe,
� verdade; ao p� dessa creatura t�o singela, filha espuria e coxa,
feita de amor e desprezo, ao p� della sentia-me bem, e ella creio que
ainda se sentia melhor ao p� de mim. E isto na Tijuca. Uma simples
egloga. D. Eusebia vigiava-nos, mas pouco; temperava a necessidade
com a conveniencia; e a filha, nessa primeira explos�o da natureza,
entregava-me a alma em fl�r.

--O senhor desce amanh�? disse-me ella no sabbado.

--Pretendo.

--N�o des�a.

N�o desci; e accrescentei um versiculo ao Evangelho:--Bemaventurados
os que n�o descem, porque delles � o primeiro beijo das damas. Com
effeito, foi no domingo esse primeiro beijo de Eugenia,--o primeiro que
nenhum outro var�o jamais lhe tom�ra, e n�o furtado ou arrebatado, mas
candidamente entregue, como um devedor honesto paga uma divida. Pobre
Eugenia! Se tu soubesses que id�as me vagavam pela mente f�ra n'aquella
occasi�o! Tu, tremula de commo��o, com os bra�os nos meus hombros, a
contemplar em mim o teu bemvindo esposo, e eu com os olhos em 1814, na
moita, no Villa�a, e a suspeitar que n�o podias mentir ao teu sangue, �
tua origem...

D. Eusebia entrou inesperadamente, mas n�o t�o subita, que nos
apanhasse ao p� um do outro. Eu fui at� � janella: Eugenia sentou-se a
concertar uma das tran�as. Que dissimula��o graciosa! que arte infinita
e delicada! que tartufice profunda! e tudo isso natural vivo, n�o
estudado, natural como o appetite, natural como o somno. Tanto melhor!
D. Eusebia n�o suspeitou nada.




CAPITULO XXXIV


A uma alma sensivel


Ha ahi, entre as cinco ou dez pessoas que me leem, ha ahi uma alma
sensivel, que est� de certo um pouquito agastada com o capitulo
anterior, come�a a tremer pela sorte de Eugenia, e talvez... sim,
talvez, l� no fundo de si mesma, me chame cynico. Eu cynico, alma
sensivel? Pela coxa de Diana! esta injuria merecia ser lavada com
sangue, se o sangue lavasse alguma cousa nesse mundo. N�o, alma
sensivel, eu n�o sou cynico, eu fui homem; meu cerebro foi um tablado
em que se deram pe�as de todo o genero, o drama sacro, o austero, o
piegas, a comedia lou��, a desgrenhada far�a, os autos, as bufonerias,
um pandemonium, alma sens�vel, uma barafunda de cousas e pessoas,
em que podias ver tudo, desde a rosa de Smyrna at� a arruda do teu
quintal, desde o magnifico leito de Cleopatra at� o recanto da praia
em que o mendigo tirita o seu somno. Cruzavam-se nelle pensamentos
de varia casta e fei��o. N�o havia alli a atmosphera s�mente da aguia
e do beija-flor, havia tambem a da lesma e do sapo. Retira, pois, a
express�o, alma sensivel, castiga os nervos, limpa os oculos,--que isso
�s vezes � dos oculos,--e acabemos de uma vez com esta flor da moita.




CAPITULO XXXV


O caminho de damasco


Ora aconteceu, que, oito dias depois, como eu estivesse no caminho
de Damasco, ouvi uma voz misteriosa, que me sussurrou as palavras da
Escriptura (_Act._, IX, 7): �Levanta-te, e entra na cidade.� Essa voz
saia de mim mesmo, e tinha duas origens: a piedade, que me desarmava
ante a candura da pequena, e o terror de vir a amar dev�ras, e
desposal-a. Uma mulher coxa! Quanto a este motivo da minha descida, n�o
ha duvidar que ella o achou e m'o disse. Foi na varanda, na tarde de
uma segunda-feira, ao annunciar-lhe que na seguinte manh� viria para
baixo.--Adeus, suspirou ella estendendo-me a m�o com simplicidade; faz
bem.--E como eu nada dissesse, continuou:--Faz bem em fugir ao rid�culo
de casar commigo. Ia dizer-lhe que n�o; ella retirou-se lentamente,
engolindo as lagrimas. Alcancei-a a poucos passos, e jurei-lhe por
todos os santos do ceu que eu era obrigado a descer, mas que n�o
deixava de lhe querer e muito; tudo hyperboles frias, que ella escutou
sem dizer nada.

--Acredita-me? perguntei eu no fim.

--N�o; e digo-lhe que faz bem.

Quiz retel-a, mas o olhar que me lan�ou n�o foi j� de supplica, sen�o
de imperio. Eu desci da Tijuca, na manh� seguinte, um pouco amargurado,
outro pouco satisfeito; e vinha dizendo a mim mesmo que era justo
obedecer a meu pae, que era conveniente abra�ar a carreira politica...
que a constitui��o... que a minha noiva... que o meu cavallo...




CAPITULO XXXVI


A proposito de botas


Meu pae, que me n�o esperava, abra�ou-me cheio de ternura e
agradecimento.--Agora � dev�ras? disse elle. Posso emfim....?

Deixei-o nessa reticencia, e fui descal�ar as botas, que estavam
apertadas. Uma vez alliviado, respirei � larga, e deitei-me a fio
comprido, emquanto os p�s, e todo eu atraz delles, entravamos n'uma
relativa bem-aventuran�a. Ent�o considerei que as botas apertadas
s�o uma das maiores venturas da terra, porque, fazendo doer os p�s,
d�o azo ao prazer de as descal�ar. Mortifica os p�s, desgra�ado,
desmortifica-os depois, e ahi tens a felicidade barata, ao sabor dos
sapateiros e de Epicuro. Emquanto esta id�a me trabalhava no famoso
trapezio, lan�ava eu os olhos para a Tijuca, e via a aleijadinha
perder-se no horizonte do preterito, e sentia que o meu cora��o n�o
tardaria tambem a descal�ar as suas botas. E descal�ou-as o lascivo.
Quatro ou cinco dias depois, saboreava esse rapido, ineffavel e
incoercivel momento de gozo, que succede a uma d�r pungente, a uma
preoccupa��o, a um incommodo... Daqui inferi eu que a vida � o mais
engenhoso dos phenomenos, porque s� agu�a a fome, com o fim de deparar
a occasi�o de comer, e n�o inventou os callos, sen�o porque elles
aperfei�oam a felicidade terrestre. Em verdade vos digo que toda a
sabedoria humana n�o vale um par de botas curtas.

Tu, minha Eugenia, � que n�o as descal�aste nunca; foste ahi pela
estrada da vida, manquejando da perna e do amor, triste como os
enterros pobres, solitaria, calada, laboriosa, at� que vieste tambem
para esta outra margem... O que eu n�o sei � se a tua exist�ncia era
muito necessaria ao s�culo. Quem sabe? Talvez um comparsa de menos
fizesse patear a tragedia humana.




CAPITULO XXXVII


Emfim


Emfim! eis aqui Virgilia. Antes de ir � casa do Conselheiro Dutra,
perguntei a meu pae se havia algum ajuste pr�vio de casamento.

--Nenhum ajuste. Ha tempos, conversando com elle a teu respeito,
confessei-lhe o desejo que tinha de te ver deputado; e de tal modo
fallei, que elle prometteu fazer alguma cousa, e creio que o far�.
Quanto � noiva, � o nome que dou a uma creaturinha, que � uma joia, uma
fl�r, uma estrella, uma cousa rara... � a filha delle; imaginei que, se
casasses com ella, mais depressa serias deputado.

--S� isto?

--S� isto.

Fomos dalli � casa do Dutra. Era uma perola esse homem, risonho,
jovial, patriota, um pouco irritado com os males publicos, mas n�o
desesperando de os curar depressa. Achou que a minha candidatura era
legitima; convinha, por�m, esperar alguns mezes. E logo me apresentou �
mulher,--uma estimavel senhora,--e � filha, que n�o desmentiu em nada
o panegyrico de meu pae. Juro-vos que em nada. Rel�de o Cap. XXVIII.
Eu, que levava id�as a respeito da pequena, fitei-a de certo modo;
ella, que n�o sei se as tinha, n�o me fitou de modo differente; e o
nosso olhar primeiro foi pura e simplesmente conjugal. No fim de um mez
estavamos intimos.




CAPITULO XXXVIII


A quarta edi��o


--Venha c� jantar amanh�, disse-me o Dutra uma noite.

Aceitei o convite. No dia seguinte, mandei que a sege me esperasse no
largo de S. Francisco de Paula, e fui dar varias voltas. Lembra-vos
ainda a minha theoria das edi��es humanas? Pois sabei que, naquelle
tempo, estava eu na quarta edi��o, revista e emendada, mas ainda
in�ada de descuidos e barbarismos; defeito que, ali�s, achava alguma
compensa��o no typo, que era elegante, e na encaderna��o, que era
luxuosa. Dadas as voltas, ao passar pela rua dos Ourives, consulto o
relogio e c�e-me o vidro na cal�ada. Entro na primeira loja que tinha �
m�o; era um cubiculo,--pouco mais,--empoeirado e escuro.

Ao fundo, por traz do balc�o, estava sentada uma mulher, cujo rosto
amarello e bexiguento n�o se destacava logo, � primeira vista; mas logo
que se destacava era um expectaculo curioso. N�o podia ter sido feia;
ao contrario, via-se que fora bonita, e n�o pouco bonita; mas a doen�a
e uma velhice precoce, destruiram-lhe a flor das gra�as. As bexigas
tinham sido terriveis; os signaes, grandes e muitos, faziam saliencias
e encarnas, declives e acclives; e davam uma sensa��o de lixa grossa,
enormemente grossa. Eram os olhos a melhor parte do vulto, e ali�s
tinham uma express�o singular e repugnante, que mudou, entretanto, logo
que eu comecei a fallar. Quanto ao cabello, penteado ao desdem, estava
ru�o e quasi t�o poento como os portaes do loja. N'um dos dedos da m�o
esquerda fulgia-lhe um diamante. Crel-o-heis, posteros? essa mulher era
Marcella.

N�o a conheci logo; era difficil; ella por�m conheceu-me apenas lhe
dirigi a palavra. Os olhos chisparam e trocaram a express�o usual
por outra, meia doce e meia triste. Vi-lhe um movimento como para
esconder-se ou fugir; era o instincto da vaidade, que n�o durou mais de
um instante. Marcella accommodou-se e sorriu.

--Quer comprar alguma cousa? disse ella estendendo-me a m�o.

N�o respondi nada; Marcella comprehendeu a causa do meu silencio (n�o
era difficil), e s� hesitou, creio eu, em decidir o que dominava
mais, se o assombro do presente, se a memoria do passado. Deu-me uma
cadeira, e, com o balc�o permeio, fallou-me longamente de si, da vida
que lev�ra, das lagrimas que eu lhe fizera verter, das saudades, dos
desastres, emfim das bexigas, que lhe escalavraram o rosto, e do
tempo, que ajudou a molestia, adiantando-lhe a decadencia. Verdade �
que tinha a alma decrepita. Vendera tudo, quasi tudo; um homem, que a
am�ra outr'ora, e lhe morreu nos bra�os, deixara-lhe aquella loja de
ourivesaria, mas, para que a desgra�a fosse completa, era agora pouco
buscada a loja--talvez pela singularidade de a dirigir uma mulher. Em
seguida pediu-me que lhe contasse a minha vida. Gastei pouco tempo em
dizer-ll'a; n�o era longa, nem interessante.

--Casou? disse Marcella no fim de minha narra��o.

--Ainda n�o, respondi seccamente.

Marcella lan�ou os olhos para a rua, com a atonia de quem reflecte ou
relembra; eu deixei-me ir ent�o ao passado, e, no meio das recorda��es
e saudades, perguntei a mim mesmo por que motivo fizera tanto desatino.
N�o era esta certamente a Marcella de 1822; mas a belleza de outro
tempo valia uma ter�a parte dos meus sacrificios? Era o que eu buscava
saber, interrogando o rosto de Marcella. O rosto dizia-me que n�o; ao
mesmo tempo os olhos me contavam que, j� outr'ora, como hoje, ardia
nelles a flamma da cobi�a. Os meus � que n�o souberam ver-lh'a; eram
olhos da primeira edi��o.

--Mas por que entrou aqui? viu-me da rua? porguntou ella, saindo
daquella especie de torpor.

--N�o, suppunha entrar n'uma casa de relojoeiro; queria comprar um
vidro para este relogio; vou a outra parte; desculpe-me; tenho pressa.

Marcella suspirou com tristeza. A verdade � que eu me sentia pungido
e aborrecido, ao mesmo tempo, e anciava por me ver f�ra daquella casa.
Marcella, entretanto, chamou um moleque, deu-lhe o relogio, e, apezar
da minha opposi��o, mandou-o, a uma loja na visinhan�a, comprar o
vidro. N�o havia remedio; sentei-me outra vez. Disse ella ent�o que
desejava ter a protec��o dos conhecidos de outro tempo; ponderou que
mais tarde ou mais cedo era natural que me casasse, e afian�ou que me
daria finas joias por pre�os baratos. N�o disse _pre�os baratos_, mas
usou uma metaphora delicada e transparente. Entrei a desconfiar que
n�o padecera nenhum desastre (salvo a molestia), que tinha o dinheiro
a bom recado, e que negociava com o unico fim de acudir � paix�o do
lucro, que era o verme roedor daquella existencia; foi isso mesmo que
me disseram depois.




CAPITULO XXXIX


O visinho


Emquanto eu fazia commigo mesmo aquella reflex�o, entrou na loja um
sujeito baixo, sem chapeu, trazendo pela m�o uma menina de quatro annos.

--Como passou de hoje de manh�? disse elle a Marcella.

--Assim, assim. Vem c�, Maricota.

O sujeito levantou a crian�a pelos bra�os e passou-a para dentro do
balc�o.

--Anda, disse elle; pergunta a D. Marcella como passou a noite. Estava
anciosa por vir c�, mas a m�e n�o tinha podido vestil-a... Ent�o,
Maricota? Toma a ben��o. .. Olha a vara de marmelo! Assim... N�o
imagina o que ella � l� em casa; falla na senhora a todos os instantes,
e aqui parece uma pamonha. Ainda hontem... Digo, Maricota?

--N�o, diga, n�o, papae.

--Ent�o foi alguma cousa feia? perguntou Marcella batendo na cara da
menina.

--Eu lhe digo; a m�e ensina-lhe a rezar todas as noites um padre-nosso
e uma ave-maria, offerecidos a Nossa Senhora; mas a pequena hontem
veiu pedir-me com voz muito humilde... imagine o que?... que queria
offerecel-os a Santa Marcella.

--Coitadinha! disse Marcella beijando-a.

--� um namoro, uma paix�o, como a senhora n�o imagina ... A m�e diz que
� feiti�o...

Contou mais algumas cousas o sujeito, todas mui agradaveis, at� que
saiu levando a menina, n�o sem deitar-me um olhar interrogativo ou
suspeitoso. Perguntei a Marcella quem era elle.

--� um relojoeiro de visinhan�a, um bom homem; a mulher tambem; e a
filha � galante, n�o? Parecem gostar muito de mim... � boa gente.

Ao proferir estas palavras havia um tremor de alegria na voz de
Marcella; e no rosto como que se lhe espraiou uma onda de ventura...




CAPITULO XL


Na sege


Nisto entrou o moleque trazendo o relogio com o vidro novo. Era tempo;
j� me custava estar alli; dei uma moedinha de prata ao moleque; disse
a Marcella que voltaria n'outra occasi�o, e sa� a passo largo. Para
dizer tudo, devo confessar que o cora��o me batia um pouco; mas era
uma especie de dobre de finados. O espirito ia travado de impress�es
oppostas. Notem que aquelle dia amanhecera alegre para mim. Meu pae, ao
almo�o, repetiu-me, por anticipa��o, o primeiro discurso que eu tinha
de proferir na camara dos deputados; rimo-nos muito, e o sol tambem,
que estava brilhante, como nos mais bellos dias do mundo; do mesmo modo
que Virgilia devia rir, quando eu lhe contasse as nossas fantasias do
almo�o. Vae se n�o quando, c�e-me o vidro do relogio; entro na primeira
loja que me fica � m�o; e eis me surge o passado, eil-o que me lacera
e beija; eil-o que me interroga, com um rosto cortado de saudades e
bexigas...

L� o deixei; metti-me �s pressas na sege, que me esperava no largo
do S. Francisco de Paula, e ordenei ao boleeiro que rodasse pelas
ruas f�ra. O boleeiro ati�ou as bestas, a sege entrou a sacolejar-me,
as molas gemiam, as rodas sulcavam rapidamente a lama que deixara a
chuva recente, e tudo isso me parecia estar parado. N�o ha, �s vezes,
um certo vento, morno que n�o bochorno, n�o forte nem aspero, mas
abafadi�o, que nos n�o leva o chap�o da cabe�a, nem rodomoinha nas
saias das mulheres, e todavia � ou parece ser peior do que se fizesse
uma e outra cousa, porque abate, afrouxa, e como que dissolve os
espiritos? Pois eu tinha esse vento commigo; e, certo de que elle me
soprava por achar-me naquella especie de garganta entre o passado e o
presente, almejava por sair � planicie do futuro. O peior � que a sege
n�o andava.

--Jo�o, bradei eu ao boleeiro. Esta sege anda ou n�o anda?

--U�! nhonh�! J� estamos parados na porta de sinh� Conselheiro.




CAPITULO XLI


A allucina��o


E era verdade. Entrei apressado; achei Virgilia anciosa, mau humor,
fronte nublada. A m�e, que era surda, estava na sala com ella. No fim
dos comprimentos disse-me a mo�a com sequid�o:

--Esperavamos que viesse mais cedo.

Defendi-me do melhor modo; fallei do cavallo que empacara, e de um
amigo, que me detivera. De repente morre-me a voz nos labios, fico
tolhido de assombro. Virgilia... seria Virgilia aquella mo�a? Fitei-a
muito; e a sensa��o foi t�o penosa, que recuei um passo e desviei a
vista. Tornei a olhal-a. As bexigas tinham-lhe comido o rosto; a pelle,
ainda na vespera t�o fina, rosada e pura, apparecia-me agora amarella,
stigmada pelo mesmo flagello, que devastara o rosto da hespanhola. Os
olhos, que eram travessos, fizeram-se murchos; tinha o labio triste
e a attitude can�ada. Olhei-a bem; peguei-lhe na m�o, e chamei-a
brandamente a mim. N�o me enganava; eram as bexigas. Creio que fiz um
gesto de repulsa.

Virgilia afastou-se, e foi sentar-se no soph�. Eu fiquei algum tempo
a olhar para os meus proprios p�s. Devia, sair ou ficar? Rejeitei o
primeiro alvitre, que era simplesmente absurdo, e encaminhei-me para
Virgilia, que l� estava sentada e calada. Ceus! Era outra vez a fresca,
a juvenil, a florida Virgilia. Em v�o procurei no rosto delia algum
vestigio da doen�a; nenhum havia; era a pelle fina e branca do costume.

--Nunca me viu? perguntou Virgilia, vendo que a encarava com insist�ncia.

--T�o bonita, nunca.

Sentei-me, emquanto Virgilia, calada, fazia estalar as unhas.
Seguiram-se alguns segundos de pausa. Fallei-lhe de cousas extranhas ao
incidente; ella por�m n�o me respondia nada, nem olhava para mim. Menos
o estalido, era a estatua do Silencio. Uma s� vez me deitou os olhos,
mas muito de cima, soerguendo a pontinha esquerda do labio, contrahindo
as sobrancelhas, ao ponto de as unir; e todo esse conjuncto de cousas
dava-lhe ao rosto uma express�o media, entre comica e tragica.

Havia alguma affecta��o naquelle desdem; era um arrebique do gesto.
L� dentro, ella padecia, e n�o pouco,--ou fosse magua pura, ou s�
despeito; e porque a dor que se dissimula d�e mais, � mui prov�vel que
Virgilia padecesse em dobro do que realmente devia padecer. Creio que
isto � metaphysica.




CAPITULO XLII


Que escapou a Aristoteles


Outra cousa que tambem me parece metaphysica � isto:--D�-se movimento a
uma bola, por exemplo; r�la esta, encontra outra bola, transmitte-lhe
o impulso, e eis a segunda bola a rolar como a primeira rolou.
Supponhamos que a primeira bola se chama... Marcella,--� uma simples
supposi��o; a segunda, Braz Cubas;--a terceira, Virgilia. Temos que
Marcella, recebendo um piparote do passado rolou at� tocar em Braz
Cubas,--o qual, cedendo � for�a impulsiva, entrou a rolar tambem at�
esbarrar em Virgilia, que n�o tinha nada com a primeira bola; e eis
ahi como, pela simples transmiss�o de uma for�a, se tocam os extremos
sociaes, e se estabelece uma cousa que poderemos chamar--solidariedade
do aborrecimento humano. Como � que este capitulo escapou a
Aristoteles?




CAPITULO XLIII


Marqueza, porque eu serei marquez


Positivamente, era um diabrete Virgilia, um diabrete angelico, se
querem, mas era-o, e ent�o...

E ent�o appareceu o Lobo Neves, um homem que n�o era mais esbelto
do que eu, nem mais elegante, nem mais lido, nem mais sympathico, e
todavia foi quem me arrebatou Virgilia e a candidatura, dentro de
poucas semanas, com um impeto verdadeiramente cesariano. N�o precedeu
nenhum despeito; n�o houve a menor violencia de familia. O Dutra veiu
dizer-me, um dia, que esperasse outra aragem, porque a candidatura
de Lobo Neves era apoiada por grandes influencias. Cedi; e tal foi o
come�o da minha derrota. Uma semana depois, Virgilia perguntou ao Lobo
Neves, a sorrir, quando seria elle ministro.

--Pela minha vontade, j�; pela dos outros, daqui a um anno.

Virgilia replicou:

--Promette que algum dia me far� baroneza?

--Marqueza, porque eu serei marquez.

Desde ent�o fiquei perdido. Virgilia comparou a aguia e o pav�o, e
elegeu a aguia, deixando o pav�o com o seu espanto, o seu despeito, e
tres ou quatro beijos que lhe dera. Talvez cinco beijos; mas dez que
fossem n�o queria dizer cousa nenhuma. O labio do homem n�o � como
a pata do cavallo de Attila que esterilisava o solo em que batia; �
justamente o contrario.




CAPITULO XLIV


Um Cubas!


Meu pae ficou attonito com o desenlace, e quer-me parecer que n�o
morreu de outra cousa. Eram tantos os castellos que engenh�ra, tantos
e tantissimos os sonhos, que n�o podia vel-os assim esboroados, sem
padecer um forte abalo no organismo. A principio n�o quiz crel-o. Um
Cubas! um galho da arvore illustre dos Cubas! E dizia isto com tal
convic��o, que eu, j� ent�o informado da nossa tanoaria, esqueci um
instante a voluvel dama, para s� contemplar aquelle phenomeno, n�o
raro, mas curioso: uma imagina��o graduada em consci�ncia.

--Um Cubas! repetia-me elle na seguinte manh�, ao almo�o.

N�o foi alegre o almo�o; eu proprio estava a ca�r de somno. Tinha
velado uma parte da noite. De amor? Era impossivel; n�o se ama duas
vezes a mesma mulher, e eu, que tinha de amar aquella, tempos depois,
n�o lhe estava agora preso por nenhum outro vinculo, al�m de uma
phantasia passageira, alguma obediencia e muita fatuidade. E isto
basta a explicar a vigilia; era despeito, um despeitosinho agudo como
ponta de alfinete, o qual se desfez, com charutos, murros, leituras
truncadas, at� romper a aurora, a mais tranquilla das auroras.

Mas eu era mo�o, tinha o remedio em mim mesmo. Meu pae � que n�o p�de
supportar facilmente a pancada. Pensando bem, pode ser que n�o morresse
precisamente do desastre; mas que o desastre lhe complicou as ultimas
dores, � positivo. Morreu dahi a quatro mezes,--acabrunhado, triste,
com uma preoccupa��o intensa e continua, � semelhan�a de remorso, um
desencanto mortal, que lhe substituiu os rheumatismos e tosses. Teve
ainda uma meia hora de alegria; foi quando um dos ministros o visitou.
Vi-lhe,--lembra-me bem,--vi-lhe o grato sorriso de outro tempo, e nos
olhos uma concentra��o de luz, que era, por assim dizer, o ultimo
lampejo da alma expirante. Mas a tristeza tornou logo, a tristeza de
morrer sem me ver posto em algum logar alto, como ali�s me cabia.

--Um Cubas!

Morreu alguns dias depois da visita do ministro, uma manh� de maio,
entre os dois filhos, Sabina e eu, e mais o tio Ildefonso e meu
cunhado. Morreu sem lhe poder valer a sciencia dos medicos, nem o nosso
amor, nem os cuidados, que foram muitos, nem cousa nenhuma; tinha de
morrer, morreu.

--Um Cubas!




CAPITULO XLV


Notas


Solu�os, lagrimas, casa armada, velludo preto nos portaes, um homem
que veiu vestir o cadaver, outro que tomou a medida do caix�o, caix�o,
e�a, tocheiros, convites, convidados que entravam, lentamente, a passo
surdo, e apertavam a m�o � familia, alguns tristes, todos serios e
calados, padre e sacrist�o, rezas, aspers�es d'agua benta, o fechar
do caix�o, a prego e martello, seis pessoas que o tomam da e�a, e o
levantam, e o descem a custo pela escada, n�o obstante os gritos,
solu�os e novas lagrimas da familia, e v�o at� o coche funebre, e o
collocam em cima, e traspassam e apertam as corr�as, o rodar do coche,
o rodar dos carros, um a um... Isto que parece um simples inventario,
eram notas que eu havia tomado para um capitulo extremamente
succulento, em que provava que a terra deve continuar a girar em volta
do sol; porquanto:--_a_) a natureza n�o inventou a morte, sen�o
com o fim de dar vida a algumas industrias,--armadores, segeiros,
emprezas funerarias, typographias, e outras que ella sagazmente
previu;--_b_) mortas essas industrias, pela ausencia da morte humana,
n�o � improvavel que viessem a morrer os respectivos industriaes; o que
dava na mesma. Mas tudo isto s�o apenas notas de um capitulo, que n�o
escrevo.




CAPITULO XLVI


A heran�a


Veja-nos agora o leitor, oito dias depois da morte de meu pae,--minha
irm� sentada n'um soph�,--pouco adiante, o Cotrim, de p�, encostado a
um consolo, com os bra�os cruzados e a morder o bigode,--eu a passeiar
de um lado para outro, com os olhos no ch�o. Luto pezado. Profundo
silencio.

--Mas afinal, disse o Cotrim; esta casa pouco mais p�de valer de trinta
contos; demos que valha trinta e cinco...

--Vale cincoenta, ponderei; a Sabina sabe que custou cincoenta e oito...

--Podia custar at� sessenta, tornou o Cotrim; mas n�o se segue que
os valesse, e menos ainda que os valha hoje. Voc� sabe que as casas,
aqui ha annos, baixaram muito. Olhe, se esta vale os cincoenta contos,
quantos n�o vale a que voc� deseja para si, a do Campo?

--N�o fale nisso! Uma casa velha.

--Velha! exclamou Sabina, levantando as m�os ao tecto.

--Parece-lhe nova, aposto?

--Ora, mano, deixe-se dessas cousas, disse Sabina, erguendo-se do
soph�; podemos arranjar tudo em boa amizade, e com lisura. Por exemplo,
o Cotrim n�o aceita os pretos, quer s� o boleeiro de papae e o Paulo...

--O boleeiro n�o, acudi eu; fico com a sege e n�o hei de ir comprar
outro.

--Bem; fico com o Paulo e o Prudencio.

--O Prudencio est� livre.

--Livre?

--Ha dois annos.

--Livre? Como seu pae arranjava estas cousas c� por casa, sem dar parte
a ninguem! Est� direito. Quanto � prata... creio que n�o libertou a
prata?

Tinhamos falado na prata, a velha prataria do tempo de D. Jos� I, a
por��o mais grave da heran�a, j� pelo lavor, j� pela vetustez, j� pela
origem da propriedade; dizia meu pae que o conde da Cunha, quando
vice-rei do Brazil, a dera de presente a meu bisav� Luiz Cubas.

--Quanto � prata, continuou o Cotrim, eu n�o faria quest�o nenhuma,
se n�o fosse o desejo que sua irm� tem de ficar com ella; e acho-lhe
raz�o. Sabina � casada, e precisa de uma copa digna, apresentavel. Voc�
� solteiro, n�o recebe, n�o...

--Mas posso casar.

--Para que? interrompeu Sabina.

Era t�o sublime esta pergunta, que por alguns instantes me fez esquecer
os interesses. Sorri; peguei na m�o de Sabina, bati-lhe levemente na
palma, tudo isso com t�o boa sombra, que o Cotrim interpretou o gesto
como de acquiescencia, e agradeceu-m'o.

--Que � l�? redargui; n�o cedi cousa nenhuma, nem cedo.

--Nem cede?

Abanei a cabe�a.

--Deixa, Cotrim, disse minha irm� ao marido; v� se elle quer ficar
tambem com a nossa roupa do corpo; � s� o que falta.

--N�o falta mais nada. Quer a sege, quer o boleeiro, quer a prata,
quer tudo. Olhe, � muito mais summario citar-nos a juizo e provar com
testemunhas que Sabina n�o � sua irm�, que eu n�o sou seu cunhado, e
que Deus n�o � Deus. Fa�a isto, e n�o perde nada, nem uma colherinha.
Ora, meu amigo, outro officio!

Estava t�o agastado, e eu n�o menos, que entendi offerecer um meio de
concilia��o; dividir a prata. Riu-se e perguntou-me a quem caberia
o bule e a quem o assucareiro; e depois desta pergunta, declarou
que teriamos tempo de liquidar a preten��o, quando menos em juizo.
Entretanto, Sabina f�ra at� � janella que dava para a chacara,--e
depois de um instante, voltou, e propoz ceder o Paulo e outro preto,
com a condi��o de ficar com a prata; eu ia dizer que n�o me convinha,
mas o Cotrim adiantou-se e disse a mesma cousa.

--Isso nunca! n�o fa�o esmolas! disse elle.

Jant�mos tristes. Meu tio conego appareceu � sobremeza, e ainda
presenciou uma pequena alterca��o.

--Meus filhos, disse elle, lembrem-se que meu irm�o deixou um p�o bem
grande para ser repartido por todos.

Mas o Cotrim:

--Creio, creio. A quest�o, porem, n�o � de p�o, � de manteiga. P�o
secco � que eu n�o engulo.

Fizeram-se finalmente as partilhas, mas n�s estavamos brigados. E
digo-lhes que, ainda assim, custou-me muito a brigar com Sabina. Eramos
t�o amigos! Jogos pueris, furias de crian�a, risos e tristezas da
edade adulta, dividimos muita vez esse p�o da alegria e da miseria,
irm�mente, como bons irm�os que eramos. Mas estavamos brigados. Tal
qual a belleza de Marcella, que se esvaiu com as bexigas.




CAPITULO XLVII


O recluso


Marcella, Sabina, Virgilia... ahi estou eu a fundir todos os
contrastes, como se esses nomes e pessoas n�o fossem mais do que modos
de ser da minha affei��o interior. Penna de m�us costumes, ata uma
gravata ao teu estylo, veste-lhe um collete menos sordido; e depois
sim, depois vem commigo, entra nessa casa, estira-te nessa rede que me
embalou a melhor parte dos annos que decorreram desde o inventario de
meu pae at� 1842. Vem; se te cheirar a algum aroma de toucador, n�o
cuides que o mandei derramar para meu regalo; � um vest�gio da N. ou
da Z. ou da U.--que todas essas lettras maiusculas embalaram ahi a sua
elegante abjec��o. Mas, se al�m do aroma, quizeres outra cousa, fica-te
com o desejo, porque eu n�o guardei retratos, nem cartas, nem memorias;
a mesma commo��o esvaiu-se, e s� me ficaram as lettras iniciaes.

Vivi meio recluso, indo de longe em longe a algum baile, ou theatro,
ou palestra, mas a m�r parte do tempo passei-a commigo mesmo. Vivia;
deixava-me ir ao curso e recurso dos successos e dos dias, ora
boli�oso, ora apathico, entre a ambi��o e o desanimo. Escrevia politica
e fazia litteratura. Mandava artigos e versos para as folhas publicas,
e cheguei a alcan�ar certa reputa��o de polemista e de poeta. Quando
me lembrava do Lobo Neves, que era j� deputado, e de Virgilia, futura
marqueza, perguntava a mim mesmo porque n�o seria melhor deputado e
melhor marquez do que o Lobo Neves,--eu, que valia mais, muito mais do
que elle,--e dizia isto a olhar para a ponta do nariz...




CAPITULO XLVIII


Um primo de Virgilia


--Sabe quem chegou hontem de S. Paulo? perguntou-me uma noite o Luiz
Dutra.

O Luiz Dutra era um primo de Virgilia, que tambem privava com as
musas. Os versos delle agradavam e valiam mais do que os meus; mas
elle tinha necessidade da sanc��o de alguns, que lhe confirmasse o
applauso dos outros. Como fosse acanhado, n�o interrogava a ninguem;
mas deleitava-se com ouvir alguma palavra de apre�o; ent�o criava novas
for�as e arremettia juvenilmente ao trabalho.

Pobre Luiz Dutra! Apenas publicava alguma cousa corria � minha casa,
e entrava a girar em volta de mim, � espreita de um juizo, de uma
palavra, de um gesto, que lhe approvasse a recente produc��o, e eu
falava-lhe de mil cousas differentes,--do ultimo baile do Cattete, da
discuss�o das camaras, de berlindas e cavallos,--de tudo, menos dos
seus versos ou prosas. Elle respondia-me, a principio com anima��o,
depois mais frouxo, torcia a redea da conversa para o seu assumpto
delle, abria um livro, perguntava-me se tinha algum trabalho novo, e eu
dizia-lhe que sim ou que n�o, mas torcia a redea para o outro lado, e
l� ia elle atraz de mim, at� que empacava de todo e sa�a triste. Minha
inten��o era fazel-o duvidar de si mesmo, desanimal-o, eliminal-o. E
tudo isto a olhar para a ponta do nariz...




CAPITULO XLIX


A ponta do nariz


Nariz, consciencia sem remorsos, tu me valeste muito na vida... J�
meditaste alguma vez no destino do nariz, amado leitor? A explica��o
do doutor Pangloss � que o nariz foi creado para uso dos oculos,--e
tal explica��o confesso que at� certo tempo me pareceu definitiva; mas
veiu um dia, em que, estando a ruminar esse e outros pontos obscuros de
philosophia, atinei com a unica, verdadeira e definitiva explica��o.

Com effeito, bastou-me attentar no costume do fakir. Sabe o leitor
que o fakir gasta longas horas a olhar para a ponta do nariz, com
o fim unico de ver a luz celeste. Quando elle finca os olhos na
ponta do nariz, perde o sentimento das cousas externas, embelleza-se
no invisivel, apprehende o impalpavel, desvincula-se da terra,
dissolve-se, etherisa-se. Essa sublima��o do ser pela ponta do nariz
� o phenomeno mais excelso do espirito; e a faculdade de a obter n�o
pertence ao fakir s�mente; � universal. Cada homem tem necessidade
e poder de contemplar o seu proprio nariz, para o fim de ver a luz
celeste; e tal contempla��o, cujo effeito � a subordina��o do universo
a um nariz s�mente, constitue o equilibrio das sociedades. Se os
narizes se contemplassem exclusivamente uns aos outros, o genero humano
n�o chegaria a durar dois s�culos: extinguia-se com as primeiras tribos.

Ou�o daqui uma objec��o do leitor:--Como pode ser assim, diz elle,
se nunca jamais ninguem n�o viu estarem os homens a contemplar o seu
proprio nariz?

Leitor obtuso, isso prova que nunca entraste no cerebro de um
chapeleiro. Um chapeleiro passa por uma loja de chapeus; � a loja de
um rival, que a abriu ha dois annos; tinha ent�o duas portas, hoje tem
quatro; promette ter seis e oito. Nas vidra�as ostentam-se os chapeus
do rival; pelas portas entram os freguezes do rival; e o chapeleiro
compara aquella loja com a sua, que � mais antiga e tem s� duas portas,
e aquelles chapeus com os seus, menos buscados, ainda que de egual
pre�o. Mortifica-se naturalmente; mas vae andando, concentrado, com os
olhos para baixo ou para a frente, a indagar as causas da prosperidade
do outro e do seu proprio atrazo, quando elle chapeleiro � muito melhor
chapeleiro do que o outro chapeleiro... Nesse instante � que os olhos
se fixam na ponta do nariz.

A conclus�o, portanto, � que ha duas for�as capitaes: o amor, que
multiplica a especie, e o nariz, que a subordina ao individuo.
Procrea��o, equilibrio.




CAPITULO L


Virgilia casada


--Quem chegou de S. Paulo foi minha prima Virgilia, casada com o Lobo
Neves, continuou o Luiz Dutra.

--Ah!

--E s� hoje � que eu soube uma cousa, seu magan�o...

--Que foi?

--Que voc� quiz casar com ella.

--Id�as de meu pae. Quem lhe disse isso?

--Ella mesma. Falei-lhe muito em voc�, e ella ent�o contou-me tudo.

No dia seguinte, estando na rua do Ouvidor, � porta da typographia do
Plancher, vi assomar, a distancia, uma mulher esplendida. Era ella; s�
a reconheci a poucos passos, t�o outra estava, a tal ponto a natureza
e a arte lhe haviam dado o ultimo apuro. Cortej�mo-nos; ella seguiu;
entrou com o marido na carruagem, que os esperava um pouco acima; eu
fiquei attonito.

Oito dias depois, encontrei-a num baile; creio que cheg�mos a trocar
duas ou tres palavras. Mas n'outro baile, dado dahi a um mez, em
casa de uma senhora, que ornara os sal�es do primeiro reinado, e n�o
desornava ent�o os do segundo, a aproxima��o foi maior e mais longa,
porque convers�mos e vals�mos. A valsa � uma deliciosa cousa. Vals�mos;
e n�o nego que, ao conchegar ao meu corpo aquelle corpo flexivel e
magnifico, tive uma singular sensa��o, uma sensa��o de homem roubado.

--Est� muito calor, disse ella, logo que acab�mos. Vamos ao terra�o?

--N�o; pode constipar-se. Vamos a outra sala.

Na outra sala estava o Lobo Neves, que me fez muitos comprimentos,
�cerca dos meus escriptos politicos, accrescentando que nada dizia
dos litterarios, por n�o entender delles; mas os politicos eram
excellentes, bem pensados e bem escriptos. Respondi-lhe com eguaes
esmeros de cortezia, e separ�mos-nos contentes um do outro.

Cerca de tres semanas depois recebi um convite delle para uma reuni�o
intima. Fui; Virgilia recebeu-me com esta graciosa palavra:--O senhor
hoje ha de valsar commigo.--Na verdade, eu tinha fama e era valsista
emerito; n�o admira que ella me preferisse. Vals�mos uma vez, e mais
outra vez. Um livro perdeu Francesca; c� foi a valsa que nos perdeu.
Creio que nessa noite apertei-lhe a m�o com muita for�a, e ella
deixou-a ficar, como esquecida, e eu a abra�al-a, e todos com os olhos
em n�s, e nos outros que tambem se abra�avam e giravam...Um delirio.




CAPITULO LI


� minha!


--� minha! disse eu commigo, logo que a passei a outro cavalheiro; e
confesso que durante o resto da noite, foi-se-me a id�a entranhando
no espirito, n�o � for�a de martello, mas de verruma, que � mais
insinuativa.

--� minha! dizia eu ao chegar � porta de casa.

Mas ahi, como se o destino ou o acaso, ou o que quer que fosse, se
lembrasse de dar algum pasto aos meus arroubos possessorios, luziu-me
no ch�o uma cousa redonda e amarella. Abaixei-me; era uma moeda de
ouro, uma meia-dobra.

--� minha! repeti eu a rir-me; e metti-a no bolso.

Nessa noite n�o pensei mais na moeda; mas no dia seguinte, recordando o
caso, senti uns repell�es da consciencia, e uma voz que me perguntava
porque diabo seria minha uma moeda que eu n�o herdara nem ganhara, mas
s�mente achara na rua. Evidentemente n�o era minha; era de outro,
daquelle que a perdera, rico ou pobre, e talvez fosse pobre, algum
operario que n�o teria com que dar de comer � mulher e aos filhos; mas
se fosse rico, o meu dever ficava o mesmo. Cumpria restituir a moeda, e
o melhor meio, o unico meio, era fazel-o por intermedio de um annuncio
ou da policia. Enviei uma carta ao chefe de policia, remettendo-lhe
o achado, e rogando-lhe que, pelos meios a seu alcance, fizesse
devolvel-o �s m�os do verdadeiro dono.

Mandei a carta e almocei tranquillo, posso at� dizer que jubiloso.
Minha consciencia vals�ra tanto na vespera, que chegou a ficar
suffocada, sem respira��o; mas a restitui��o da meia dobra foi uma
janella que se abriu para o outro lado da moral; entrou uma onda de
ar puro, e a pobre dama respirou � larga. Ventilae as consci�ncias!
n�o vos digo mais nada. Todavia, despido de quaesquer outras
circumstancias, o meu acto era bonito, porque exprimia um justo
escrupulo, um sentimento de alma delicada. Era o que me dizia a minha
dama interior, com um modo austero e meigo a um tempo; � o que ella me
dizia, reclinada ao peitoril da janella aberta.

--Fizeste bem, Cubas; andaste perfeitamente. Este ar n�o � s� puro, �
balsamico, e uma transpira��o dos eternos jardins. Queres ver o que
fizeste, Cubas?

E a boa dama sacou um espelho e abriu-m'o deante dos olhos. Vi,
claramente vista, a meia dobra da vespera, redonda, brilhante, nitida,
multiplicando-se por si mesma,--ser dez--depois trinta--depois
quinhentas,--exprimindo assim o beneficio que me daria na vida e
na morte o simples acto da restitui��o. E eu espraiava todo o meu
ser na contempla��o daquelle acto, revia-me nelle, achava-me bom,
talvez grande. Uma simples moeda, hem? Vejam o que � ter valsado um
poucochinho mais.

Assim, eu, Braz Cubas, descobri uma lei sublime, a lei da equivalencia
das janellas, e estabeleci que o modo de compensar uma janella fechada
� abrir outra, afim de que a moral possa arejar continuamente a
consciencia. Talvez n�o entendas o que ahi fica; talvez queiras uma
cousa mais concreta, um embrulho, por exemplo, um embrulho mysterioso.
Pois toma l� o embrulho mysterioso.




CAPITULO LII


O embrulho mysterioso


Foi o caso que, alguns dias depois, indo eu a Botafogo tropecei n'um
embrulho, que estava na praia. N�o digo bem; houve menos trope��o que
pontap�. Vendo um embrulho, n�o grande, mas limpo e correctamente
feito, atado com um barbante rijo, uma cousa que parecia alguma cousa,
lembrou-me bater-lhe com o p�, assim por experiencia, e bati, e o
embrulho resistiu. Relanceei os olhos em volta de mim; a praia estava
deserta; ao longe uns meninos brincavam,--um pescador curava as redes
ainda mais longe,--ninguem que pudesse ver a minha ac��o; inclinei-me,
apanhei o embrulho e segui.

Segui, mas n�o sem receio. Podia ser uma pulha de rapazes. Tive id�a de
devolver o achado � praia, mas apalpei-o e rejeitei a idea. Um pouco
adeante, desandei o caminho e guiei para casa.

--Vejamos, disse eu ao entrar no gabinete.

E hesitei um instante, creio que por vergonha; assaltou-me outra vez o
receio da pulha. � certo que n�o havia alli nenhuma testemunha externa;
mas eu tinha dentro de mim mesmo um garoto, que havia de assoviar,
guinchar, grunhir, patear, apupar, cacarejar, fazer o diabo, se me
visse abrir o embrulho e achar dentro uma duzia de len�os velhos ou
duas duzias de goiabas verdes. Mas era tarde; a curiosidade estava
agu�ada, como deve estar a do leitor; desfiz o embrulho, e vi...
achei... contei... recontei nada menos de cinco contos de reis. Nada
menos. Talvez um dez mil reis mais. Cinco contos em boas notas e
dobras, tudo aceiadinho e arranjadinho, um achado raro. Embrulhei-as
de novo. Ao jantar pareceu-me que um dos moleques falara a outro com
os olhos. Ter-me-iam espreitado? Interroguei-os discretamente, e
conclui que n�o. Sobre o jantar, fui outra vez ao gabinete, examinei
o dinheiro, e ri-me dos meus cuidados maternaes a respeito de cinco
contos,--eu, que era abastado.

Para n�o pensar mais naquillo fui de noite � casa do Lobo Neves,
que inst�ra muito commigo n�o deixasse de frequentar as recep��es
da mulher. L� encontrei o chefe de policia; fui-lhe apresentado;
elle lembrou-se logo da carta e da meia dobra que eu lhe remettera
alguns dias antes. Aventou o caso; Virgilia pareceu saborear o meu
procedimento, e cada um dos presentes acertou de contar uma anecdota
analoga, que eu ouvi com impaciencias de mulher hysterica.

De noite, no dia seguinte, em toda aquella semana pensei o menos que
pude nos cinco contos, e at� confesso que os deixei muito quietinhos
na gaveta da secretaria. Gostava de falar de todas as cousas, menos de
dinheiro, e principalmente de dinheiro achado; e todavia n�o era crime
achar dinheiro, era uma felicidade, um bom acaso, era talvez um lance
da Providencia. N�o podia ser outra cousa. N�o se perdem cinco contos,
como se perde um len�o de tabaco. Cinco contos levam-se com trinta mil
sentidos, apalpam-se a miudo, n�o se lhes tiram os olhos de cima, nem
as m�os, nem o pensamento, e para se perderem assim tolamente, n'uma
praia, � necess�rio que... Crime � que n�o podia ser o achado; nem
crime, nem deshonra, nem nada que embaciasse o caracter de um homem.
Era um achado, um acerto feliz, como a sorte grande, como as apostas
de cavallo, como os ganhos de um jogo honesto; e at� direi que a minha
felicidade era merecida, porque eu n�o me sentia m�u, nem indigno dos
beneficios da Providencia.

--Estes cinco contos, dizia eu com migo, tres semanas depois, hei de
empregal-os em alguma ac��o b�a, talvez um dote a alguma menina pobre,
ou outra cousa assim... hei de ver...

Nesse mesmo dia levei-os ao Banco do Brazil. L� me receberam com
muitas e delicadas allus�es ao caso de meia dobra, cuja noticia andava
j� espalhada entre as pessoas do meu conhecimento; respondi enfadado
que a cousa n�o valia a pena de tamanho estrondo; louvaram-me ent�o
a modestia,--e porque eu me encolerisasse, replicaram-me que era
simplesmente grande.




CAPITULO LIII


..........

Virgilia � que j� se n�o lembrava da meia dobra; toda ella
estava concentrada em mim, nos meus olhos, na minha vida, no meu
pensamento;--era o que dizia, e era verdade.

Ha umas plantas que nascem e crescem depressa; outras s�o tardias
e pecas. O nosso amor era daquellas; brotou com tal impeto e tanta
seiva, que, dentro em pouco, era a mais vasta, folhuda e exuberante
creatura dos bosques. N�o lhes poderei dizer, ao certo, os dias
que durou esse crescimento. Lembra-me, sim, que, em certa noite,
abotoou-se a flor, ou o beijo, se assim lhe quizerem chamar, um beijo
que ella me deu, tremula,--coitadinha,--tremula de medo, porque era
ao port�o da chacara, � vista das estrellas,--das castas estrellas de
Othello,--_you chaste stars!_ Uniu-nos esse beijo unico,--breve como
a occasi�o, ardente como o amor, prologo de uma vida de delicias, de
terrores, de remorsos, de prazeres que rematavam em dor, de afflic��es
que desabrochavam em alegria,--uma hypocrisia paciente e systematica,
unico freio de uma paix�o sem freio,--vida de agita��es, de coleras,
de desesperos e de ciumes, que uma hora pagava � farta e de sobra;
mas outra hora vinha e engolia aquella, como tudo mais, para deixar �
tona as agita��es e o resto, e o resto do resto, que � o fastio e a
saciedade: tal foi o livro daquelle prologo.




CAPITULO LIV


A pendula


Sa� dalli a saborear o beijo. N�o pude dormir; estirei-me na cama,
� certo, mas foi o mesmo que nada. Ouvi as horas todas da noite.
Usualmente, quando eu perdia o somno, o bater da pendula fazia-me muito
mal; esse _tic-tac_ soturno, vagaroso e secco parecia dizer a cada
golpe que eu ia ter um instante menos de vida. Imaginava ent�o um velho
diabo, sentado entre dous saccos, o da vida e da morte, a tirar as
moedas da vida para dal-as � morte, e a contal-as assim:

--Outra de menos...

--Outra de menos...

--Outra de menos...

--Outra de menos...

O mais singular � que, se o relogio parava, eu dava-lhe corda, para
que elle n�o deixasse de bater nunca, e eu pudesse contar todos os
meus instantes perdidos. Inven��es ha, que se transformam ou acabam;
as mesmas institui��es morrem; o relogio � definitivo e perpetuo. O
derradeiro homem, ao despedir-se do sol frio e gasto, hade ter um
relogio na algibeira, para saber a hora exacta em que morre.

Naquella noite n�o padeci essa triste sensa��o de enfado, mas outra, e
deleitosa. As phantasias tumultuavam-me c� dentro, vinham umas sobre
outras, � semelhan�a de devotas que se abalroam para ver o anjo-cantor
das prociss�es. N�o ouvia os instantes perdidos, mas os minutos
ganhados; e de certo tempo em diante n�o ouvi cousa nenhuma, porque o
meu pensamento, ardiloso e traquinas, saltou pela janella f�ra e bateu
as azas na direc��o da casa de Virgilia. Ahi achou ao peitoril de uma
janella o pensamento de Virgilia, saudaram-se e ficaram de palestra.
N�s a rolarmos na cama, talvez com frio, necessitados de repouso, e os
dous vadios alli postos, a repetirem o velho dialogo de Ad�o e Eva.




CAPITULO LV


O velho dialogo de Ad�o e Eva


BRAZ CUBAS

   .   .   .   . ?

VIRGILIA

.   .

BRAZ CUBAS

           .      .      .   .   .   .      .      .   .

    .         .       .


VIRGILIA

    .       .  . !

BRAZ CUBAS

    .         .

VIRGILIA

.   .   .     .            .       .       .   .   .
.   .   .  .  .         ?  .   .       .   .   .
.   .   .  .  .            .   .   .   .   .   .   .

BRAZ CUBAS

.   .   .   .     .   .


VIRGILIA

.   .   .   .

BRAZ CUBAS

.   .   .   .   .   .   .   .   .   .         .   .   .

.   .   .   .   .   .       .   .   .   .     .   .   .

.   .   .   .   .       .   .   .   .         !   .   .

.   .   !   .       .   .   .   .   .             .   .

.   .   .   .   .   .   .       .   .      .   .      !

VIRGILIA

.   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .      .   .?

BRAZ CUBAS

.   .   .   .   .!

VIRGILIA

.   .   .   .   .!




CAPITULO LVI


O momento opportuno


Mas, com a breca! quem me explicar� a raz�o desta differen�a? Um dia
vimo-nos, trat�mos o casamento, desfizemol-o e separamo-nos, a frio,
sem dor, porque n�o houvera paix�o nenhuma; mordeu-me apenas algum
despeito e nada mais. Correm annos, torno a vel-a, damos tres ou quatro
giros de valsa, e eis-nos a amar um ao outro com delirio. A belleza
de Virgilia cheg�ra, � certo, a um alto gr�u de apuro, mas n�s eramos
substancialmente os mesmos, e eu, � minha parte, n�o me torn�ra mais
bonito nem mais elegante. Quem me explicar� a raz�o dessa differen�a?

A raz�o n�o podia ser outra sen�o o momento opportuno. N�o era
opportuno o primeiro momento, porque, se nenhum de n�s estava verde
para o amor, ambos o estavamos para o _nosso_ amor: distinc��o
fundamental. N�o ha amor possivel sem a opportunidade dos sujeitos.
Esta explica��o achei-a eu mesmo, dous annos depois do beijo, um
dia em que Virgilia se me queixava de um pintalegrete que l� ia e
tenazmente a galanteava.

--Que importuno! dizia ella fazendo uma careta de raiva.

Estremeci, fitei-a, vi que a indigna��o era sincera; ent�o occorreu-me
que talvez eu tivesse provocado alguma vez aquella mesma careta, e
comprehendi logo toda a grandeza da minha evolu��o. Tinha vindo de
importuno a opportuno.




CAPITULO LVII


Destino


Sim, senhor, amavamos. Agora, que todas as leis sociaes nol-o impediam,
agora � que nos amavamos dev�ras. Achavamo-nos jungi-los um ao outro,
como as duas almas que o poeta encontrou no Purgatorio:

    Di pari, come buoi, che vanno a giogo;

e digo mal, comparando-nos a bois, porque n�s eramos outra especie de
animal menos tardo, mais velhaco e lascivo. Eis-nos a caminhar sem
saber at� onde, nem porque estradas escusas; problema que me assustou,
durante algumas semanas, mas cuja solu��o entreguei ao destino. Pobre
Destino! Onde andar�s agora, grande procurador dos negocios humanos?
Talvez estejas a criar pelle nova, outra cara, outras maneiras, outro
nome, e n�o � impossivel que... J� me n�o lembra onde estava... Ah!
nas estradas escusas. Disse eu commigo que j� agora seria o que
Deus quisesse. Era a nossa sorte amar-nos; se assim n�o fora, como
explicariamos a valsa e o resto? Virgilia pensava a mesma cousa. Um
dia, depois de me confessar que tinha momentos de remorsos, como eu lhe
dissesse que, se tinha remorsos, � porque me n�o tinha amor, Virgilia
cingiu-me com os seus magnificos bra�os, murmurando:

--Amo-te, � a vontade do ceu.

E esta palavra n�o vinha � toa; Virgilia era um pouco religiosa. N�o
ouvia missa aos domingos, � verdade, e creio at� que s� ia �s igrejas
em dia de festa, e quando havia logar vago em alguma tribuna. Mas
rezava todas as noites, com fervor, ou, pelo menos, com somno. Tinha
medo �s trovoadas; nessas occasi�es, tapava os ouvidos, e resmoneava
todas as ora��es do catecismo. Na alcova della havia um oratoriosinho
de jacarand�, obra de talha, de tres palmos de altura, com tres imagens
dentro; mas n�o falava delle �s amigas; ao contrario, taxava de beatas
as que eram s� religiosas. Algum tempo desconfiei que havia nella certo
vexame de crer, e que a sua religi�o era uma especie de camisa de
flanella, preservativa e clandestina; mas evidentemente era engano meu.




CAPITULO LVIII


Confidencia


O Lobo Neves, a principio, mettia-me grandes sustos. Pura illus�o!
Como adorasse a mulher, n�o se vexava de m'o dizer muitas vezes;
achava que Virgilia era a perfei��o mesma, um conjunto de qualidades
solidas e finas, amoravel, elegante, austera, um modelo. E a confian�a
n�o parava ahi. De fresta que era, chegou a porta escancarada. Um dia
confessou-me que trazia uma triste carcoma na existencia; faltava-lhe
a gloria publica. Animei-o; disse-lhe muitas cousas bonitas, que elle
ouviu com aquella unc��o religiosa de um desejo que n�o quer acabar de
morrer; ent�o comprehendi que a ambi��o delle andava can�ada de bater
as azas, sem poder abrir o v�o. Dias depois disse-me todos os seus
tedios e desfallecimentos, as amarguras engolidas, as raivas sopitadas;
contou-me que a vida politica era um tecido de invejas, despeitos,
intrigas, perfidias, interesses, vaidades. Evidentemente havia ahi uma
crise de melancolia; tratei de combatel-a.

--Sei o que lhe digo, replicou-me com tristeza. N�o p�de imaginar o
que tenho passado. Entrei na politica por gosto, por familia, por
ambi��o, e um pouco por vaidade. J� v� que reuni em mim s� todos os
motivos que levam o homem � vida publica; faltou-me s� o interesse de
outra natureza. Vira o theatro pelo lado da plat�a; e, palavra, que era
bonito! Soberbo scenario, vida, movimento e gra�a na representa��o.
Escripturei-me; deram-me um papel que... Mas para que o estou a fatigar
com isto? Deixe-me ficar com as minhas amofina��es. Creia que tenho
passado horas e dias... N�o ha const�ncia de sentimentos, n�o ha
gratid�o, n�o ha nada... nada... nada...

Calou-se, profundamente abatido, com os olhos no ar, parecendo n�o
ouvir cousa nenhuma, a n�o ser o echo de seus proprios pensamentos.
Ap�s alguns instantes, ergueu-se e estendeu-me a m�o:--O senhor ha de
rir-se de mim, disse elle; mas desculpe aquelle desabafo; tinha um
negocio, que me mordia o espirito. E ria, de um geito sombrio e triste;
depois pediu-me que n�o referisse a ninguem o que se passara entre n�s;
ponderei-lhe que a rigor n�o se passara nada. Entraram dous deputados
e um chefe politico da parochia. O Lobo Neves recebeu-os com alegria,
a principio um tanto posti�a, mas logo depois natural. No fim de meia
hora, ninguem diria que elle n�o era o mais afortunado dos homens;
conversava, chasqueava, e ria, e riam todos.




CAPITULO LIX


Um encontro


Deve ser um vinho hem energico a politica, dizia eu commigo, ao sair
da casa de Lobo Neves; e fui andando, fui andando, at� que na rua dos
Barbonos vi uma sege, e dentro um dos ministros, meu antigo companheiro
de collegio. Cortej�mo-nos affectuosamente, a sege seguiu, e eu fui
andando... andando... andando....

--Porque n�o serei eu ministro?

Esta id�a, r�tila e grande,--trajada ao bizarro, como diria o padre
Bernardes,--esta id�a come�ou uma vertigem de cabriolas e eu deixei-me
estar com os olhos nella, a achar-lhe gra�a. E n�o pensei mais na
tristeza de Lobo Neves; senti a attrac��o do abysmo. Recordei aquelle
companheiro de collegio, as correrias nos morros, as alegrias e
travessuras, e comparei o menino com o homem, o perguntei a mim mesmo
porque n�o seria eu como elle. Entrava ent�o no Passeio Publico;
e tudo me parecia dizer a mesma cousa.--Porque n�o ser�s ministro,
Cubas?--Cubas, porque n�o ser�s ministro de Estado? Ao ouvil-o, uma
deliciosa sensa��o me refrescava todo o systema. Entrei, fui sentar-me
n'um banco, a cavar commigo aquella id�a. E Virgilia que havia de
gostar! Alguns minutos depois vejo encaminhar-se para mim uma cara, que
me n�o pareceu desconhecida. Conhecia-a, fosse d'onde fosse.

Imaginem um homem de trinta e oito a quarenta annos, alto, magro e
pallido. As roupas, salvo o feitio, pareciam ter escapado ao captiveiro
de Babylonia; o chap�u era contemporaneo do de Gessler. Imaginem
agora uma sobrecasaca, mais larga do que pediam as carnes,--ou,
litteralmente, os ossos da pessoa; a c�r preta ia cedendo o passo a
um amarello sem brilho; o pello desapparecia aos poucos; dos oito
primitivos bot�es restavam tres. As cal�as, de brim pardo, tinham duas
fortes joelheiras, em quanto as bainhas eram roidas pelo tac�o de um
botim sem misericordia nem graxa. Ao pesco�o fluctuavam as pontas de
uma gravata de duas cores, ambas desmaiadas, apertando um collarinho de
oito dias. Creio que trazia tambem collete, um collete de seda escura,
roto a espa�os, e desabotoado.

--Aposto que me n�o conhece, Sr. Dr. Cubas? disse elle.

--N�o me lembra...

--Sou o Borba, o Quincas Borba.

Recuei espantado... Quem me dera agora o verbo solemne de um Bossuet
ou de Vieira, para contar tamanha desola��o! Era o Quincas Borba, o
gracioso menino de outro tempo, o meu companheiro de collegio, t�o
intelligente e abastado. O Quincas Borba! N�o, imposs�vel; n�o pode
ser. N�o podia acabar de crer que essa figura esqualida, essa barba
pintada de branco, esse maltrapilho avelhentado, que toda essa ruina
fosse o Quincas Borba. E era. Os olhos tinham um resto da express�o de
outro tempo; e o sorriso n�o perdera certo ar escarninho, que lhe era
peculiar. Entretanto, elle supportava com firmeza o meu espanto. No fim
de algum tempo arredei os olhos; se a figura repellia, a compara��o
acabrunhava.

--N�o � preciso contar-lhe nada, disse elle emfim; o senhor adivinha
tudo. Uma vida de miserias, de attribula��es e de lutas. Lembra-se
das nossas festas, em que eu figurava de rei? Que trambolh�o! Acabo
mendigo...

E al�ando a m�o direita e os hombros, com um ar de indifferen�a,
parecia resignado aos golpes da fortuna, e n�o sei at� se contente.
Talvez contente. Com certeza, impassivel. N�o havia nelle a resigna��o
christ�, nem a conformidade philosophica. Parece que a miseria lhe
callej�ra a alma, a ponto de lhe tirar a sensa��o da lama. Arrastava os
andrajos, como outr'ora a purpura: com certa gra�a indolente.

--Procure-me, disse eu, poderei arranjar-lhe alguma cousa.

Um sorriso magnifico lhe abriu os l�bios.--N�o � o primeiro que me
promette alguma cousa, replicou; e n�o sei se ser� o ultimo que n�o
me far� nada. E para que? Eu nada pe�o, a n�o ser dinheiro; dinheiro
sim, porque � necessario comer, e as casas de pasto n�o fiam. Nem as
quitandeiras. Uma cousa de nada, uns dous vint�ns de ang�, nem isso
fiam as malditas quitandeiras.... Um inferno, meu... ia dizer meu
amigo.... Um inferno! o diabo! todos os diabos! Olhe, ainda hoje n�o
almocei.

--N�o?

--N�o; sa� muito cedo de casa. Sabe onde moro? No terceiro degr�u das
escadas de S. Francisco, � esquerda de quem sobe; n�o precisa bater na
porta. Casa fresca, extremamente fresca. Pois sa� cedo, e ainda n�o
comi...

Tirei a carteira, escolhi uma nota de cinco mil r�is,--a menos
limpa,--e dei-lh'a. Elle recebeu-m'a com os olhos scintillantes de
cobi�a. Levantou a nota ao ar, e agitou-a enthusiasmado.

--_In hoc signo vinces!_ bradou.

E depois beijou-a, com muitos ademanes de ternura, e t�o ruidosa
expans�o, que me produziu um sentimento mixto de n�jo e lastima. Elle,
que era arguto, entendeu-me; ficou serio, grotescamente serio, e
pediu-me desculpa da alegria, dizendo que era alegria de pobre que n�o
via, desde muitos annos, uma nota de cinco mil r�is.

--Pois est� em suas m�os ver outras muitas, disse eu.

--Sim? acudiu elle, dando um bote para mim.

--Trabalhando, conclui eu.

Fez um gesto de desdem; calou-se alguns instantes; depois disse-me
positivamente que n�o queria trabalhar. Eu estava enjoado dessa
abjec��o t�o comica e t�o triste, e preparei-me para sair.

--N�o v� sem eu lhe ensinar a minha philosophia da miseria, disse elle,
escarranchando-se diante de mim.




CAPITULO LX


O abra�o


Cuidei que o pobre diabo estivesse doudo, e ia afastar-me, quando
elle me pegou no pulso, e olhou alguns instantes para o brilhante que
eu trazia no dedo. Senti-lhe na m�o uns estreme��es de cobi�a, uns
pruridos de posse.

--Magnifico! disse elle.

Depois come�ou a andar � roda de mim e a examinar-me muito.

--O senhor trata-se, disse elle. Joias, roupa fina, elegante e...
Compare esses sapatos aos meus; que differen�a! Podera n�o! Digo-lhe
que se trata. E mo�as? Como v�o ellas? Est� casado?

--N�o...

--Nem eu.

--M�ro na rua...

--N�o quero saber onde mora, atalhou o Quincas Borba. Se alguma vez nos
virmos, d�-me outra nota de cinco mil r�is; mas permitta-me que n�o a
v� buscar a sua casa. � uma especie de orgulho.... Agora, adeus; vejo
que est� impaciente.

--Adeus!

--E obrigado. Deixa-me agradecer-lhe de mais perto?

E dizendo isto abra�ou-me com tal impeto, que eu n�o pude evital-o.
Separamo-nos finalmente, eu a passo largo, com a camisa amarrotada do
abra�o, enfadado e triste. J� n�o dominava em mim a parte sympathica da
sensa��o, mas a outra. Quizera ver-lhe a miseria digna. Comtudo, n�o
pude deixar de comparar outra vez o homem de agora com o de outr'ora,
entristecer-me, e encarar o abysmo que separa as esperan�as de um tempo
da realidade de outro tempo...

--Ora adeus! Vamos jantar, disse commigo.

Metto a m�o no collete e n�o acho o relogio. Ultima desillus�o! o Borba
furt�ra-m'o no abra�o.




CAPITULO LXI


Um projecto


Jantei triste. N�o era a falta do relogio que me pungia, era a
imagem do autor do furto, e as reminiscencias de crian�a, e outra
vez a compara��o, e a conclus�o... Desde a sopa, come�ou a abrir em
mim a flor amarella e morbida do cap. XXV, e ent�o jantei depressa,
para correr � casa de Virgilia. Virgilia era o presente; eu queria
refugiar-me nelle, para escapar �s oppress�es do passado, porque o
encontro do Quincas Borba tornara-me aos olhos o passado, n�o qual fora
dev�ras, mas um passado roto, abjecto, mendigo e gatuno.

Sa� de casa, mas era cedo; iria achal-os � mesa. Outra vez pensei no
Quincas Borba, e tive ent�o um desejo de tornar ao Passeio Publico,
a ver se o achava; a id�a de o regenerar surgiu-me como uma forte
necessidade. Fui; mas j� n�o o achei. Indaguei do guarda; disse-me que
effectivamente �esse sujeito� ia por alli �s vezes.

--A que horas?

--N�o tem hora certa.

N�o era impossivel encontral-o n'outra occasi�o; prometti a mim mesmo
l� voltar. A necessidade de o regenerar, de o trazer ao trabalho e ao
respeito de sua pess�a enchia-me o cora��o; eu come�ava a sentir um
bem-estar, uma eleva��o, uma admira��o de mim proprio... Nisto ca�a a
noite; fui ter com Virgilia.




CAPITULO LXII


O travesseiro


Fui ter com Virgilia; bem depressa esqueci o Quincas Borba. Virgilia
era o travesseiro do meu espirito, um travesseiro molle, tepido,
aromatico, enfronhado em cambraia e bruxellas. Era alli que elle
costumava repousar de todas as sensa��es m�s, simplesmente enfadonhas,
ou at� dolorosas. E, bem pesadas as cousas, n�o era outra a raz�o da
existencia de Virgilia; n�o podia ser. Cinco minutos bastaram para
olvidar inteiramente o Quincas Borba; cinco minutos de uma contempla��o
mutua, com as m�os presas umas nas outras; cinco minutos e um beijo. E
l� se foi a lembran�a do Quincas Borba... Escrofula da vida, andrajo do
passado, que me importa que existas, que molestes os olhos dos outros,
se eu tenho dous palmos de um travesseiro divino, para fechar os olhos
e dormir?




CAPITULO LXIII


Fujamos!


Ai! nem sempre dormir. Tres semanas depois, indo � casa de
Virgilia,--eram quatro horas da tarde,--achei-a triste e abatida. N�o
me quiz dizer o que era; mas, como eu instasse muito:

--Creio que o Dami�o desconfia alguma cousa. Noto agora umas
exquisitices nelle... N�o sei... Trata-me bem, n�o ha duvida; mas o
olhar parece que n�o � o mesmo. Durmo, mal; ainda esta noite acordei,
aterrada; estava sonhando que elle me ia matar. Talvez seja illus�o,
mas eu penso que elle desconfia...

Tranquillisei-a como pude; disse que podiam ser cuidados politicos.
Virgilia concordou que seriam, mas ficou ainda muito excitada e
nervosa. Estavamos na sala de visitas, que dava justamente para a
chacara, onde troc�ramos o beijo inicial. Uma janella aberta deixava
entrar o vento, que sacudia frouxamente as cortinas; e eu fiquei
a olhar para as cortinas, sem as ver. Empunh�ra o binoculo da
imagina��o; lobrigava, ao longe, uma casa nossa, uma vida nossa, um
mundo nosso, em que n�o havia Lobo Neves, nem casamento, nem moral, nem
nenhum outro liame, que nos tolhesse a expans�o da vontade. Esta id�a
embriagou-me; eliminados assim o mundo, a moral e o marido, n�o haveria
mais do que penetrar naquella habita��o dos anjos.

--Virgilia, disse eu, proponho-te uma cousa.

--Que �?

--Amas-me?

--Oh! suspirou ella, cingindo-me os bra�os ao pesco�o.

Virgilia amava-me com furia; aquella resposta era a verdade patente.
Com os bra�os ao meu pesco�o, calada, respirando muito, deixou-se
ficar a olhar para mim, com os seus grandes e bellos olhos, que davam
uma sensa��o singular de luz humida; e eu deixei-me estar a vel-os, a
namorar-lhe a boca, fresca como a madrugada, e insaciavel como a morte.
A belleza de Virgilia tinha agora um tom grandioso, que n�o possuira
antes de casar. Era dessas figuras talhadas em pentelico, de um lavor
nobre, rasgado e puro, tranquillamente bella, como as estatuas, mas n�o
apathica nem fria. Ao contrario, tinha o aspecto das naturezas calidas,
e podia-se dizer, que, na realidade, resumia todo o amor. Resumia-o
sobretudo naquella occasi�o, em que exprimia mudamente tudo quanto
p�de dizer a pupilla humana. Mas o tempo urgia; deslacei-lhe as m�os,
peguei-lhe nos pulsos, e, fito nella, perguntei-lhe se tinha coragem.

--De que?

--De fugir. Iremos para onde nos f�r mais commodo, uma casa grande ou
pequena, � tua vontade, na ro�a ou na cidade, ou na Europa, onde te
parecer, onde ninguem nos aborre�a, e n�o haja perigos p�ra ti, onde
vivamos um para o outro... Sim? fujamos. Tarde ou cedo, elle p�de
descobrir alguma cousa, e estar�s perdida... ouves? perdida... morta...
e elle tambem, porque eu o matarei, juro-te.

Interrompi-me; Virgilia empallidec�ra muito, deixou cair os bra�os
e sentou-se no canap�. Esteve assim alguns instantes, sem me dizer
palavra, n�o sei se vacillante na escolha, se aterrada com a id�a da
descoberta e da morte. Fui-me a ella, insisti na proposta, disse-lhe
todas as vantagens de uma vida a s�s, sem zelos, nem terrores, nem
afflic��es. Virgilia ouvia-me calada; depois disse:

--N�o escapariamos talvez; elle iria ter commigo e matava-me do mesmo
modo.

Mostrei-lhe que n�o. O mundo era ass�s vasto, e eu tinha os meios de
viver onde quer que houvesse ar puro e muito sol; elle n�o chegaria at�
l�; s� as grandes paix�es s�o capazes de grandes ac��es, e elle n�o a
amava tanto que pudesse ir buscal-a, se ella estivesse longe. Virgilia
fez um gesto de espanto e quasi indigna��o; murmurou que o marido
gostava muito della.

--P�de ser, respondi eu; p�de ser que sim...

E fui at� a janella, e comecei a assobiar e a rufar com os dedos no
peitoril, Virgilia chamou-me; eu deixei-me estar, a remoer os meus
zelos, a desejar estrangular o marido, se o tivesse alli � m�o...
Justamente, nesse instante, entrou na chacara o Lobo Neves. N�o tremas
assim, leitora pallida; descan�a, que n�o hei de rubricar esta lauda
com um pingo de sangue. Logo que o Lobo Neves entrou na chacara,
fiz-lhe um gesto amigo, acompanhado de uma palavra graciosa; Virgilia
retirou-se apressadamente da sala, e elle entrou dahi a tres minutos.

--Est� c� ha muito tempo? disse-me elle.

--N�o.

Entr�ra serio, pesado, derramando os olhos de um modo distrahido,
costume seu, que trocou logo por uma verdadeira expans�o de
jovialidade, quando viu, chegar o filho, o nhonh�, o futuro bacharel do
cap. VIII; tomou-o nos bra�os, levantou-o ao ar, beijou-o muitas vezes.
Eu, que tinha odio ao menino, afastei-me de ambos. Virgilia tornou �
sala.

--Ah! respirou o Lobo Neves, sentando-se pregui�osamente no soph�.

--Can�ado? perguntei eu.

--Muito; aturei duas massadas de primeira ordem, uma na camara e outra
na rua. E ainda temos terceira, accrescentou, olhando para a mulher..

--Que �? perguntou Virgilia.

--Um... Adivinha!

Virgilia sentara-se ao lado delle, pegou-lhe n'uma das m�os, compoz-lhe
a gravata, e tornou a perguntar o que era.

--Nada menos que um camarote.

--Para a Candiani?

--Para a Candiani.

Virgilia bateu palmas, levantou-se, deu um beijo no filho, com um ar
de alegria pueril, que destoava muito da figura; depois perguntou se o
camarote era de boca ou do centro, consultou o marido, em voz baixa,
acerca da _toilette_ que faria, da opera que se cantava, e de n�o sei
que outras cousas.

--Voc� janta comnosco, doutor, disse-me o Lobo Neves.

--Veiu para isso mesmo, confirmou a mulher; diz que voc� possue o
melhor vinho do Rio de Janeiro.

--Nem por isso bebe muito.

Ao jantar, desmenti-o; bebi mais do que costumava; ainda assim, menos
do que era preciso para perder a raz�o. J� estava excitado, fiquei urn
pouco mais. Era a primeira grande colera que eu sentia contra Virgilia.
N�o olhei uma s� vez para ella durante o jantar; falei de politica, da
imprensa, do ministerio, creio que falaria de theologia, se a soubesse,
ou se me lembrasse. O Lobo Neves acompanhava-me com muita placidez e
dignidade, e at� com certa benevolencia superior; e tudo aquillo me
irritava tambem, e me tornava mais amargo e longo o jantar. Despedi-me
apenas nos levant�mos da mesa.

--At� logo, n�o? perguntou o Lobo Neves.

--P�de ser.

E sai.




CAPITULO LXIV


A transac��o


Vaguei pelas ruas e recolhi-me �s nove horas. N�o podendo dormir,
atirei-me a ler e escrever. �s onze horas estava arrependido de n�o
ter ido ao theatro, consultei o relogio, quiz vestir-me, e sa�r.
Julguei, por�m, que chegaria tarde; demais, era dar prova de fraqueza.
Evidentemente, Virgilia come�ava a aborrecer-se de mim, pensava eu.
E esta id�a fez-me successivamente desesperado e frio, disposto a
esquecel-a e a matal-a. Via-a d'alli mesmo, reclinada no camarote,
com os seus magnificos bra�os n�s,--os bra�os que eram meus, s�
meus,--fascinando os olhos de todos, com o vestido soberbo que havia
de ter, o collo de leite, os cabellos postos em band�s, � maneira do
tempo, e os brilhantes, menos luzidios que os olhos della... Via-a
assim, e do�a-me que a vissem outros. Depois, come�ava a despil-a,
a p�r de lado as joias e sedas, a despenteal-a com as minhas m�os
sofregas e lascivas, a tornal-a,--n�o sei se mais bella, se mais
natural,--a tornal-a minha, s�mente minha, unicamente minha.

No dia seguinte, n�o me pude ter; fui cedo � casa de Virgilia; achei-a
com os olhos vermelhos de chorar.

--Que houve? perguntei.

--Voc� n�o me ama, foi a sua resposta; nunca me teve a menor somma de
amor. Tratou-me hontem como se me tivesse odio. Se eu ao menos soubesse
o que � que fiz! Mas n�o sei. N�o me dir� o que foi?

--Que foi o que? Creio que n�o houve nada.

--Nada? Tratou-me como n�o se trata um cachorro...

A esta palavra, peguei-lhe nas m�os, beijei-as, e duas lagrimas
rebentaram-lhe dos olhos.

--Acabou, acabou, disse eu.

N�o tive animo de arguir, e, ali�s, arguil-a de que? N�o era culpa
della se o marido a amava. Disse-lhe que n�o me fizera cousa nenhuma,
que eu tinha necessariamente ciumes do outro, que nem sempre o podia
supportar de cara alegre; accrescentei que talvez houvesse nelle muito
de dissimula��o, e que o melhor meio de fechar a porta aos sustos e �s
dissens�es era aceitar a minha id�a da vespera.

--Pensei nisso, acudiu Virgilia; uma casinha s� nossa, solitaria,
mettida n'um jardim, em alguma rua escondida, n�o �? Acho a id�a boa;
mas para que fugir?

Disse isto com o tom ingenuo e pregui�oso de quem n�o cuida em mal, e o
sorriso que lhe derreava os cantos da boca trazia a mesma express�o de
candidez. Ent�o, afastando-me, respondi:

--Voc� � que nunca me teve amor.

--Eu?

--Sim, � uma egoista! prefere ver-me padecer todos os dias... � uma
egoista sem nome!

Virgilia desatou a chorar, e para n�o attrahir gente, mettia o len�o na
boca, recalcava os solu�os; explos�o que me desconcertou. Se alguem a
ouvisse, perdia-se tudo. Inclinei-me para ella, travei-lhe dos pulsos,
susurrei-lhe os nomes mais doces da nossa intimidade; mostrei-lhe o
perigo; o terror apaziguou-a.

--N�o posso, disse ella dahi a alguns instantes; n�o deixo meu filho;
se o levar, estou certa de que elle me ir� buscar ao fim do mundo. N�o
posso; mate-me voc�, se o quizer, ou deixe-me morrer... Ah! meu Deus!
meu Deus!

--Socegue; olhe que podem ouvil-a.

--Que ou�am! N�o me importa.

Estava ainda excitada; pedi-lhe que esquecesse tudo, que me perdoasse,
que eu era um doudo, mas que a minha insania provinha della e com ella
acabaria. Virgilia enxugou os olhos e estendeu-me a m�o. Sorrimos
ambos; minutos depois, torn�vamos ao assumpto da casinha solitaria, em
alguma rua escusa...




CAPITULO LXV


Olheiros e escutas


Interrompeu-nos o rumor de um carro na chacara. Veiu um escravo dizer
que era a baroneza X. Virgilia consultou-me com os olhos.

--Se a senhora est� assim com dor de cabe�a, disse eu, parece que o
melhor � n�o receber.

--J� se apeou? perguntou Virgilia ao escravo.

--J� se apeou; diz que precisa muito de falar com sinh�!

--Que entre!

A baroneza entrou dahi a pouco. N�o sei se contava commigo na sala; mas
era impossivel mostrar maior alvoro�o.

--Bons olhos o vejam! explodiu ella. Onde se mette o senhor que n�o
apparece em parte nenhuma? Pois olhe, hontem admirou-me n�o o ver no
theatro. A Candiani esteve deliciosa. Que mulher! Gosta da Candiani?
� natural. Os senhores s�o todos os mesmos. O bar�o dizia hontem, no
camarote, que uma s� italiana vale por cinco brazileiras. Que desaforo!
e desaforo de velho, que � peor. Mas porque � que o senhor n�o foi
hontem ao theatro?

--Uma enxaqueca.

--Qual! Algum namoro; n�o acha, Virgilia? Pois, meu amigo, apresse-se,
porque o senhor deve estar com quarenta annos... ou perto disso... N�o
tem quarenta annos?

--N�o lhe posso dizer com certeza, respondi eu; mas se me d� licen�a,
vou consultar a certid�o de baptismo.

--V�, v�... E estendendo-me a m�o:--At� quando? Sabbado ficamos em
casa; o bar�o est� com umas saudades suas...

Chegando � rua, arrependi-me de ter sa�do. A baroneza era uma das
pessoas que mais desconfiavam de n�s. Cincoenta e cinco annos, que
pareciam quarenta, macia, risonha, vestigios de belleza, porte elegante
e maneiras finas. N�o falava muito nem sempre; possuia a grande arte
de escutar os outros, espiando-os; reclinava-se ent�o na cadeira,
desembainhava um olhar afiado e comprido, e deixava-se estar. Os
outros, n�o sabendo o que era, falavam, olhavam, gesticulavam, ao tempo
que ella olhava s�, ora fixa, ora mobil, levando a astucia ao ponto de
olhar �s vezes para dentro de si, porque deixava cair as palpebras;
mas, como as pestanas eram rotulas, o olhar continuava o seu officio,
remexendo a alma e a vida dos outros.

A segunda pessoa era um parente de Virgilia, o Viegas, um cangalho de
setenta invernos, chupado e amarellado, que padecia de um rheumatismo
teimoso, de uma asthma n�o menos teimosa e de uma les�o do cora��o: era
um hospital concentrado. Os olhos por�m luziam de muita vida e sa�de.
Virgilia, nas primeiras semanas, n�o lhe tinha medo nenhum; dizia-me
que, quando o Viegas parecia espreitar, com o olhar fixo, estava
simplesmente contando dinheiro. Com effeito, era um grande avaro.

Havia ainda o primo de Virgilia, o Luiz Dutra, que eu, entretanto,
desarmava � for�a de lhe falar nos versos e prosas, e de o apresentar
aos conhecidos. Quando estes, ligando o nome � pessoa, se mostravam
contentes da apresenta��o, n�o ha duvida que o Luiz Dutra exultava de
felicidade; mas eu curava-me da felicidade com a esperan�a de que elle
nos n�o denunciasse nunca. Havia, emfim, umas duas ou tres senhoras,
v�rios gamenhos, e os famulos, que naturalmente se desforravam assim
da condi��o servil, e tudo isso constituia uma verdadeira floresta
de olheiros e escutas, por entre os quaes tinhamos de resvalar com a
tactica e maciez das cobras.




CAPITULO LXVI


As pernas


Ora, emquanto eu pensava naquella gente, iam-me as pernas levando,
ruas abaixo, de modo que insensivelmente me achei � porta do hotel
Pharoux. De costume jantava ahi; mas, n�o tendo deliberadamente andado,
nenhum merecimento da ac��o me cabe, e sim �s pernas, que a fizeram.
Aben�oadas pernas! E ha quem vos trate com desdem ou indifferen�a.
Eu mesmo, at� ent�o, tinha-vos em m� conta, zangava-me quando vos
fatigaveis, quando n�o podieis ir al�m de certo ponto, e me deixaveis
com o desejo a avoa�ar, � semelhan�a de gallinha atada pelos p�s.

Aquelle caso, por�m, foi um raio de luz. Sim, pernas amigas, v�s
deixastes � minha cabe�a o trabalho de pensarem Virgilia, e dissestes
uma � outra:--Elle precisa comer, s�o horas de jantar, vamos levai-o ao
Pharoux; dividamos a consciencia delle, uma parte fique l� com a dama,
tomemos n�s a outra, para que elle v� direito, n�o abalroe as gentes e
as carro�as, tire o chapeu aos conhecidos, e finalmente chegue s�o e
salvo ao hotel. E cumpristes � risca o vosso proposito, amaveis pernas,
o que me obriga a immortalisar-vos nesta pagina.




CAPITULO LXVII


A casinha


Jantei e fui � casa. L� achei uma caixa de charutos, que me mand�ra o
Lobo Neves, embrulhada em papel de seda, e ornada de fitinhas c�r de
rosa. Entendi, abri-a, e tirei este bilhete:

    �Meu B...

    �Desconfiam de n�s; tudo est� perdido; esque�a-me para
    sempre. N�o nos veremos mais. Adeus; esque�a-se da infeliz

    �V...a�

Foi um golpe esta carta; n�o obstante, apenas fechou a noite, corri �
casa de Virgilia. Era tempo; estava arrependida. Ao v�o de uma janella,
contou-me o que se pass�ra com a baroneza. A baroneza disse-lhe
francamente que se fal�ra muito, no theatro, na noite anterior,
a proposito da minha ausencia do camarote de Lobo Neves; tinham
commentado as minhas rela��es na casa; em suma, eramos objecto da
suspeita publica. Conclui dizendo que n�o sabia o que fazer.

--O melhor � fugirmos, insinuei.

--Nunca, respondeu ella abanando a cabe�a.

Vi que era impossivel separar duas cousas que no espirito della estavam
inteiramente ligadas: o nosso amor e a considera��o publica. Virgilia
era capaz de eguaes e grandes sacrificios para conservar ambas as
vantagens; e a fuga s� lhe deixava uma. Talvez senti alguma cousa
semelhante a despeito; mas as como��es daquelles dous dias eram j�
muitas, e o despeito morreu depressa. V� l�; arranjemos a casinha.

Com effeito, achei-a, dias depois, expressamente feita, em um
recanto da Gamboa. Um brinco! Nova, caiada de fresco, com quatro
janellas na frente e duas de cada lado,--todas com venezianas c�r de
tijolo,--trepadeira nos cantos, jardim na frente; mysterio e solid�o.
Um brinco!

Convencion�mos que iria morar alli uma mulher, conhecida de Virgilia,
em cuja casa fora costureira e aggregada. Virgilia exercia sobre ella
verdadeira fascina��o. N�o se lhe diria tudo; ella aceitaria facilmente
o resto.

Para mim era aquillo uma situa��o nova do nosso amor, uma apparencia
do posse exclusiva, de dominio absoluto, alguma cousa que me faria
adormecer a consciencia o resguardar o decoro. J� estava can�ado das
cortinas do outro, das cadeiras, do tapete, do canap�, de todas essas
cousas, que me traziam aos olhos constantemente a nossa duplicidade.
Agora podia evitar os jantares frequentes, o ch� de todas as noites,
emfim a presen�a do filho delles, meu complice e meu inimigo. A casa
resgatava-me tudo; o mundo vulgar terminaria � porta;--dalli para
dentro era o infinito, um mundo eterno, superior, excepcional, nosso,
somente nosso, sem leis, sem institui��es, sem baronezas, sem olheiros,
sem escutas,--um s� mundo, um s� casal, uma s� vida, uma s� vontade,
uma s� affei��o,--a unidade moral de todas as cousas pela exclus�o das
que me eram contrarias.




CAPITULO LXVIII


O vergalho


Taes eram as reflex�es que eu vinha fazendo, por aquelle Valongo f�ra,
logo depois de ver e ajustar a casa. Interrompeu-m'as um ajuntamento;
era um preto que vergalhava outro na pra�a. O outro n�o se atrevia a
fugir; gemia somente estas unicas palavras:

--�N�o, perd�o, meu senhor; meu senhor, perd�o!� Mas o primeiro n�o
fazia caso, e, a cada supplica, respondia com uma vergalhada nova.

--Toma, diabo! dizia elle; toma mais perd�o, bebado!

--Meu senhor! gemia o outro.

--Cala a boca, besta! replicava o vergalho.

Parei, olhei... Justos ceus! Quem havia de ser o do vergalho? Nada
menos que o meu moleque Prudencio,--o que meu pae libert�ra alguns
annos antes. Cheguei-me; elle deteve-se logo e pediu-me a ben��o;
perguntei-lhe se aquelle preto era escravo delle.

--E, sim, nhonh�.

--Fez-te alguma cousa?

--� um vadio e um bebado muito grande. Ainda hoje deixei elle na
quitanda, em quanto eu ia l� embaixo na cidade, e elle deixou a
quitanda para ir na venda beber.

--Est� bom, perdoa-lhe, disse eu.

--Pois n�o, nhonh�. Nhonh� manda, n�o pede. Entra para casa, bebado!

Sa� do grupo, que me olhava espantado e cochichava as suas conjecturas.
Segui caminho, a cavar c� dentro uma infinidade de reflex�es, que sinto
haver inteiramente perdido; ali�s, seria materia para um bom capitulo,
e talvez alegre. Eu g�sto dos capitulos alegres; � o meu fraco.
Exteriormente, era torvo o episodio do Valongo; mas s� exteriormente.
Logo que metti mais dentro a faca do raciocinio achei-lhe um miolo
gaiato, fino, e at� profundo. Era um modo que o Prudencio tinha de
se desfazer das pancadas recebidas,--transmittindo-as a outro. Eu,
em crian�a, montava-o, punha-lhe um freio na boca, e desancava-o sem
compaix�o; elle gemia e soffria. Agora, por�m, que era livre, dispunha
de si mesmo, dos bra�os, das pernas, podia, trabalhar, folgar, dormir,
desagrilhoado da antiga condi��o, agora � que elle se desbancava:
comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de
mim recebera. Vejam as subtilezas do maroto!




CAPITULO LXIX


Um gr�o de sandice


Este caso faz-me lembrar um doudo que conheci. Chamava-se Romualdo e
dizia ser Tamerl�o. Era a sua grande e unica mania, e tinha uma curiosa
maneira de a explicar.

--Eu sou o illustre Tamerl�o, dizia elle. Outr'ora fui Romualdo, mas
adoeci, e tomei tanto tartaro, tanto tartaro, tanto tartaro, que fiquei
Tartaro, e at� rei dos Tartaros. O tartaro tem a virtude de fazer
Tartaros.

Pobre Romualdo! A gente ria da resposta, mas � provavel que o leitor
n�o se ria, e com raz�o; eu n�o lhe acho gra�a nenhuma. Ouvida, tinha
algum chiste; mas assim contada, no papel, e a proposito de um vergalho
recebido e transferido, for�a � confessar que � muito melhor voltar �
casinha da Gamboa; deixemos os Romualdos e Prudencios.




CAPITULO LXX


D. Placida


Voltemos � casinha. N�o serias capaz de l� entrar hoje, curioso leitor;
envelheceu, ennegreceu, apodreceu, e o proprietario deitou-a abaixo
para substituil-a por outra, tres vezes maior, mas juro-te que muito
menor que a primeira. O mundo era estreito para Alexandre; um desv�o de
telhado � o infinito para as andorinhas.

E vejam agora a neutralidade deste globo, que nos leva, atravez dos
espa�os, como uma lancha de naufragos, que vae dar � costa: dorme hoje
um casal de virtudes no mesmo espa�o de ch�o que soffreu um casal de
peccados. Amanh� pode l� dormir um ecclesiastico, depois um assassino,
depois um ferreiro, depois um poeta, e todos aben�oar�o esse canto de
terra, que lhes deu algumas illus�es.

Virgilia fez daquillo um brinco; designou as alfaias mais idoneas, e
dispol-as com a intui��o esthetica da mulher elegante; eu levei para
l� alguns livros; e tudo ficou sob a guarda de D. Placida, supposta, e,
a certos respeitos, verdadeira dona da casa.

Custou-lhe muito a aceitar a casa; farej�ra a inten��o, e doia-lhe o
officio; mas afinal cedeu. Creio que chorava, a principio: tinha nojo
de si mesma. Ao menos, � certo que n�o levantou os olhos para mim
durante os primeiros dous mezes; falava-me com elles baixos, s�ria,
carrancuda, �s vezes triste. Eu queria angarial-a, e n�o me dava por
offendido, tratava-a com carinho e respeito; forcejava por obter-lhe a
benevolencia, depois a confian�a. Quando obtive a confian�a, imaginei
uma historia pathetica dos meus amores com Virgilia, um caso anterior
ao casamento, a resistencia do pae, a dureza do marido, e n�o sei que
outros toques de novella. D. Placida n�o rejeitou uma s� pagina da
novella; aceitou-as todas. Era uma necessidade da consciencia. Ao cabo
de seis mezes quem nos visse a todos tres juntos diria que D. Placida
era minha sogra.

N�o fui ingrato; fiz-lhe um peculio de cinco contos,--os cinco
contos achados em Botafogo,--como um p�o para a velhice. D. Placida
agradeceu-me com lagrimas nos olhos; e nunca mais deixou de rezar por
mim, todas as noites, deante de uma imagem da Virgem, que tinha no
quarto. Foi assim que lhe acabou o nojo.




CAPITULO LXXI


O sen�o do livro


Come�o a arrepender-me deste livro. N�o que elle me cance; eu n�o tenho
que fazer; e, realmente, expedir alguns magros capitulos para esse
mundo sempre � tarefa que distr�e um pouco da eternidade. Mas o livro
� enfadonho, cheira a sepulchro, traz certa contrac��o cadaverica;
vicio grave, e ali�s infimo, porque o maior defeito deste livro �s tu,
leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a
narra��o direita e nutrida, o estylo regular e fluente, e este livro e
o meu estylo s�o como os ebrios, guinam � direita e � esquerda, andam e
param, resmungam, urram, gargalham, amea�am o ceu, escorregam e c�em...

E c�em!--Folhas miserrimas do meu cypreste, heis de cair, como
quaesquer outras bellas e vistosas; e, se eu tivesse olhos, dar-vos-hia
uma lagrima de saudade. Esta � a grande vantagem da morte, que se
n�o deixa boca para rir, tambem n�o deixa olhos para chorar... Heis
de cair. Turvo � o ar que respiraes, amadas folhas. O sol que vos
allumia, com ser de toda a gente, � um sol opaco e reles, de cemiterio
e carnaval.




CAPITULO LXXII


O bibliomano


Talvez supprima o capitulo anterior; entre outros motivos, ha* ahi, nas
ultimas linhas, uma phrase muito parecida com desproposito, e eu n�o
quero dar pasto � critica do futuro.

Olhae: daqui a setenta annos, um sugeito magro, amarello, grisalho, que
n�o ama nenhuma outra cousa al�m dos livros, inclina-se sobre a pagina
anterior, a ver se lhe descobre o desproposito; l�, rel�, tresl�,
desengon�a as palavras, sacca uma syllaba, depois outra, mais outra,
e as restantes, examina-as por dentro e por f�ra, por todos os lados,
contra a luz, espaneja-as, esfrega-as no joelho, lava-as, e nada. Fica
sempre o mesmo desproposito.

� um bibliomano. N�o conhece o autor; este nome de Braz Cubas n�o vem
nos seus diccionarios biographicos. Achou o volume, por acaso, no
pardieiro de um alfarrabista. Comprou-o por duzentos r�is. Indagou,
pesquizou, esgaravatou, e veiu a descobrir que era um exemplar,
unico... Unico! V�s, que n�o s� amaes os livros, sen�o que padeceis a
mania delles, v�s sabeis mui bem o valor desta palavra, e adivinhaes,
portanto, as delicias de meu bibliomano. Elle regeitaria a cor�a das
Indias, o papado, todos os muzeus da Italia e da Hollanda, se os
houvesse de trocar por esse unico exemplar; e n�o porque seja o das
minhas _Memorias_; faria a mesma cousa com o _Almanak_ de Laemmert, uma
vez que fosse unico.

O peor � o desproposito. L� contin�a o homem inclinado sobre a pagina,
com uma lente no olho direito, todo entregue � nobre e aspera func��o
de decifrar o desproposito. J� prometteu a si mesmo escrever uma
breve memoria, na qual relate o achado do livro e a descoberta da
sublimidade, se a houver por baixo daquella phrase obscura. Ao cabo,
n�o descobre nada e contenta-se com a posse. Fecha o livro, mira-o,
remira-o, chega-se � janella e mostra-o ao sol. Um exemplar unico!
Nesse momento passa-lhe por baixo da janella um Cesar ou um Cromwell,
a caminho do poder. Elle d� de hombros, fecha a janella, estira-se
na rede e folhea o livro devagar, com amor, aos goles... Um exemplar
unico!




CAPITULO LXXIII


O lunch


O desproposito fez-me perder outro capitulo. Que melhor n�o era dizer
as cousas lisamente, sem todos estes solavancos! J� comparei o meu
estylo ao andar dos ebrios. Se a id�a vos parece indecorosa, direi
que elle � o que eram as minhas refei��es com Virgilia, na casinha da
Gamboa, onde �s vezes faziamos a nossa patuscada, o nosso _lunch._
Vinho, fructas, compotas. Comiamos, � verdade, mas era um comer
virgulado de palavrinhas doces, de olhares ternos, de criancices,
uma infinidade desses apartes do cora��o, ali�s o verdadeiro, o
ininterrupto discurso do amor. �s vezes vinha o arrufo temperar o
nimio adocicado da situa��o. Ella deixava-me, refugiava-se n'um canto
do canap�, ou ia para o interior ouvir as denguices de D. Placida.
Cinco ou dez minutos depois, reatavamos a palestra, como eu reato a
narra��o, para desatal-a outra vez. Note-se que, longe de termos horror
ao methodo, era nosso costume convidal-o, na pessoa de D. Placida, a
sentar-se comnosco � meza; mas D. Placida n�o aceitava nunca.

--Voc� parece que n�o gosta mais de mim, disse-lhe um dia Virgilia.

--Virgem Nossa Senhora! exclamou a boa dama al�ando as m�os para o
tecto. N�o gosto de Yay�! Mas ent�o de quem � que eu gostaria neste
mundo?

E, pegando-lhe nas m�os, olhou-a fixamente, fixamente, fixamente, at�
molharem-se-lhe os olhos, de t�o fixo que era. Virgilia acariciou-a
muito; eu deixei-lhe uma pratinha na algibeira do vestido.




CAPITULO LXXIV


Historia de D. Placida


N�o te arrependas de ser generoso; a pratinha rendeu-me uma confidencia
de D. Placida, e conseguintemente este capitulo. Dias depois, como eu
a achasse s� em casa, trav�mos palestra, e ella contou-me em breves
termos a sua historia. Era filha natural de um sacrist�o da S� e de
uma mulher que fazia doces para f�ra. Perdeu o pae aos dez annos. J�
ent�o ralava c�co e fazia n�o sei que outros misteres de doceira,
compativeis com a edade. Aos quinze ou dezeseis casou com um alfaiate,
que morreu tisico algum tempo depois, deixando-lhe uma filha. Viuva,
com pouco mais de vinte annos, ficaram a seu cargo a filha, com dous, e
a m�e, can�ada de trabalhar. Tinha de sustentar a tres pessoas. Fazia
doces, que era o seu officio, mas cosia tambem, de dia e de noite, com
affinco, para tres ou quatro lojas, e ensinava algumas crian�as do
bairro, a dez tost�es por mez. Com isto iam-se passando os annos, n�o
a belleza, porque n�o a tivera nunca. Appareceram-lhe alguns namoros,
propostas, seduc��es, a que resistia.

--Se eu pudesse encontrar outro marido, disse-me ella, creia que me
teria casado; mas ninguem queria casar commigo.

Um dos pretendentes conseguiu fazer-se aceito; n�o sendo, por�m, mais
delicado que os outros, D. Placida despediu-o do mesmo modo, e depois
de o despedir chorou muito. Continuou a coser para f�ra e a escumar
os tachos. A m�e tinha a rabugem do temperamento, dos annos e da
necessidade; mortificava a filha para que tomasse um dos maridos de
emprestimo e de occasi�o, que lh'a pediam. E bradava:

--Queres ser melhor do eu? N�o sei donde te vem essas fiducias de
pessoa rica. Minha camarada, a vida n�o se arranja � toa; n�o se
come vento. Ora esta! Mo�os t�o bons como o Polycarpo da venda,
coitado...Esperas algum fidalgo, n�o �?

D. Placida jurou-me que n�o esperava fidalgo nenhum. Era genio. Queria
ser casada. Sabia muito bem que a m�e o n�o f�ra, e conhecia algumas
que tinham s� o seu mo�o dellas; mas era genio e queria ser casada.
N�o queria tambem que a filha fosse outra cousa. E trabalhava muito,
queimando os dedos ao fog�o, e os olhos ao candieiro, para comer e n�o
cair. Emmagreceu, adoeceu, perdeu a m�e, enterrou-a por subscrip��o,
e continuou a trabalhar. A filha estava com quatorze annos; mas era
muito fraquinha, e n�o fazia nada, a n�o ser namorar os capadocios
que lhe rondavam a rotula. D. Placida vivia com immensos cuidados,
levando-a comsigo, quando tinha de ir entregar costuras; e a gente das
lojas arregalava e piscava os olhos, convencida de que ella a levava
para colher marido ou outra cousa. Alguns diziam gra�olas, faziam
comprimentos; a m�e chegou a receber propostas de dinheiro...

Interrompeu-se um instante, e continuou logo:

--Minha filha fugiu-me; foi com um sujeito, nem quero saber...
Deixou-me s�, mas t�o triste, t�o triste, que pensei morrer. N�o tinha
ninguem mais no mundo e estava quasi velha e doente. Foi por esse tempo
que conheci a familia de Yay�; boa gente, que me deu que fazer, e at�
chegou a me dar casa. Estive l� muitos mezes, um anno, mais de um anno,
aggregada, costurando. Sa� quando Yay� casou. Depois vivi como Deus
foi servido. Olhe os meus dedos, olhe estas m�os... E mostrou-me as
m�os grossas e gretadas, as pontas dos dedos picadas da agulha.--N�o
se cria isto � toa, meu senhor; Deus sabe como � que isto se cria...
Felizmente, Yay� me protegeu, e o senhor doutor tambem... Eu tinha um
medo de acabar na rua, pedindo esmola...

Ao soltar a ultima phrase, D. Placida teve um calafrio. Depois, como se
tornasse a si, pareceu attentar na inconveni�ncia daquella confiss�o
ao amante de uma mulher casada, e come�ou a rir, a desdizer-se, a
chamar-se tola, �cheia de fiducias�, como lhe dizia a m�e; enfim,
can�ada do meu silencio, retirou-se da sala. Eu fiquei a olhar para a
ponta do botim.




CAPITULO LXXV


Commigo


Podendo acontecer que algum dos meus leitores tenha pulado o capitulo
anterior, observo que � preciso lel-o para entender o que eu disse
commigo, logo depois que D. Placida saiu da sala. O que eu disse foi
isto:

--Assim, pois, o sacrist�o da S�, um dia, ajudando a missa, viu entrar
a dama, que devia ser sua collaboradora na vida de D. Placida. Viu-a
outros dias, durante semanas inteiras, gostou, disse-lhe alguma gra�a,
pisou-lhe o p�, ao acender os altares, nos dias de festa. Ella gostou
delle, acercaram-se, amaram-se. Dessa conjunc��o de luxurias vadias
brotou D. Placida. � de crer que D. Placida n�o falasse ainda quando
nasceu, mas se falasse podia dizer aos autores de seus dias:--Aqui
estou. Para que me chamastes? E o sacrist�o e a sacrist� naturalmente
lhe respondi riam:--Chamamos-te para queimar os dedos nos tachos,
os olhos na costura, comer mal, ou n�o comer, andar de um lado para
outro, na faina, adoecendo e sarando, com o fim de tornar a adoecer e
sarar outra vez, triste agora, logo desesperada, amanh� resignada, mas
sempre com as m�os no tacho e os olhos na costura, at� acabar um dia
na lama ou no hospital; foi para isso que te chamamos, n'um momento de
sympathia.




CAPITULO LXXVI


O estrume


Subito deu-me a consci�ncia um repell�o; accusou-me de ter feito
capitular a probidade de D. Placida, obrigando-a a um papel torpe,
depois de uma longa vida de trabalho e priva��es. Medianeira n�o era,
melhor que concubina; e eu tinha-a baixado a esse officio, � custa
de obsequios e dinheiros. Foi o que me disse a consciencia; e eu
fiquei uns dez minutos sem saber que lhe replicasse. Ella accrescentou
que eu me aproveit�ra da fascina��o exercida por Virgilia sobre a
ex-costureira, da gratid�o desta, emfim da necessidade. Notou a
resist�ncia de D. Placida, as lagrimas dos primeiros dias, as caras
feias, os silencios, os olhos baixos, e a minha arte em supportar
tudo isso, at� vencel-a. E repuxou-me outra vez de um modo irritado e
nervoso.

Concordei que assim era, mas alleguei que a velhice de D. Placida
estava agora ao abrigo da mendicidade; era uma compensa��o. E
raciocinei ent�o que, se n�o fossem os meus amores, provavelmente
D. Placida acabaria como tantas outras creaturas humanas; donde se
poderia deduzir que o vicio � muitas vezes o estrume da virtude. O que
n�o impede que a virtude, seja uma flor cheirosa e s�. A consci�ncia
concordou, e eu fui abrir a porta a Virgilia.




CAPITULO LXXVII


Entrevista


Virgilia entrou risonha e socegada. Os tempos tinham levado os
sustos e vexames. Que doce que era vel-a chegar, nos primeiros dias,
envergonhada e tremula! Ia de sege, velado o rosto, envolvida n'uma
especie de manteu, que lhe disfar�ava as ondula��es do talhe. Da
primeira vez deixou-se cair no canap�, offegante, escarlate, com os
olhos no ch�o; e, palavra! em nenhuma outra occasi�o a achei t�o bella,
talvez porque nunca me senti mais lisonjeado.

Agora, por�m, como eu dizia, tinham acabado os sustos e vexames; as
entrevistas entravam no periodo chronometrico. A intensidade de amor
era a mesma; a differen�a � que a chamma perdera o tresloucado dos
primeiros dias para constituir-se um simples feixe de raios, tranquillo
e constante, como nos casamentos.

--Estou muito zangada com voc�, disse ella sentando-se.

--Porque?

--Porque n�o foi l� hontem, como me tinha dito. O Dami�o perguntou
muitas vezes se voc� n�o iria, ao menos, tomar ch�. Porque � que n�o
foi?

Com effeito, eu havia faltado � palavra que dera, e a culpa era toda de
Virgilia, Quest�o de ci�mes. Essa mulher esplendida sabia que o era, e
gostava de o ouvir dizer, fosse em voz alta ou baixa. Na antevespera,
em casa da baroneza, valsara duas vezes com o mesmo peralta, depois
de lhe escutar as cortezanices, ao canto de uma janella. Estava t�o
alegre! t�o derramada! t�o cheia de si! Quando descobriu, entre as
minhas sobrancelhas, a ruga interrogativa e amea�adora, n�o teve nenhum
sobresalto, nem ficou subitamente s�ria; mas deitou ao mar o peralta
e as cortezanices. Veiu depois a mim, tomou-me o bra�o, e levou-me
at� outra sala, menos povoada, onde se me queixou de can�a�o, e disse
muitas outras cousas, com o ar pueril que costumava ter, em certas
occasi�es, e eu ouvi-a quasi sem responder nada.

Agora mesmo, custava-me responder alguma cousa, mas emfim contei-lhe
o motivo da minha ausencia... N�o, eternas estrellas, nunca vi olhos
mais pasmados. A boca semi-aberta, as sobrancelhas arqueadas, uma
estupefac��o visivel, tangivel, que sen�o podia negar, tal foi a
primeira replica de Virgilia; abanou a cabe�a com um sorriso de piedade
e ternura, que inteiramente me confundiu.

--Ora voc�!

E foi tirar o chap�o, lepida, jovial, como a menina que torna do
collegio; depois veiu a mim, que estava sentado, deu-me pancadinhas na
testa, com um s� dedo, a repetir;--Isto, isto;--e eu n�o tive remedio
sen�o rir tambem, e tudo acabou em galhofa. Era claro que me engan�ra.




CAPITULO LXXVIII


A presidencia


Certo dia, mezes depois, entrou o Lobo Neves em casa, dizendo que iria
talvez occupar uma presidencia de provincia. Olhei para Virgilia, que
empallideceu; elle, que a viu empallidecer, perguntou-lhe:

--A modo que n�o gostaste, Virgilia?

Virgilia abanou a cabe�a.

--N�o me agrada muito, foi a sua resposta.

N�o se disse mais nada; mas de noite o Lobo Neves insistiu no projecto,
um pouco mais resolutamente do que de tarde; e dous dias depois
declarou � mulher que a presidencia era cousa definitiva. Virgilia n�o
p�de dissimular a repugnancia que isto lhe causava. O marido respondia
a tudo com as necessidades politicas. E accrescentava:

--N�o posso recusar o que me pedem; � at� conveniencia nossa, do
nosso futuro, dos teus braz�es, meu amor, porque eu prometti que
serias marqueza, e nem baroneza est�s. Dir�s que sou ambicioso? Sou-o
dev�ras, mas � preciso que me n�o ponhas um peso nas azas da ambi��o.

Virgilia ficou desorientada. No dia seguinte achei-a triste, na casa
da Gamboa, � minha espera; tinha dito tudo a D. Placida, que buscava
consolal-a, como podia. N�o fiquei menos abatido.

--Voc� hade ir comnosco, disse-me Virgilia.

--Est� douda? Seria uma insensatez.

--Mas ent�o...?

--Ent�o, � preciso desfazer o projecto.

--� imposs�vel.

--J� aceitou?

--Parece que sim.

Levantei-me, atirei o chapeu a uma cadeira, e entrei a passeiar de um
lado para outro, sem saber o que faria. Cogitei largamente, e n�o achei
nada. Emfim, cheguei-me a Virgilia, que estava sentada, e travei-lhe da
m�o; D. Placida foi � janella.

--Nesta pequenina m�o est� toda a minha existencia, disse eu; voce �
responsavel por ella; fa�a o que lhe parecer.

Virgilia teve um gesto afflictivo; eu fui encostar-me ao consolo
fronteiro. Decorreram alguns instantes do silencio; ouviamos s�mente
o latir de um c�o, e n�o sei se o rumor da agua, que morria na praia.
Vendo que n�o falava, olhei para ella. Virgilia tinha os olhos no
ch�o, parados, sem luz, as m�os deixadas sobre os joelhos, com os
dedos cruzados, na attitude da suprema desesperan�a. N'outra occasi�o,
por differente motivo, � certo que eu me lan�aria aos p�s della,
e a ampararia com a minha raz�o e a minha ternura; agora, por�m,
era preciso compellil-a ao esfor�o de si mesma, ao sacrificio, �
responsabilidade da nossa vida commun, e conseguintemente desamparal-a,
deixal-a, e sa�r; foi o que fiz.

--Repito, a minha felicidade est� nas tuas m�os, disse eu.

Virgilia quiz agarrar-me, mas eu j� estava f�ra da porta. Cheguei a
ouvir um proromper de lagrimas, e digo-lhes que estive a ponto de
voltar, para as enxugar com um beijo; mas subjuguei-me e sai.




CAPITULO LXXIX


Compromisso de gato


N�o acabaria se houvesse de contar pelo miudo o que padeci nas
primeiras horas. Vacillava entre um querer e um n�o querer,
entre a piedade que me empuxava � casa de Virgilia e outro
sentimento,--egoismo, supponhamos,--que me dizia:--Fica; deixa-a a
s�s com o problema, deixa-a que ella o resolver� no sentido do amor.
Creio que essas duas for�as tinham egual intensidade, investiam e
resistiam ao mesmo tempo, com ardor, com tenacidade, e nenhuma cedia
definitivamente. �s rezes sentia um dentesinho de remorso; parecia-me
que abusava da fraqueza de uma mulher amante e culpada, sem nada
sacrificar nem arriscar de mim proprio; e, quando ia a capitular,
vinha outra vez o amor, e me repetia o conselho egoista, e eu ficava
irresoluto e inquieto, desejoso do a ver, e receioso de que a vista me
levasse a compartir a responsabilidade da solu��o.

Por fim interveiu um compromisso entre o egoismo e a piedade; eu iria
vel-a em casa, e s� em casa, em presen�a do marido, para lhe n�o dizer
nada, � espera do effeito da minha intima��o. Deste modo, poderia
conciliar as duas for�as. Agora, que isto escrevo, quer-me parecer que
o compromisso era uma burla, que essa piedade era ainda um f�rma de
egoismo, e que a resolu��o de ir consolar Virgilia n�o passava de uma
suggest�o de meu proprio padecimento. Occorre-me a este proposito um
naturalista,--n�o me lembra qual,--mas era um naturalista,--em quem li
esta observa��o curiosa: �O gato n�o nos affaga, affaga-se em n�s.�
Vejo que eu fazia um compromisso de gato.




CAPITULO LXXX


Do secretario


Na noite seguinte fui effectivamente � casa do Lobo Neves; estavam
ambos, Virgilia muito triste, elle muito jovial. Juro que ella sentiu
certo allivio, quando os nossos olhos se encontraram, cheios de
curiosidade e ternura; e n�o direi o que senti, porque isso j� ficou
expresso no capitulo anterior, _in fine._ O Lobo Neves contou-me os
planos que levava para a presidencia, as difficuldades locaes, as
esperan�as, as resolu��es; estava t�o contente! t�o esperan�ado!
Virgilia, ao p� da meza, fingia ler um livro, mas por cima da pagina
olhava-me de quando em quando, interrogativa e ansiosa.

--O peor, disse-me de repente o Lobo Neves, � que ainda n�o achei
secretario.

--N�o?

--N�o, e tenho uma id�ia.

--Ah!

--Uma id�a... Quer voc� dar um passeio ao norte? N�o sei o que lhe
disse.

--Voc� � rico, continuou elle, n�o precisa de um magro ordenado; mas se
quizesse obsequiar-me, ia de secretario commigo.

Meu espirito deu um salto para traz, como se descobrisse uma serpente
deante de si. Encarei o Lobo Neves, fixamente, imperiosamente, a ver
se lhe apanhava algum pensamento occulto... Nem sombra disso; o olhar
vinha direito e franco, a placidez do rosto era natural, n�o violenta,
uma placidez salpicada de alegria. Respirei, e n�o tive animo de
olhar para Virgilia; senti por cima da pagina o olhar della, que me
pedia tambem a mesma cousa, e disse que sim, que iria. Na verdade, um
presidente, uma presidenta, um secretario, era resolver as cousas de um
modo administrativo.




CAPITULO LXXXI


A reconcilia��o


E comtudo, ao sair de l�, tive umas sombras de duvida; cogitei se n�o
ia expor insanamente a reputa��o de Virgilia, se n�o haveria outro
meio razoavel de combinar o Estado e a Gamboa. N�o achei nada. No dia
seguinte, ao levantar-mo da cama, trazia o espirito feito e resoluto a
aceitar a nomea��o. Ao meio dia, veiu o creado dizer-me que estava na
sala uma senhora, coberta com um v�o. Corro; era minha irm� Sabina.

--Isto n�o pode continuar assim, disse ella; � preciso que, de uma vez
por todas, fa�amos as pazes. Nossa familia est� acabando; n�o havemos
de ficar como dous inimigos.

--Mas se eu n�o te pe�o outra cousa, mana! bradei eu estendendo-lhe os
bra�os.

E sentei-a ao p� de mim, e falei-lhe do marido, da filha, dos negocios,
de tudo. Tudo ia bem; a filha estava linda como os amores. O marido
viria mostrar-m'a, se eu consentissse.

--Ora essa! irei eu mesmo vel-a.

--Sim?

--Palavra.

--Tanto melhor! respirou Sabina. � tempo de acabar com isto.

Achei-a mais gorda, e talvez mais mo�a. Parecia ter vinte annos,
e contava mais de trinta. Graciosa, affavel, nenhum acanhamento,
nenhum resentimento. Olhavamos um para o outro, com as m�os seguras,
falando de tudo e de nada, como dous namorados. Era a minha infancia
que resurgia, fresca, travessa e loura; os annos iam caindo, como as
fileiras de cartas de jogar encurvadas, com que eu brincava em pequeno,
e deixavam-me ver a nossa casa, a nossa familia, as nossas festas.
Supportei a recorda��o com algum esfor�o; mas um barbeiro da visinhan�a
lembrou-se de zangarrear na classica rabeca, e essa voz,--porque at�
ent�o a recorda��o era muda,--essa voz do passado, fanhosa e saudosa, a
tal ponto me commoveu, que...

Os olhos della estavam seccos. Sabina n�o herd�ra a flor amarella e
m�rbida. Que importa? Era minha irm�, meu sangue, um peda�o de minha
m�e, e eu disse-lh'o com ternura, com sinceridade... Subito, ou�o bater
� porta da sala; vou abrir; era um anjinho de cinco annos.

--Entra, S�ra, disse Sabina.

Era minha sobrinha. Apanhei-a do ch�o, beijei-a muitas vezes; a
pequena, espantada, empurrava-me o hombro com a m�osinha, quebrando
o corpo para descer... Nisto, apparece-me � porta um chap�u, e logo
um homem, o Cotrim, nada menos que o Cotrim. Eu estava t�o commovido,
que deixei a filha e lancei-me aos bra�os do pae. Talvez essa effus�o
o desconcertou um pouco; � certo que me pareceu acanhado. Simples
prologo. Dahi a pouco falavamos como bons amigos velhos. Nenhuma
allus�o ao passado, muitos planos de futuro, promessa de jantarmos em
casa um do outro; e n�o deixei de dizer que essa troca de jantares
podia ser que tivesse uma curta interrup��o, por que eu andava com
id�as de uma viagem ao norte. Sabina olhou para o Cotrim, o Cotrim para
Sabina; ambos concordaram que essas id�as n�o tinham senso commum.
Que diacho podia eu achar no norte? Pois n�o era na c�rte, em plena
c�rte, que devia continuar a luzir, a metter n'um chinello os rapazes
do tempo? Que, na verdade, nenhum havia que se me comparasse; elle,
Cotrim, acompanhava-me de longe, e, n�o obstante uma briga ridicula,
teve sempre interesse, orgulho, vaidade nos meus triumphos. Ouvia o
que se dizia a meu respeito, nas ruas e nas salas; era um concerto de
louvores e admira��es. E deixa-se isso para ir passar alguns mezes na
provincia, sem necessidade, sem motivo serio? A menos que n�o fosse
politica...

--Justamente pol�tica, disse eu.

--Nem assim, replicou elle dahi a um instante--E depois de outro
silencio:--Seja como for, venha jantar hoje comnosco.

--Certamente que vou; mas, amanh� ou depois, h�o de vir jantar commigo.

--N�o sei, n�o sei, objectou Sabina; casa de homem solteiro... Voc�
precisa casar, mano. Tambem eu quero uma sobrinha, ouviu?

O Cotrim reprimiu-a com um gesto, que n�o entendi bem. N�o importa; a
reconcilia��o de uma familia vale bem um gesto enigmatico.




CAPITULO LXXXII


Quest�o de botanica


Digam o que quizerem dizer os hypocondriacos: a vida � uma cousa
doce. Foi o que eu pensei commigo, ao ver Sabina, o marido e a filha
descerem de tropel as escadas, dizendo muitas palavras affectuosas
para cima, onde eu ficava--no patamar,--a dizer-lhes outras tantas
para baixo. E continuei a pensar que, na verdade, era feliz. Amava-me
uma mulher, tinha a confian�a do marido, ia por secretario de ambos, e
reconciliava-me com os meus. Que podia desejar mais, em vinte e quatro
horas?

Nesse mesmo dia, tratando de apparelhar os animos, comecei a espalhar
que talvez fosse para o norte, como secretario de provincia, afim de
realizar certos designios politicos, que me eram pessoaes. Disse-o na
rua do Ouvidor, repeti-o no dia seguinte, no Pharoux e no theatro.
Alguns, ligando a minha nomea��o � do Lobo Neves, que j� andava em
boatos, sorriam maliciosamente, outros batiam-me no hombro. No theatro
disse-me uma senhora que era levar muito longe o amor da esculptura.
Referia-se �s bellas f�rmas de Virgilia.

Mas a allus�o mais rasgada que me fizeram foi em casa de Sabina, tres
dias depois. Fel-a um certo Garcez, velho cirurgi�o, pequenino, trivial
e grulha, que podia chegar aos setenta, aos oitenta, aos noventa annos,
sem adquirir jamais aquella compostura austera, que � a gentileza do
anci�o. A velhice ridicula �, porventura, a mais triste e derradeira
sorpresa da natureza humana.

--J� sei, desta vez vae ler Cicero, disse-me elle, ao saber da viagem.

--Cicero! exclamou Sabina.

--Pois ent�o? Seu mano � um grande latinista. Traduz Virgilio de
relance. Olhe que � Virgilio, e n�o Virgilia... n�o confunda...

E ria, de um riso grosso, rasteiro e frivolo. Sabina empallideceu e
olhou para mim, receiosa de alguma replica; mas sorriu, quando me viu
sorrir, e voltou o rosto para disfar�al-o. As outras pessoas olhavam-me
com um ar de curiosidade, indulgencia e sympathia; era transparente que
n�o acabavam de ouvir nenhuma novidade. O caso dos meus amores andava
mais publico do que eu podia suppor. E entretanto sorri, um sorriso
curto, fugitivo e guloso,--palreiro como as pegas de Cintra. Virgilia
era um bello erro, e � t�o facil confessar um bello erro! Costumava
ficar carrancudo, a principio, quando ouvia alguma allus�o aos nossos
amores; mas, palavra de honra! sentia c� dentro uma impress�o suave e
linsongeira. Uma vez, por�m, aconteceu-me sorrir, e continuei a fazel-o
das outras vezes. N�o sei se ha ahi algum Hobbes ou Spinoza, que
explique o phenomeno. Eu explico-o assim: a principio, o contentamento,
sendo interior, era por assim dizer o mesmo sorriso, mas abotoado;
andando o tempo, desabotou-se em flor, e appareceu aos olhos do
proximo. Simples quest�o de botanica.




CAPITULO LXXXIII


13


O Cotrim tirou-me daquelle gozo, levando-me � janella.--Voc� quer que
lhe diga uma cousa? perguntou elle;--n�o fa�a essa viagem; � insensata,
� perigosa.

--Porque?

--Voc� bem sabe porque, tornou elle: �, sobretudo, perigosa, muito
perigosa. Aqui na c�rte, um caso desses perde-se na multid�o da gente
e dos interesses; mas na provincia muda de figura; e tratando-se de
personagens politicos, � realmente insensatez. As gazetas de opposi��o,
logo que farejarem o negocio, passam a imprimil-o com todas as lettras,
e ahi vir�o as chufas, os remoques, as alcunhas...

--Mas n�o entendo...

--Entende, entende; e, na verdade, seria bem pouco amigo nosso, se me
negasse o que toda a gente sabe. Eu sei disso ha longos mezes. Repito,
n�o fa�a semelhante viagem; supporte a ausencia, que � melhor, e evite
algum grande escandalo e maior desgosto...

Disse isto, e foi para dentro. Eu deixei-me estar com os olhos no
lampi�o da esquina,--um antigo lampi�o de azeite,--triste, obscuro e
recurvado, como um ponto de interroga��o. Que me cumpria fazer? Era o
caso de Hamlet: ou dobrar-me � fortuna, ou lutar com ella e subjugal-a.
Por outros termos: embarcar ou n�o embarcar. Esta era a quest�o. O
lampi�o n�o me dizia nada. As palavras do Cotrim resoavam-me aos
ouvidos da memoria, de um modo bem diverso do das palavras do Garcez.
Talvez o Cotrim tivesse raz�o: mas podia eu separar-me de Virgilia?

Sabina veiu ter commigo, e perguntou-me em que estava pensando.
Respondi que em cousa nenhuma, que tinha somno e ia para casa. Sabina
esteve um instante calada.--O que voc� precisa, sei eu; � uma noiva.
Deixe, que eu ainda arranjo uma noiva para voc�. Sa� de l� oppresso,
desorientado. Tudo prompto para embarcar,--espirito e cora��o,--e eis
ahi me surge esse porteiro das conveniencias, que me pede o cart�o de
ingresso. Dei ao diabo as conveni�ncias, e com ellas a constitui��o, o
corpo legislativo, o ministerio, tudo.

No dia seguinte, abro uma folha politica e leio a noticia de que, por
decretos de 13, t�nhamos sido nomeados presidente e secretario da
provincia de *** o Lobo Neves e eu. Escrevi immediatamente a Virgilia,
e segui duas horas depois para a Gamboa. Coitada de D. Placida! Estava
cada vez mais afflicta; perguntou-me se esqueceriamos a nossa velha, se
a ausencia era grande e se a provincia ficava longe. Consolei-a; mas
eu proprio precisava de consola��es; a objec��o do Cotrim affligia-me
profundamente. Virgilia chegou dahi a pouco, lepida como uma andorinha;
mas, ao ver-me triste, ficou muito seria.

--Que aconteceu?

--Vacillo, disse eu; n�o sei se devo aceitar...

Virgilia deixou-se cair, no canap�, a rir.--Porque? disse ella.

--N�o � conveniente, d� muito na vista...

--Mas n�s j� n�o vamos.

--Como assim?

Contou-me que o marido ia recusar a nomea��o, e por motivo que s� disse
a ella, pedindo-lhe o maior segredo; n�o podia confessal-o a ninguem
mais.--� pueril, observou elle, � ridiculo; mas em summa, � um motivo
poderoso para mim. E referiu-lhe que o decreto trazia a data de 13, e
que esse numero significava para elle uma recorda��o funebre. O pae
morreu n'um dia 13, treze dias depois de um jantar, em que havia treze
pessoas. A casa em que morrera a m�e tinha o n. 13. Et c�tera. Era um
algarismo fatidico. N�o podia allegar semelhante cousa ao ministro;
dir-lhe-hia que tinha raz�es particulares para n�o aceitar. Eu fiquei
como ha de estar o leitor,--um pouco assombrado com esse sacrif�cio a
um numero; mas, sendo elle ambicioso, o sacrificio devia ser sincero...
E ficavamos. Para alguma cousa ha de servir a supersti��o dos homens.




CAPITULO LXXXIV


O conflicto


Numero fatidico, lembras-te que te aben�oei muitas vezes? Assim tambem
as virgens ruivas de Thebas deviam aben�oar a egua, de ruiva crina,
que as substituiu no sacrificio de Pelopidas,--uma donosa egua, que
l� morreu, coberta de flores, sem que ninguem lhe d�sse nunca uma
palavra de saudade. Pois dou-t'a eu, egua piedosa, n�o s� pela morte
havida, como porque, entre as donzellas escapas, n�o � impossivel
que figurasse uma av� dos Cubas... Numero fatidico, tu foste a nossa
salva��o. N�o me confessou o marido a causa da recusa; disse-me tambem
que eram negocios particulares, e o rosto serio, convencido, com que
eu o escutei, fez honra � dissimula��o humana. Elle � que mal podia
encobrir a tristeza profunda que o minava; falava pouco, absorvia-se,
mettia-se em casa, a ler. Outras vezes recebia, e ent�o conversava e
ria muito, com estrepito e affecta��o. Opprimiam-n'o duas cousas,--a
ambi��o, que um escrupulo desaz�ra, e logo depois a duvida, e talvez
o arrependimento,--mas um arrependimento, que viria outra vez, si se
repetisse a hypothese, porque o fundo supersticioso existia. Duvidava
da supersti��o, sem chegar a rejeital-a. Essa persistencia de um
sentimento, que repugna ao mesmo individuo, era um phenomeno digno de
alguma atten��o. Mas eu preferia a pura ingenuidade de D. Placida,
quando confessava n�o poder ver um sapato voltado para o ar.

--Que tem isso? perguntava-lhe eu.

--Faz mal, era a sua resposta.

Isto somente, esta unica resposta, que valia para ella o livro dos sete
sellos. Faz mal. Disseram-lhe isso em crian�a, sem outra explica��o;
e ella contentava-se com a certeza do mal. J� n�o acontecia a mesma
cousa quando se falava de apontar uma estrella com o dedo; ahi sabia
perfeitamente que era caso de crear uma verruga.

Ou verruga ou outra cousa, que valia isso, para quem n�o perde uma
presidencia de provincia? Tolera-se uma supersti��o gratuita ou barata;
� insupportavel a que leva uma parte da vida. Este era o caso do Lobo
Neves; com o accrescimo da duvida e do terror de haver sido ridiculo.
E mais este outro accrescimo, que o ministro n�o acreditou nos motivos
particulares; attribuiu a recusa do Lobo Neves a manejos politicos,
illus�o complicada de algumas apparencias; tratou-o mal, communicou a
desconfian�a aos collegas; sobrevieram incidentes; emfim, com o tempo,
o presidente resignatario foi para a opposi��o.




CAPITULO LXXXV


O cimo da montanha


Quem escapa a um perigo ama a vida com outra intensidade; eu entrei
a amar Virgilia com muito mais ardor, depois que estive a pique de a
perder, e a mesma cousa lhe aconteceu a ella. Assim, a presidencia n�o
fez mais do que avivar a affei��o primitiva; foi a droga de Malabar,
com que torn�mos mais saboroso o nosso amor, e mais prezado tambem. Nos
primeiros dias, depois daquelle incidente, folgavamos de imaginar a
d�r da separa��o, se houvesse separa��o, a tristeza de um e de outro,
� propor��o que o mar, como uma toalha elastica, se fosse dilatando
entre n�s; e, semelhantes �s crian�as, que se achegam ao rega�o das
m�es, para fugir a uma simples careta, fugiamos do supposto perigo,
apertando-nos com abra�os.

--Minha boa Virgilia!

--Meu amor!

--Tu �s minha, n�o?

--Tua, tua...

E assim reat�mos o fio da aventura, como a sultana Scheherazade o dos
seus contos. Esse foi, cuido eu, o ponto maximo do nosso amor, o cimo
da montanha, donde por algum tempo divis�mos os valles de leste e de
oeste, e por cima de n�s o ceu tranquillo e azul. Repousado esse tempo,
come��mos a descer a encosta, com as m�os presas ou soltas, mas a
descer, a descer...




CAPITULO LXXXVI


O mysterio


Serra abaixo, como eu a visse um pouco differente, n�o sei se abatida
ou outra cousa, perguntei-lhe o que tinha; calou-se, fez um gesto de
enfado, de m�u estar, de fadiga; ateimei, ella disse-me que... Um
fluido subtil percorreu todo o meu corpo: sensa��o forte; rapida,
singular, que eu n�o chegarei jamais a fixar no papel. Travei-lhe das
m�os, puxei-a levemente a mim, e beijei-a na testa, com uma delicadeza
de zephyro e uma gravidade de Abrah�o. Ella estremeceu, colheu-me a
cabe�a entre as palmas, fitou-me os olhos, depois affagou-me com um
gesto maternal...Eis ahi um mysterio; deixemos ao leitor o tempo de
decifrar este mysterio.




CAPITULO LXXXVII


Geologia


Succedeu por esse tempo um desastre: a morte do Viegas. O Viegas passou
ahi de relance, n'um capitulo, com os seus setenta annos, abafados
de asthma, desconjuntados de rheumatismo, e uma les�o de cora��o por
quebra. Foi um dos finos espreitadores da nossa aventura. Virgilia
nutria grandes esperan�as em que esse velho parente, avaro como um
sepulchro, lhe amparasse o futuro do filho, com algum legado; e, se
o marido tinha eguaes pensamentos, encobria-os ou estrangulava-os.
Tudo se deve dizer: havia no Lobo Neves certa dignidade fundamental,
uma camada de rocha, que resistia ao commercio dos homens. As outras,
as camadas de cima, terra solta e ar�a, levou-lh'as a vida, que �
um enxurro perpetuo. Se o leitor ainda se lembra do cap. XXXIII,
observar� que � agora a segunda vez que eu comparo a vida a um
enxurro; mas tambem ha de reparar que desta vez accrescento-lhe
um adjectivo--perpetuo. E Deus sabe a for�a de um adjectivo,
principalmente em paizes novos e c�lidos.

O que � novo neste livro � a geologia moral do Lobo Neves, e
provavelmente a do cavalheiro, que me est� lendo. Sim, essas camadas
de caracter, que a vida altera, conserva ou dissolve, conforme a
resistencia dellas, essas camadas mereceriam um capitulo, que eu n�o
escrevo, por n�o alongar a narra��o. Digo apenas que o homem mais
probo que conheci em minha vida foi um certo Jacob Medeiros ou Jacob
Valladares, n�o me recorda bem o nome. Talvez fosse Jacob Rodrigues;
em summa, Jacob. Era a probidade mesma; podia ser rico, violentando um
pequenino escapulo, e n�o quiz; deixou ir pelas m�os f�ra nada menos de
uns quatrocentos contos; tinha a probidade t�o exemplar, que chegava
a ser miuda e can�ativa. Um dia, como nos achassemos, a s�s, em casa
delle, em boa palestra, vieram dizer que o procurava o Dr. B., um
sujeito enfadonho. O Jacob mandou dizer que n�o estava em casa.

--N�o p�ga, bradou uma voz do corredor; c� estou de dentro.

E, com effeito, era o Dr. B., que appareceu logo � porta da sala. O
Jacob foi recebel-o, affirmando que cuidava ser outra pessoa, e n�o
elle, e accrescentando que tinha muito prazer com a visita, o que nos
rendeu hora e meia de enfado mortal, e isto mesmo, porque o Jacob tirou
o relogio; o Dr. B. pergutou-lhe ent�o se ia sair.

--Com minha mulher, disse o Jacob.

Retirou-se o Dr. B. e respiramos. Uma vez respirados, disse eu ao
Jacob que elle acabava de mentir quatro vezes, em menos de duas horas:
a primeira, negando-se; a segunda, alegrando-se com a presen�a do
importuno; a terceira, dizendo que ia sair; a quarta, accrescentando
que com a mulher. O Jacob reflectiu um instante, depois confessou a
justeza da minha observa��o, mas desculpou-se dizendo que a veracidade
absoluta era incompativel com um estado social adiantado, e que a paz
das cidades s� se podia obter � custa de emba�adellas reciprocas... Ah!
lembra-me agora: chamava-se Jacob Tavares.




CAPITULO LXXXVIII


O enfermo


N�o � preciso dizer que refutei t�o perniciosa doutrina, com os mais
elementares argumentos; mas elle estava t�o vexado do meu reparo,
que resistiu at� o fim, mostrando certo calor ficticio, talvez para
atordoar a consciencia.

O caso de Virgilia tinha alguma gravidade mais. Ella era menos
escrupulosa que o marido; manifestava claramente as esperan�as que
trazia no legado, cumulava o parente de todas as cortezias, atten��es
e affagos que poderiam render, pelo menos, um codicillo. Propriamente,
adulava-o; mas eu observei que a adula��o das mulheres n�o � a mesma
cousa que a dos homens. Esta or�a pela servilidade; a outra confunde-se
com a affei��o. As formas graciosamente curvas, a palavra doce, a mesma
fraqueza physica d�o � ac��o lisonjeira da mulher uma c�r local, um
aspecto legitimo. N�o importa a edade do adulado; a mulher ha de ter
sempre para elle uns ares de m�e ou de irm�,--ou ainda de enfermeira,
outro officio feminil, em que o mais habil dos homens carecer� sempre
de um _quid_, um fluido, alguma cousa.

Era o que eu pensava commigo, quando Virgilia se desfazia toda em
affagos ao velho parente. Ella ia recebel-o � porta, falando e rindo,
tirava-lhe o chapeu e a bengala, dava-lhe o bra�o e levava-o at� uma
cadeira, ou at� � cadeira, porque havia l� em casa a �cadeira do
Viegas�, obra especial, conchegada, feita para gente enferma ou anci�.
Ia fechar a janella proxima, se havia alguma brisa, ou abril-a, se
estava calor, mas com cuidado, combinando de modo que lhe n�o d�sse um
golpe de ar.

--Ent�o? hoje est� mais fortesinho...

--Qual! Passei mal a noite; o diabo da asthma n�o me deixa.

E bufava o homem, repousando a pouco e pouco do can�a�o da entrada e
da subida, n�o do caminho, porque ia sempre de sege. Ao lado, um pouco
mais para a frente, sentava-se Virgilia, n'uma banquinha, com as m�os
nos joelhos do enfermo. Entretanto, o nhonh� chegava � sala, sem os
pulos do costume, mas discreto, meigo, serio. O Viegas gostava muito
delle.

--Vem c�, nhonh�, dizia-lhe; e a custo introduzia a m�o na ampla
algibeira, tirava uma caixinha de pastilhas, mettia uma na boca o dava
outra ao pequeno. Pastilhas anti-asthmaticas. O pequeno dizia que eram
muito boas.

Repetia-se isto, com variantes. Como o Viegas gostasse de jogar damas,
Virgilia cumpria-lhe o desejo, aturando-o por largo tempo, a mover as
pedras com a m�o frouxa e tarda. Outras vezes, desciam a passear na
chacara, dando-lhe ella o bra�o, que elle nem sempre aceitava, por
dizer-se rijo e capaz de andar uma legua. Iam, sentavam-se, tornavam
a ir, a falar de cousas varias, ora de um negocio de familia, ora de
uma bisbilhotice de alcova, ora emfim de uma casa que elle meditava
construir, para residencia propria, casa de feitio moderno, porque a
delle era das antigas, contempor�nea de el-rei D. Jo�o VI, � maneira
de algumas que ainda hoje (creio eu) se podem ver no bairro de S.
Christov�o, com as suas grossas columnas na frente. Parecia-lhe que o
casar�o em que morava podia ser substituido, e j� tinha encommendado
o risco a um pedreiro de fama. Ah! ent�o sim, ent�o � que Virgilia
chegaria a ver o que era um velho de gosto.

Falava, como se p�de supp�r, lentamente e a custo, intervallado de uma
arfagem incommoda para elle e para os outros. De quando em quando,
vinha um accesso de tosse; curvo, gemendo, levava o len�o � boca, e
investigava-o; passado o accesso, tornava ao plano da casa, que devia
ter taes e taes quartos, um terra�o, cocheira, um primor.




CAPITULO LXXXIX


In extremis


--Amanh� vou passar o dia em casa do Viegas, disse-me ella uma vez.
Coitado! n�o tem ninguem...

O Viegas ca�ra na cama, definitivamente; a filha, casada, adoecera
justamente agora, e n�o podia fazer-lhe companhia. Virgilia ia l�
de quando em quando. Eu aproveitei a circumstancia para passar todo
aquelle dia ao p� della. Eram duas horas da tarde quando cheguei. O
Viegas tossia com tal for�a que me fazia arder o peito; no intervallo
dos accessos debatia o pre�o de uma casa, com um sujeito magro. O
sujeito offerecia trinta contos, o Viegas exigia quarenta. O comprador
instava como quem receia perder o trem da estrada de ferro, mas o
Viegas n�o cedia; recusou primeiramente os trinta contos, depois
mais dous, depois mais tres, emfim teve um forte accesso, que lhe
tolheu a fala durante quinze minutos. O comprador acarinhou-o muito,
arranjou-lhe os travesseiros, offereceu-lhe trinta e seis contos.

--Nunca! gemeu o enfermo.

E mandou buscar um ma�o de papeis � escrivaninha; n�o tendo for�as
para tirar a fita de borracha que prendia os papeis, pediu-me que os
desla�asse: fil-o. Eram as contas das despezas com a construc��o da
casa: contas de pedreiro, de carpinteiro, de pintor; contas do papel da
sala de visitas, da sala de jantar, das alcovas, dos gabinetes; contas
das ferragens; custo do terreno. Elle abria-as, uma por uma, com a m�o
tremula, e pedia-me que as lesse, e eu lia-as.

--Veja; mil e duzentos, papel de mil e duzentos a pe�a. Dobradi�as
francezas... Veja, � de gra�a, concluiu elle depois de lida a ultima
conta.

--Pois bem... mas...

--Quarenta contos; n�o lhe dou por menos. S� os juros... fa�a a conta
dos juros...

Vinham tossidas estas palavras, �s golfadas, �s syllabas, como se
fossem migalhas de um pulm�o desfeito. Nas orbitas fundas rolavam os
olhos lampejantes, que me faziam lembrar a lamparina da madrugada. Sob
o len�ol desenhava-se a estructura ossea do corpo, pontudo em dous
lugares, nos joelhos e nos p�s; a pelle amarellada, bamba, rugosa,
revestia apenas a caveira de um rosto sem express�o; uma carapu�a de
algod�o branco cobria-lhe o craneo rapado pelo tempo.

--Ent�o? disse o sujeito magro.

Fiz-lhe signal para que n�o insistisse, e elle calou-se por alguns
instantes. O doente ficou a olhar para o tecto, calado, a arfar muito;
Virgilia empallideceu, levantou-se, foi at� � janella. Suspeitara a
morte e tinha medo. Eu procurei falar de outras cousas. O sujeito magro
contou uma anecdota, e tornou a tratar da casa, alteando a proposta.

--Trinta e oito contos, disse elle.

--Am?... gemeu o enfermo.

O sujeito magro aproximou-se da cama, pegou-lhe na m�o, e sentiu-a
fria. Eu acheguei-me ao doente, perguntei-lhe se sentia alguma cousa,
se queria tomar um calice de vinho.

--N�o... n�o... quar... quaren... quar... quar...

Teve um accesso de tosse, e foi o ultimo; dahi a pouco expirava elle,
com grande consterna��o do sujeito magro, que me confessou depois a
disposi��o em que estava de offerecer os quarenta contos; mas era
tarde.




CAPITULO XC


O velho colloquio de Ad�o e Caim


E nada. Nenhuma lembran�a testamentaria, uma pastilha que fosse, com
que do todo em todo n�o parecesse ingrato ou esquecido. Nada. Virgilia
tragou raivosa esse mallogro, e disse-m'o com certa cautela, n�o pela
cousa em si, sen�o porque entendia com o filho, de quem sabia que eu
n�o gostava muito, nem pouco. Insinuei-lhe que n�o devia pensar mais em
semelhante negocio. O melhor de tudo era esquecer o defunto, um lorpa,
um cainho sem nome, e tratar de cousas alegres; o nosso filho, por
exemplo.

L� me escapou a decifra��o do mysterio, esse doce mysterio de algumas
semanas antes, quando Virgilia me pareceu um pouco differente do que
era. Um filho! Um ser tirado do meu ser! Esta era a minha preoccupa��o
exclusiva daquelle tempo. Olhos do mundo, zelos do marido, morte do
Viegas, nada me interessava por ent�o, nem conflictos politicos,
nem revolu��es, nem terremotos, nem nada. En s� pensava naquelle
embry�o anonymo, de obscura paternidade, e uma voz secreta me dizia:
� teu filho. Meu filho! E repetia estas duas palavras, com certa
voluptuosidade indefinivel, e n�o sei que assomos de orgulho. Sentia-me
homem.

O melhor � que convers�vamos os dous, o embry�o e eu, falavamos
de cousas presentes e futuras. O maroto amava-me, era um pelintra
gracioso, dava-me pancadinhas na cara com as m�osinhas gordas, ou
ent�o tra�ava a beca de bacharel, porque elle havia de ser bacharel,
e fazia um discurso na camara dos deputados. E o pae a ouvil-o de uma
tribuna, com os olhos rasos de lagrimas. De bacharel passava outra vez
� escola, pequenino, lousa e livros debaixo do bra�o, ou ent�o ca�a no
ber�o para tornar a erguer-se homem. Em v�o buscava fixar no espirito
uma edade, uma attitude; esse embry�o tinha a meus olhos todos os
tamanhos e gestos: elle mamava, elle escrevia, elle valsava, elle era
o intermin�vel nos limites de um quarto de hora,--_baby_ e deputado,
collegial e pintalegrete. �s vezes, ao p� de Virgilia, esquecia-me
della e de tudo; Virgilia sacudia-me, reprochava-me o silencio, dizia
que eu j� lhe n�o queria nada. A verdade � que estava em dialogo com
o embry�o; era o velho colloquio de Ad�o e Caim, uma conversa sem
palavras entre a vida e a vida, o mysterio e o mysterio.




CAPITULO XCI


Uma carta extraordinaria


Por esse tempo recebi uma carta extraordinaria, acompanhada de um
objecto n�o menos extraordinario. Eis o que a carta dizia:

    �Meu caro Braz Cubas.

    �Ha tempos, no Passeio Publico, tomei-lhe de emprestimo
    um relogio. Tenho a satisfa��o de restituir-lh'o com esta
    carta. A differen�a � que n�o � o mesmo, por�m outro, n�o
    digo superior, mas egual ao primeiro. _Que voulez-vous,
    monseigneur_,--como dizia Figaro,--_c'est la mis�re._ Muitas
    cousas se deram depois do nosso encontro; irei contal-as
    pelo miudo, se me n�o fechar a porta. Saiba que j� n�o trago
    aquellas botas caducas, nem envergo uma famosa sobrecasaca
    cujas abas se perdiam na noite dos tempos. Cedi o meu degrau
    da escada de S. Francisco; finalmente, alm��o.

    �Dito isto, pe�o licen�a para ir um dia destes expor-lhe
    um trabalho, fructo de longo estudo, um novo systema de
    philosophia, que n�o s� explica e descreve a origem e a
    consumma��o das cousas, como faz dar um grande passo adeante
    de Zenon e Seneca, cujo stoicismo era um verdadeiro brinco
    de crian�as ao p� da minha receita moral. � singularmente
    espantoso este meu systema; rectifica o espirito humano,
    supprime a dor, assegura a felicidade, e enche de immensa
    gloria o nosso paiz. Chamo-lhe humanitismo, de _Humanitas_,
    principio das cousas. Minha primeira id�a revelava uma grande
    enfatua��o; era chamar-lhe borbismo, de Borba; denomina��o
    vaidosa, al�m de rude e molesta. E com certeza exprimia
    menos. Ver�, meu caro Braz Cubas, ver� que � dev�ras um
    monumento; e se alguma cousa ha que possa fazer-me esquecer
    as amarguras da vida, � o gosto de haver emfim apanhado
    a verdade e a felicidade. Eil-as na minha m�o essas
    duas esquivas; ap�s tantos seculos de lutas, pesquizas,
    descobertas, systemas e qu�das, eil-as nas m�os do homem. At�
    breve, meu caro Braz Cubas. Saudades do

    Velho amigo Joaquim Borba dos Santos.�

Li esta carta sem entendel-a. Vinha com ella uma boceta contendo
um bonito relogio com as minhas iniciaes gravadas, e esta phrase:
_Lembran�a do velho Quincas._ Voltei � carta, reli-a com pausa, com
atten��o. A restitui��o do relogio excluia toda a id�a de burla;
a lucidez, a serenidade, a convic��o,--um pouco jactanciosa, �
certo,--pareciam excluir a suspeita de insensatez. Naturalmente
o Quincas Borba herdara de algum dos seus parentes de Minas, e a
abastan�a devolvera-lhe a primitiva dignidade. N�o digo tanto; ha
cousas que se n�o podem rehaver integralmente; mas emfim a regenera��o
n�o era impossivel. Guardei a carta e o relogio, e esperei a
philosophia.




CAPITULO XCII


Um homem extraordinario


J� agora acabo com as cousas extraordinarias. Vinha de guardar a
carta e o relogio, quando me procurou um homem magro e me�o, com um
bilhete do Cotrim, convidando-me para jantar. O portador era casado
com uma irm� do Cotrim, cheg�ra poucos dias antes do norte, chamava-se
Damasceno, e fizera a revolu��o de 1831. Foi elle mesmo que me disse
isto, no espa�o de cinco minutos. Sa�ra do Rio de Janeiro, por
desaccordo com o Regente, que era um asno, pouco menos asno do que os
ministros que serviram com elle. De resto, a revolu��o estava outra
vez �s portas. Neste ponto, comquanto trouxesse as id�as politicas
um pouco baralhadas, consegui organisar e formular o governo de suas
preferencias: era um despotismo temperado,--n�o por cantigas, como
dizem alhures,--mas por pennachos da guarda nacional. S� n�o pude
alcan�ar se elle queria o despotismo de um, de tres, de trinta ou de
tresentos. Opinava por varias cousas, entre outras, o desenvolvimento
do trafico dos africanos e a expuls�o dos inglezes. Gostava muito
de theatro; logo que chegou foi ao theatro de S. Pedro, onde viu um
drama soberbo, a _Maria Joanna_, e uma comedia muito interessante,
_Kettly, ou a volta � Suissa._ Tambem gostara muito da Deperini, na
_Sapho_, ou na _Anna Bolena_, n�o se lembrava bem. Mas a Candiani!
sim, senhor, era papa-fina. Agora queria ouvir o _Ernani_, que a filha
delle cantava em casa, ao piano: _Ernani, Ernani, involami..._--E dizia
isto levantando-se e cantarolando a meia voz.--No norte essas cousas
chegavam como um echo. A filha morria por ouvir todas as operas. Tinha
uma voz muito mimosa a filha. E gosto, muito gosto. Ah! elle estava
ancioso por voltar ao Rio de Janeiro. J� havia corrido a cidade toda,
com umas saudades... Palavra! em alguns logares teve vontade de chorar.
Mas n�o embarcaria mais. Enjo�ra muito a bordo, como todos os outros
passageiros, excepto um inglez... Que os levasse o diabo os inglezes!
Isto n�o ficava direito sem irem todos elles barra f�ra. Que � que a
Inglaterra podia fazer-nos? Se elle encontrasse algumas pessoas de
boa vontade, era obra de uma noite a expuls�o dos taes _godemes_...
Gra�as a Deus, tinha patriotismo,--e batia no peito,--o que n�o
admirava porque era de familia; descendia de um antigo capit�o-m�r
muito patriota. Sim, n�o era nenhum p�-rapado. Viesse a occasi�o, e
elle havia de mostrar de que pau era a canoa... Mas fazia-se tarde,
ia dizer que eu n�o faltaria ao jantar, e l� me esperava para
maior palestra.--Levei-o at� � porta da sala; elle parou dizendo
que sympathisava muito commigo. Quando cas�ra, estava eu na Europa.
Conheceu meu pae, um homem �s direitas, com quem dans�ra n'um celebre
baile da Praia Grande... Coisas! coisas! Falaria depois, fazia-se
tarde, tinha de ir levar a resposta ao Cotrim. Saiu; fechei-lhe a
porta... Uf!




CAPITULO XCIII


O jantar


Que supplicio que foi o jantar! Felizmente, Sabina fez-me sentar ao p�
da filha do Damasceno, uma D. Eulalia, ou mais familiarmente Nh�-l�l�,
mo�a bem graciosa, um tanto acanhada a principio, mas s� a principio.
Faltava-lhe elegancia, mas compensava-a com os olhos, que eram
soberbos e s� tinham o defeito de se n�o arrancarem de mim, excepto
quando desciam ao prato; mas Nh�-l�l� comia t�o pouco, que quasi n�o
olhava para o prato. De noite cantou; a voz era como dizia o pae,
�muito mimosa�. N�o obstante, esquivei-me. Sabina veiu at� � porta, e
perguntou-me que tal ach�ra a filha do Damasceno.

--Assim, assim.

--Muito sympathica, n�o �? acudiu ella; falta-lhe um pouco mais de
corte. Mas que cora��o! � uma perola. Bem boa noiva para voc�.

--N�o gosto de perolas.

--Casmurro! Para quando � que voc� se guarda? para quando estiver a
cair de maduro, j� sei. Pois, meu rico, quer voc� queira quer n�o, ha
de casar com Nh�-l�l�.

E dizia isto a bater-me na face com os dedos, meiga como uma pomba, e
ao mesmo tempo intimativa e resoluta. Santo Deus! seria esse o motivo
da reconcilia��o? Fiquei um pouco desconsolado com a id�a, mas uma voz
mysteriosa chamava-me � casa do Lobo Neves, disse adeus a Sabina e �s
suas amea�as.




CAPITULO XCIV


A causa secreta


--Como est� a minha querida mam�e?

A esta palavra, Virgilia amuou-se, como sempre. Estava ao canto de uma
janella, sosinha, a olhar para a lua, e recebeu-me alegremente; mas
quando lhe falei no nosso filho amuou-se. N�o gostava de semelhante
allus�o, aborreciam-lhe as minhas anticipadas caricias paternaes.
E eu, para quem ella era j� uma pessoa sagrada, uma ambula divina,
deixava-a estar quieta. Suppuz a principio que o embry�o, esse perfil
do incognito, projectando-se na nossa aventura, lhe restituira a
consci�ncia do mal. E enganava-me. Nunca Virgilia me parecera mais
expansiva, mais sem reservas, menos preoccupada dos outros e do marido.
N�o eram remorsos. Imaginei tambem que a concep��o seria um puro
invento, um modo de prender-me a ella, recurso sem longa efficacia, que
talvez come�ava de opprimil-a. N�o era absurda esta hypothese; a minha
doce Virgilia mentia �s vezes, com tanta gra�a!

Naquella noite descobri a causa verdadeira. Era medo do parto e
vexame da gravidez. Padecera muito quando lhe nasceu o primeiro
filho; e essa hora, feita de minutos de vida e minutos de morte,
dava-lhe j� imaginariamente os calefrios do patibulo. Quanto ao
vexame, complicava-se ainda da for�ada priva��o de certos habitos
da vida elegante. Com certeza, era isso mesmo; dei-lh'o a entender,
reprehendendo-a, um pouco em nome dos meus direitos de pae. Virgilia
fitou-me; em seguida desviou os olhos e sorriu de um geito incredulo.




CAPITULO XCV


Flores de antanho


Onde est�o ellas as flores de antanho? Uma tarde, apoz algumas semanas
de gesta��o, esboroou-se todo o edificio das minhas chimeras paternaes.
Foi-se o embry�o, naquelle ponto em que se n�o distingue Laplace de
uma tartaruga. Tive a noticia por boca do Lobo Neves, que me deixou na
sala, e acompanhou o medico � alcova da frustrada m�e. Eu encostei-me
� janella, a olhar para a chacara, onde verdejavam as laranjeiras sem
flores. Onde iam ellas as flores de antanho?




CAPITULO XCVI


A carta anonyma


Senti tocar-me no hombro; era o Lobo Neves. Encaramo-nos alguns
instantes, mudos, inconsolaveis. Indaguei de Virgilia, depois ficamos
a conversar uma meia hora. No fim desse tempo, vieram trazer-lhe uma
carta; elle leu-a, empallideceu muito, e fechou-a com a m�o tremula.
Creio que lhe vi fazer um gesto, como se quizesse atirar-se sobre mim;
mas n�o me lembra bem. O que me lembra claramente � que durante os dias
seguintes recebeu-me frio e taciturno. Emfim, Virgilia contou-me tudo,
dahi a dias na Gamboa.

O marido mostrou-lhe a carta, logo que ella se restabeleceu. Era
anonyma e denunciava-nos. N�o dizia tudo; n�o falava, por exemplo, das
nossas entrevistas externas; limitava-se a precavel-o contra a minha
intimidade, e accrescentava que a suspeita era publica. Virgilia leu a
carta e disse com indigna��o que era uma calumnia infame.

--Calumnia? perguntou o Lobo Neves.

--Infame.

O marido respirou; mas, tornando � carta, parece que cada palavra della
lhe fazia com o dedo um signal negativo, cada lettra bradava contra a
indigna��o da mulher. Esse homem, ali�s intrepido, era agora a mais
fragil das creaturas. Talvez a imagina��o lhe mostrou, ao longe, o
famoso olho da opini�o, a fital-o sarcasticamente, com um ar de pulha;
talvez uma boca invisivel lhe repetiu ao ouvido as chufas que elle
escutara ou dissera outr'ora. Instou com a mulher que lhe confessasse
tudo, porque tudo lhe perdoaria. Virgilia comprehendeu que estava
salva; mostrou-se irritada com a insistencia, jurou que da minha parte
s� ouvira palavras de gracejo e cortezia. A carta havia de ser de algum
namorado sem ventura. E citou alguns,--um que a galante�ra francamente,
durante algumas semanas, outro que lhe escrevera uma carta, e ainda
outros e outros. Citava-os pelo nome, com circumstancias, estudando
os olhos do marido, e concluiu dizendo que, para n�o dar margem �
calumnia, tratar-me-hia de maneira que eu n�o voltaria l�.

Ouvi tudo isto um pouco turbado, n�o pelo accrescimo de dissimula��o
que era preciso empregar de ora em diante, at� afastar-me inteiramente
da casa do Lobo Neves, mas pela tranquillidade moral de Virgilia, pela
falta de commo��o, de susto, de saudades, e at� de remorsos. Virgilia
notou a minha preoccupa��o, levantou-me a cabe�a, porque eu olhava
ent�o para o soalho, e disse-me com certa amargura:

--Voc� n�o merece os sacrif�cios que lhe fa�o.

N�o lhe disse nada; era ocioso ponderar-lhe que um pouco de desespero
e terror daria � nossa situa��o o sabor caustico dos primeiros dias;
mas se lh'o dissesse, n�o � impossivel que ella chegasse lenta e
artificiosamente at� esse pouco de desespero e terror. N�o lhe disse
nada. Ella batia nervosamente com a ponta do p� no ch�o; aproximei-me e
beijei-a na testa. Virgilia recuou, como se fosse um beijo de defuncto.




CAPITULO XCVII


Entre a boca e a testa


Sinto que o leitor estremeceu,--ou devia estremecer. Naturalmente
a ultima palavra suggeriu-lhe tres ou quatro reflex�es. Veja bem o
quadro: n'uma casinha da Gamb�a*, duas pessoas que se amam ha muito
tempo, uma inclinada para a outra, a dar-lhe um beijo na testa, e a
outra a recuar, como se sentisse o contacto de uma boca de cadaver.
Ha ahi, no breve intervallo, entre a boca e a testa, antes do beijo e
depois do beijo, ha ahi largo espa�o para muita cousa,--a contrac��o de
um resentimento,--a ruga da desconfian�a,--ou emfim o nariz pallido e
somnolento da saciedade..




CAPITULO XCVIII


Supprimido


Separamo-nos alegremente. Jantei reconciliado com a situa��o. A carta
anonyma restituia � nossa aventura o sal do mysterio e a pimenta do
perigo; e afinal foi bem bom que Virgilia n�o perdesse naquella crise a
posse de si mesma. De noite fui ao theatro de S. Pedro; representava-se
uma grande pe�a, em que a Estella arrancava lagrimas. Entro; corro
os olhos pelos camarotes; vejo em um delles o Damasceno e a familia.
Trajava a filha com outra elegancia e certo apuro, cousa difficil de
explicar, porque o pae ganhava apenas o necessario para endividar-se; e
dahi, talvez fosse por isso mesmo.

No intervallo fui visital-os. O Damasceno recebeu-me com muitas
palavras, a mulher com muitos sorrisos. Quanto a Nh�-l�l�, n�o tirou
mais os olhos de mim; e realmente parecia-me agora mais bonita que
no dia do jantar. Achei-lhe certa suavidade etherea casada ao polido
das f�rmas terrenas:--express�o vaga, e condigna de um capitulo em
que tudo ha de ser vago. Realmente, n�o sei como lhes diga que n�o me
senti mal, ao p� da mo�a, trajando garridamente um vestido fino, um
vestido que me dava cocegas de Tartuffo. Ao contemplal-o, cobrindo
casta e redondamente o joelho, foi que eu fiz uma descoberta subtil, a
saber, que a natureza previu a vestidura humana, condi��o necessaria
ao desenvolvimento da nossa especie. A nudez habitual, dada a
multiplica��o das obras e dos cuidados do individuo, tenderia a embotar
os sentidos e a retardar os sexos, ao passo que o vestuario, negaceando
a natureza, agu�a e attr�e as vontades, activa-as, reprodul-as, e
conseguintemente faz andar a civilisa��o. Aben�oado uso que nos deu
_Othello_ e os paquetes transatl�nticos!

Estou com vontade de supprimir este capitulo. O declive � perigoso.
Mas emfim eu escrevo as minhas memorias e n�o as tuas, leitor pacato.
Ao p� da graciosa donzella, parecia-me tomado de uma sensa��o dupla
e indefinivel. Ella exprimia inteiramente a dualidade de Pascal,
_l'ange et la b�te_, com a differen�a que o jansenista n�o admittia a
simultaneidade das duas naturezas, ao passo que ellas ahi estavam bem
juntinhas,--_l'ange_, que dizia algumas cousas do ceu,--e _la b�te_,
que... N�o; decididamente supprimo este capitulo.




CAPITULO XCIX


Na plat�a


Na plat�a achei o Lobo Neves, de conversa com alguns amigos; fal�mos
por alto, a frio, constrangidos um e outro. Mas no intervallo seguinte,
prestes a levantar o panno, encontramo-nos n'um dos corredores, em que
n�o havia ninguem. Elle veiu a mim, com muita affabilidade e riso,
puxou-me a um dos oculos do theatro, e falamos muito, principalmente
elle, que parecia o mais tranquillo dos homens. Cheguei a perguntar-lhe
pela mulher; respondeu que estava boa, mas torceu logo a conversa��o
para assumptos geraes, expansivo, quasi risonho. Adivinhe quem quizera
causa da differen�a; eu fujo ao Damasceno que me espreita alli da porta
do camarote.

N�o ouvi nada do seguinte acto, nem as palavras dos actores, nem
as palmas do publico. Reclinado na cadeira, apanhava de memoria os
retalhos da conversa��o do Lobo Neves, refazia as maneiras delle, e
concluia que era muito melhor a nova situa�ao. Bastava-nos a Gamboa. A
frequencia da outra casa agu�aria as invejas. E rigorosamente podiamos
dispensar-nos de falar todos os dias; era at� melhor, mettia a saudade
de permeio nos amores. Ao demais, eu galgara os quarenta annos, e n�o
era nada, nem simples eleitor de parochia. Urgia fazer alguma cousa,
ainda por amor de Virgilia, que havia de ufanar-se quando visse luzir o
meu nome... Creio que nessa occasi�o houve grandes applausos, mas n�o
juro; eu pensava em outra cousa.

Multid�o, cujo amor cobicei at� � morte, era assim que eu me vingava �s
vezes de ti; deixava borborinhar em volta do meu corpo a gente humana,
sem a ouvir, como o Prometheu de Eschylo fazia aos seus verdugos.
Ah! tu cuidavas encadear-me ao rochedo da tua frivolidade, da tua
indifferen�a, ou da tua agita��o? Frageis cadeias, amiga minha; eu
rompia-as de um gesto de Gulliver. Vulgar cousa � ir considerar no
ermo. O voluptuoso, o exquisito, � insular-se o homem no meio de um
mar de gestos e palavras, de nervos e paix�es, decretar-se alheiado,
inaccessivel, ausente. O mais que podem dizer, quando elle torna a
si,--isto �, quando torna aos outros,--� que baixa do mundo da lua; mas
o mundo da lua, esse desv�o luminoso e recatado do cerebro, que outra
cousa � sen�o a affirma��o desdenhosa da nossa liberdade espiritual?
Vive Deus! eis um bom fecho de capitulo.




CAPITULO C


O caso provavel


Se esse mundo n�o fosse uma regi�o de espiritos desattentos, era
escusado lembrar ao leitor que eu s� affirmo certas leis, quando
as possuo deveras; em rela��o a outras restrinjo-me � admiss�o da
probabilidade. Um exemplo da segunda classe constitue o presente
capitulo, cuja leitura recommendo a todas as pessoas que amam o estudo
dos phenomenos sociaes. Segundo parece, e n�o � improvavel, existe
entre os factos da vida publica e os da vida particular uma certa ac��o
reciproca, regular, e talvez periodica,--ou, para usar de uma imagem,
ha alguma cousa semelhante �s mar�s da praia do Flamengo e de outras
egualmente marulhosas. Com effeito, quando a onda investe a praia,
alaga-a muitos palmos a dentro; mas essa mesma agua torna ao mar, com
variavel for�a, e vae engrossar a onda que ha de vir, e que ter� de
tornar como a primeira. Esta � a imagem; vejamos a applica��o.

Deixei dito n'outra pagina que o Lobo Neves, nomeado presidente de
provincia, recusou a nomea��o por motivo da data do decreto, que era
13; acto grave, cuja consequ�ncia foi separar do ministerio o marido de
Virgilia. Assim, o facto particular da ogerisa de um numero produziu o
phenomeno da dissidencia politica. Resta ver como, tempos depois, um
acto politico determinou na vida particular uma cessa��o de movimento.
N�o convindo ao methodo deste livro descrever immediatamente esse outro
phenomeno, limito-me a dizer por ora que o Lobo Neves, quatro mezes
depois de nosso encontro no theatro, reconciliou-se com o ministerio;
facto que o leitor n�o deve perder de vista, se quizer penetrar a
subtileza do meu pensamento.




CAPITULO CI


A revolu��o dalmata


Foi Virgilia quem me deu noticia da vira-volta politica do marido,
certa manh� de outubro, entre onze e meio dia; falou-me de reuni�es, de
conversas, de um discurso...

--De maneira que desta vez fica voc� baroneza, interrompi eu.

Ella derreou os cantos da boca, e moveu a cabe�a a um e outro lado;
mas esse gesto de indifferen�a era desmentido por alguma cousa menos
definivel, menos clara, uma express�o de gosto e de esperan�a. E n�o
sei por que imaginei que a carta imperial da nomea��o podia attra�l-a �
virtude, n�o digo pela virtude em si mesma, mas por gratid�o ao marido.
Que ella amava cordialmente a nobreza; e um dos maiores desgostos de
nossa vida foi o apparecimento de um certo pelintra de lega��o,--da
lega��o da Dalmacia, supponhamos,--o conde B. V., que a namorou durante
tres mezes.

Esse homem, vero fidalgo de ra�a, transtornara um pouco a cabe�a
de Virgilia, que, al�m do mais, possuia a voca��o diplomatica. N�o
chego a alcan�ar o que seria de mim, se n�o rebentasse na Dalmacia
uma revolu��o, que derrocou o governo e purificou as embaixadas. Foi
sangrenta a revolu��o, dolorosa, formidavel; os jornaes, a cada navio
que chegava da Europa, transcreviam os horrores, mediam o sangue,
contavam as cabe�as; toda a gente fremia de indigna��o e piedade...
Eu n�o; eu aben�oava interiormente essa tragedia, que me tir�ra uma
pedrinha do sapato. E depois a Dalmacia era t�o longe!




CAPITULO CII


De repouso


Mas este mesmo homem, que se alegrou com a partida do outro, praticou
dahi a tempos... N�o, n�o hei de contal-o nesta pagina; fique esse
capitulo para repouso do meu vexame. Uma ac��o grosseira, baixa, sem
explica��o possivel... Repito, n�o contarei o caso nesta pagina.




CAPITULO CIII


Distrac��o


--N�o, senhor doutor, isto n�o se faz. Perdoe-me, isto n�o se faz.

Tinha raz�o D. Placida. Nenhum cavalheiro chega uma hora mais tarde
ao logar em que o espera a sua dama. Entrei esbaforido; Virgilia
tinha ido embora. D. Placida contou-me que ella esper�ra muito, que
se irritara, que chorara, que jur�ra* votar-me ao desprezo, e outras
mais cousas que a nossa caseira dizia com lagrimas na voz, pedindo-me
que n�o desamparasse Yay�, que era ser muito injusto com uma mo�a que
me sacrificara tudo. Expliquei-lhe ent�o que um equivoco... E n�o era;
cuido que foi simples distra��o. Um dito, uma conversa, uma anecdota,
qualquer cousa; simples distrac��o.

Coitada de D. Placida! Estava afflicta deveras. Andava de um lado para
outro, abanando a cabe�a, suspirando com estrepito, espiando pela
rotula. Coitada de D. Placida! Com que arte conchegava as roupas,
bafejava as faces, acalentava as manhas do nosso amor! que imagina��o
fertil em tornar as horas mais apraziveis e breves! Flores, doces,--os
bons doces de outros dias,--e muito riso, muito affago, um riso e um
affago que cresciam com o tempo, como se ella quizesse fixar a nossa
aventura, ou restituir-lhe a primeira flor. Nada esquecia a nossa
confidente e caseira; nada, nem a mentira, porque a um e outro referia
suspiros e saudades que n�o presenci�ra; nada, nem a calumnia, porque
uma vez chegou a attribuir-me uma paix�o nova.--Voc� sabe que n�o
posso gostar de outra mulher, foi a minha resposta, quando Virgilia me
falou em semelhante cousa. E esta s� palavra, sem nenhum protesto ou
admoesta��o, dissipou o aleive-de D. Placida, que ficou triste.

--Est� bem, disse-lhe eu, depois de um quarto de hora; Virgilia hade
reconhecer que n�o tive culpa nenhuma... Quer voc� levar-lhe uma carta
agora mesmo?

--Ella hade estar bem triste, coitadinha! Olhe, eu n�o desejo a morte
de ninguem; mas, se o senhor doutor algum dia chegar a casar com Yay�,
ent�o sim, � que hade ver o anjo que ella �!

Lembra-me que desviei o rosto e baixei os olhos ao ch�o. Recommendo
este gesto �s pessoas que n�o tiverem uma palavra prompta para
responder, ou ainda �s que receiarem encarar a pupilla do outros olhos.
Em taes casos, alguns preferem recitar uma oitava dos _Lus�adas_,
outros adoptam o recurso de assobiar a _Norma_; eu atenho-me ao gesto
indicado; � mais simples, exige menos esfor�o.

Tres dias depois, estava tudo explicado. Supponho que Virgilia ficou
um pouco admirada, quando lhe pedi desculpa das lagrimas que derram�ra
naquella triste occasi�o; e n�o me lembra se interiormente as attribui
a D. Placida. Com effeito, podia acontecer que D. Placida chorasse, ao
vel-a desapontada, e, por um phenomeno da vis�o, as lagrimas que tinha
nos proprios olhos lhe parecessem cair dos olhos de Virgilia. Fosse
como fosse, tudo estava explicado, mas n�o perdoado, e menos ainda
esquecido. Virgilia dizia-me uma por��o de cousas duras, amea�ava-me
com a separa��o, emfim louvava o marido. Esse sim, era um homem digno,
muito superior a mim, delicado, um primor de cortezia e affei��o; �
o que ella dizia, emquanto eu, sentado, com os bra�os fincados nos
joelhos, olhava para o ch�o, onde uma mosca arrastava uma formiga que
lhe mordia o p�. Pobre mosca! pobre formiga!

--Mas voc� n�o diz nada, nada? perguntou Virgilia, parando deante de
mim.

--Que heide dizer? J� expliquei tudo; voc� teima em zangar-se; que
heide dizer? Sabe o que me parece? Parece-me que voc� est� enfastiada,
que se aborrece, que quer acabar...

--Justamente!

Foi dali p�r o chap�u, com a m�o tremula, raivosa...--Adeus, D.
Placida, bradou ella para dentro. Depois foi at� � porta, correu o
fecho, ia sair; agarrei-a pela cintura.--Est� bom, est� bom, disse-lhe.
Virgilia ainda forcejou por sair. Eu retive-a, pedi-lhe que ficasse,
que esquecesse; ella afastou-se da porta e foi cair no canap�.
Sentei-me ao p� della, disse-lhe muitas cousas meigas, outras humildes,
outras graciosas. N�o affirmo se os nossos labios chegaram � distancia
de um fio de cambraia ou ainda menos; � mat�ria controversa. Lembra-me,
sim, que na agita��o caiu um brinco de Virgilia, que eu inclinei-me a
apanhal-o, e que a mosca de ha pouco trepou ao brinco, levando sempre a
formiga no p�. Ent�o eu, com a delicadeza nativa de um homem do nosso
s�culo, puz na palma da m�o aquelle casal de mortificados; calculei
toda a distancia que ia da minha m�o ao planeta Saturno, e perguntei
a mim mesmo que interesse podia haver n'um episodio t�o mofino. Se
conclues dahi que eu era um barbaro, enganas-te, porque eu pedi um
grampo a Virgilia, afim de separar os dous insectos; mas a mosca
farejou a minha inten��o, abriu as azas e foi-se embora. Pobre mosca!
pobre formiga! E Deus viu que isto era bom, como se diz na Escriptura.




CAPITULO CIV


Era elle!


Restitui o grampo a Virgilia, que o repregou nos cabellos, e
preparou-se para sair. Era tarde; tinham dado tres horas. Tudo estava
esquecido e perdoado. D. Placida, que espreitava a occasi�o idonea para
a sa�da, fecha subitamente a janella e exclama:

--Virgem Nossa Senhora! ahi vem o marido de Yay�!

O momento de terror foi curto, mas completo. Virgilia fez-se da c�r*
das rendas do vestido, correu at� a porta da alcova; D. Placida, que
fech�ra a rotula, queria fechar tambem a porta de dentro; eu dispuz-me
a esperar o Lobo Neves. Esse curto instante passou. Virgilia tornou
a si, empurrou-me para a alcova, disse a D. Placida que voltasse �
janella; a confidente obedeceu.

Era elle. D. Placida abriu-lhe a porta com muitas exclama��es de
pasmo:--O senhor por aqui! honrando a casa de sua velha! Entre, fa�a
favor. Adivinhe quem est� c�... N�o tem que adivinhar: n�o veiu por
outra cousa... Appare�a, Yay�.

Virgilia, que estava a um canto, atirou-se ao marido. Eu espreitava-os
pelo buraco da fechadura. O Lobo Neves entrou lentamente, pallido,
frio, quieto, sem explos�o, sem arrebatamento, e circulou um olhar em
volta da sala.

--Que � isto? exclamou Virgilia. Voc� por aqui?

--Ia passando, vi D. Placida � janella, e vim comprimental-a.

--Muito obrigada, acudiu esta. E digam que as velhas n�o valem alguma
cousa... Olhae, gentes! Yay� parece estar com ciumes. E acariciando-a
muito:--Este anjinho � que nunca se esqueceu da velha Placida.
Coitadinha! � mesmo a cara da m�e... Sente-se, senhor doutor...

--N�o me demoro.

--Voc� vae para casa? disse Virgilia. Vamos juntos.

--Vou.

--D� c� o meu chap�u, D. Placida.

--Est� aqui.

D. Placida foi buscar um espelho, abriu-o deante della. Virgilia punha
o chap�u, atava as fitas, arranjava os cabellos, falando ao marido,
que n�o respondia nada. A nossa boa velha tagarellava de mais; era um
modo de disfar�ar as tremuras do corpo. Virgilia, dominado o primeiro
instante, torn�ra � posse de si mesma.

--Prompta! disse ella. Adeus, D. Placida; n�o se esque�a de apparecer,
ouviu? A outra prometteu que sim, e abriu-lhes a porta.




CAPITULO CV


Equivalencia das janellas


D. Placida fechou a porta e caiu n'uma cadeira. Eu deixei
immediatamente a alcova, e dei dous passos para sair � rua, com o fim
de arrancar Virgilia ao marido; foi o que disse, e em bem que o disse,
porque D. Placida deteve-me por um bra�o. Tempo houve em que eu cheguei
a suppor que n�o dissera aquillo sen�o para que ella me detivesse;
mas a simples reflex�o basta para mostrar que, depois dos dez minutos
da alcova, o gesto mais genuino e cordial n�o podia ser sen�o esse. E
isto por aquella famosa lei da equivalencia das janellas, que eu tive
a satisfa��o de descobrir e formular, no cap. LI. Era preciso arejar
a consciencia. A alcova foi uma janella fechada; eu abri outra com o
gesto de sair, e respirei.




CAPITULO CVI


Jogo perigoso


Respirei e sentei-me. D. Placida atroava a sala com exclama��es e
lastimas. Eu ouvia, sem lhe dizer cousa nenhuma; reflectia commigo se
n�o era melhor ter fechado Virgilia na alcova e ficado na sala; mas
adverti logo que seria peior; confirmaria a suspeita, e chegaria o
fogo � polvora e uma scena de sangue... Foi muito melhor assim. Mas
depois? que ia acontecer em casa de Virgilia? Matal-a-hia o marido?
espancal-a-hia? encerral-a-hia? expulsal-a-hia? Estas interroga��es
percorriam lentamente o meu cerebro, como os pontinhos e virgulas
escuras percorrem o campo visual dos olhos enfermos ou cansados. Iam e
vinham, com o seu aspecto secco e tragico, e eu n�o podia agarrar um
dellos e dizer: �s tu, tu e n�o outro.

De repente vejo um vulto negro; era D. Placida, que f�ra dentro,
enfi�ra a mantilha, e vinha offerecer-se-me para ir � casa do Lobo
Neves. Ponderei-lhe que era arriscado, porque elle desconfiaria da
visita t�o proxima.

--Socegue, interrompeu ella; eu saberei arranjar as cousas. Se elle
estiver em casa n�o entro.

Saiu; eu fiquei a ruminar o successo e as consequencias possiveis. Ao
cabo, parecia-me jogar um jogo perigoso, e perguntava a mim mesmo se
n�o era tempo de levantar e espairecer, como um parceiro do _whist._
E ent�o senti-me tomado de uma saudade do casamento, de um desejo de
canalizar a vida. Porque n�o? Meu cora��o tinha ainda que explorar;
n�o me sentia incapaz de um amor casto, severo e puro. Na verdade,
as aventuras s�o a parte torrencial e vertiginosa da vida, isto �, a
excep��o; eu estava enfarado dellas; n�o sei at� se me pungia algum
remorso. Mal pensei naquillo, deixei-me ir atraz da imagina��o; vi-me
logo casado, ao p� de uma mulher adoravel, deante de um _baby_, que
dormia no rega�o da ama, todos n�s no fundo do uma chacara sombria
e verde, a espiarmos atravez das arvores uma nesga do ceu azul,
extremamente azul...




CAPITULO CVII


Bilhete

    �N�o houve nada, mas elle suspeita alguma cousa; est� muito
    serio e n�o fala; agora saiu. Sorriu uma vez somente, para
    nhonh�, depois de o fitar muito tempo, carrancudo. N�o me
    tratou mal nem bem. N�o sei o que vae acontecer; Deus queira
    que isto passe. Muita cautela, por ora, muita cautela.�




CAPITULO CVIII


Que se n�o entende


Eis ahi o drama, eis ahi a ponta da orelha tragica de Shakespeare. Esse
retalhinho de papel, garatujado em partes, machucado das m�os, era um
documento de analyse, que eu n�o farei neste capitulo, nem no outro,
nem talvez em todo o resto do livro. Poderia eu tirar ao leitor o gosto
de notar por si mesmo a frieza, a perspicacia e o animo dessas poucas
linhas tra�adas � pressa; e por traz dellas a tempestade de outro
cerebro, a raiva dissimulada, o desespero que se constrange e medita,
por que tem de resolver-se na lama, ou no sangue, ou nas lagrymas?

Quanto a mim, se vos disser que li o bilhete tres ou quatro vezes,
naquelle dia, accreditai-o, que � verdade; se vos disser mais que o
reli no dia seguinte, antes e depois do almo�o, podeis crel-o, � a
realidade pura. Mas se vos disser a commo��o que tive, duvidai um pouco
da asser��o, e n�o a acceiteis sem provas. Nem ent�o, nem ainda agora
cheguei a discernir o que experimentei. Era medo, e n�o era medo;
era d� e n�o era d�; era vaidade e n�o era vaidade; emfim, era amor
sem amor, isto �, sem delirio; e tudo isso dava uma combina��o ass�s
complexa e vaga, uma cousa que n�o podereis entender, como eu n�o
entendi. Supponhamos que n�o disse nada.




CAPITULO CIX


O philosopho


Sabido que reli a carta, antes e depois do almo�o, sabido fica que
almocei, e s� resta dizer que essa refei��o foi das mais parcas
da minha vida: um ovo, uma fatia de p�o, uma chicara de ch�. N�o
me esqueceu esta circumstancia minima; no meio de tanta cousa
importante obliterada escapou esse almo�o. A raz�o principal poderia
ser justamente o meu desastre; mas n�o foi; a principal raz�o foi
a reflex�o que me fez o Quincas Borba, cuja visita recebi naquelle
dia. Disse-me elle que a frugalidade n�o era necessaria para entender
o Humanitismo, � menos ainda pratical-o; que esta philosophia
acommodava-se facilmente com os prazeres da vida, inclusive a mesa,
o espectaculo e os amores; e que, ao contrario, a frugalidade podia
indicar certa tendencia para o ascetismo, o qual era a express�o
acabada da tolice humana.

--Veja S. Jo�o, continuou elle; mantinha-se de gafanhotos, no deserto,
em vez de engordar tranquillamente na cidade, e fazer emmagrecer o
pharisaismo na synagoga.

Deus me livre de contar a historia do Quincas Borba, que ali�s ouvi
toda naquella triste occasi�o, uma historia longa, complicada,
mas interessante. E se n�o conto a historia, dispenso-me outrosim
de descrever-lhe a figura, ali�s mui diversa da que me appareceu
no Passeio Publico. Calo-me; digo somente que se o principal
caracter�stico do homem n�o s�o as fei��es, mas o vestu�rio, elle
n�o era o Quincas Borba; era um desembargador sem beca, um general
sem farda, um negociante sem _deficit._ Notei-lhe a perfei��o da
sobrecasaca, a alvura da camisa, o aceio das botas. A mesma voz,
roufenha outr'ora, parecia restituida � primitiva sonoridade. Quanto
� gesticula��o, sem que houvesse perdido a viveza de outro tempo, n�o
tinha j� a desordem, sujeitava-se a um certo methodo. Mas eu n�o quero
descrevel-o. Se falasse, por exemplo, no bot�o de ouro que trazia ao
peito, e na qualidade do couro das botas, iniciaria uma descrip��o,
que omitto por brevidade. Contentem-se de saber que as botas eram de
verniz. Saibam mais que elle herd�ra alguns pares de contos de r�is de
um velho tio de Barbacena.

Meu espirito, (permittam-me aqui uma compara��o de crian�a!) meu
espirito era n'aquella occasi�o uma especie de peteca. A narra��o do
Quincas Borba dava-lhe uma palmada, elle subia; quando ia a cair,
o bilhete de Virgilia dava-lhe outra palmada, e elle era de novo
arremessado aos ares; descia, e o episodio do Passeio Publico recebia-o
com outra palmada, egualmente rija e efficaz. Cuido que n�o nasci
para situa��es complexas. Esse puxar e empuxar de cousas oppostas,
desequilibrava-me; tinha vontade de embrulhar o Quincas Borba, o Lobo
Neves e o bilhete de Virgilia na mesma philosophia, e mandal-os de
presente a Aristoteles. E, comtudo, era instructiva a narra��o do nosso
philosopho; admirava-lhe sobretudo o talento de observa��o com que
descrevia a gesta��o e o crescimento do vicio, as luctas interiores, as
capitula��es vagarosas, o uso da lama.

--Olhe, observou elle; a primeira noite que passei, na escada de S.
Francisco, dormi-a inteira, como se fosse a mais fina pluma. Porque?
Porque fui gradualmente da cama de esteira ao catre de pau, do quarto
proprio ao corpo da guarda, do corpo da guarda ao xadrez, do xadrez �
rua...

Quiz expor-me finalmente a philosophia; eu pedi-lhe que n�o.--Estou
assaz preocupado hoje e n�o poderia attendel-o; venha depois; estou
sempre em casa. O Quincas Borba sorriu de um modo malicioso; talvez
soubesse da minha aventura, mas n�o accrescentou nada. S� me disse
estas ultimas palavras � porta:

--Venha para o Humanitismo; elle � o grande rega�o dos espiritos, o
mar eterno em que mergulhei para arrancar de l� a verdade. Os gregos
faziam-na sair de um po�o. Que concep��o mesquinha! Um po�o! Mas
� por isso mesmo que nunca atinaram com ella. Gregos, sub-gregos,
anti-gregos, toda a longa serie dos homens tem-se debru�ado sobre
o po�o, para ver sair a verdade, que n�o est� la. Gastaram cordas e
ca�ambas; alguns mais afoutos desceram ao fundo e trouxeram um sapo. Eu
fui directamente ao mar. Venha para o Humanitismo.




CAPITULO CX


31


Uma semana depois, o Lobo Neves foi nomeado presidente de provincia.
Agarrei-me � esperan�a da recusa, se o decreto viesse outra vez datado
de 13; trouxe, por�m, a data de 31; e esta simples transposi��o de
algarismos eliminou delles a substancia diabolica. Que profundas que
s�o as molas da vida!




CAPITULO CXI


O muro


N�o sendo meu costume dissimular ou esconder nada, contarei nesta
pagina o caso do muro. Elles estavam prestes a embarcar. Entrando
em casa de D. Placida, vi um papelinho dobrado sobre a mesa; era um
bilhete de Virgilia; dizia que me esperava � noite, na chacara, sem
falta. E conclu�a: �O muro � baixo do lado do becco.�

Fiz um gesto de desagrado. A carta pareceu-me descommunalmente
audaciosa, mal pensada e at� ridicula. N�o era s� convidar o escandalo,
era convidal-o de parceria com a risota. Imaginei-me a saltar o muro,
embora baixo e do lado do becco; e, quando ia a galgal-o, via-me
agarrado por um pedestre de policia, que me levava ao corpo da guarda.
O muro � baixo! E que tinha que fosse baixo? Naturalmente Virgilia n�o
soube o que fez; era possivel que j� estivesse arrependida. Olhei para
o papel, um peda�o de papel amarrotado, mas inflexivel. Tive comich�es
de o rasgar, em trinta mil peda�os, e atiral-os ao vento, como o ultimo
despojo da minha aventura; mas recuei a tempo; o amor-proprio, o vexame
da fuga, a id�a do medo... N�o havia remedio sen�o ir.

--Diga-lhe que vou.

--Aonde? perguntou D. Placida.

--Onde ella disse que me espera.

--N�o me disse nada.

--Neste papel.

D. Placida arregalou os olhos:--Mas esse papel, achei-o hoje de manh�,
nesta sua gaveta, e pensei que...

Tive uma sensa��o exquisita. Reli o papel, mirei-o, remirei-o; era, na
verdade, um antigo bilhete de Virgilia, recebido no come�o dos nossos
amores, uma certa entrevista na chacara, que me levou effectivamente a
saltar o muro, um muro baixo e discreto. Guardei o papel e... Tive uma
sensa��o exquisita.




CAPITULO CXII


A opini�o


Mas estava escripto que esse dia devia ser o dos lances dubios. Poucas
horas depois, encontrava-me eu com o Lobo Neves, na rua do Ouvidor,
e falavamos da presidencia e da politica. Elle aproveitou o primeiro
conhecido que nos passou � ilharga, e deixou-me, depois de muitos
comprimentos. Lembra-me que estava retraindo, mas de um retrahimento
que forcejava por dissimular. Pareceu-me ent�o (e pe�o perd�o �
critica, se este meu juizo f�r temer�rio!) pareceu-me que elle tinha
medo--n�o medo de mim, nem de si, nem do codigo, nem da consciencia;
tinha medo da opini�o. Suppuz que esse tribunal anonymo e invisivel,
em que cada membro accusa e julga, era o limite posto � vontade do
Lobo Neves. Talvez que elle j� n�o amasse a mulher; e, assim, p�de ser
que o cora��o fosse estranho � indulgencia dos seus ultimos actos.
Cuido (e de novo insto pela boa vontade da critica!) cuido que elle
estaria prompto a separar-se da mulher, como o leitor se ter� separado
de muitas rela��es pessoaes; mas a opini�o, essa opini�o que lhe
arrastaria a vida por todas as ruas, que abriria minucioso inquerito
�cerca do caso, que colligiria uma a uma todas as circumstancias,
antecedencias, induc��es, provas, que as relataria na palestra das
chacaras desoccupadas, essa terrivel opini�o, t�o curiosa das alcovas,
obstou � dispers�o da familia. Ao mesmo tempo tornou impossivel o
desfor�o, que seria a divulga��o. Elle n�o podia mostrar-se resentido
commigo, sem egualmente buscar a separa��o conjugal; e teve ent�o
de simular a mesma ignorancia de outr'ora, e, por deduc��o, eguaes
sentimentos.

Que lhe custasse creio; naquelles dias, principalmente, vi-o de modo
que devia custar-lhe muito. Mas o tempo (e � outro ponto em que eu
espero a indulgencia dos homens pensadores!), o tempo calleja a
sensibilidade, e oblitera a memoria das cousas; era de suppor que os
annos lhe despontassem os espinhos, que a distancia dos factos apagasse
os respectivos contornos, que uma sombra de duvida retrospectiva
cobrisse a nudez da realidade; emfim, que a opini�o se occupasse um
pouco com outras aventuras. O filho, crescendo, buscaria satisfazer
as ambi��es do pae; seria o herdeiro de todos os seus affectos. Isso,
e a actividade externa, e o prestigio publico, e a velhice depois, a
doen�a, o declinio, a morte, um responso, uma noticia biographica, e
estava fechado o livro da vida, sem nenhuma pagina de sangue.




CAPITULO CXIII


A solda


A conclus�o, se ha alguma no capitulo anterior, � que a opini�o �
uma b�a solda das institui��es domesticas. N�o � impossivel que eu
desenvolva este pensamento, antes de acabar o livro; mas tambem n�o �
impossivel que o deixe como est�. De um ou de outro modo, � uma b�a
solda a opini�o, e tanto na ordem domestica, como na politica. Alguns
metaphysicos biliosos tem chegado ao extremo de a darem como simples
producto da gente chocha ou mediocre; mas � evidente que, ainda quando
um conceito t�o extremado n�o trouxesse em si mesmo a resposta, bastava
considerar os effeitos salutares da opini�o, para concluir que ella � a
obra superfina da flor dos homens, a saber, do maior numero.




CAPITULO CXIV


Fim de um dialogo

--Sim, � amanh�. Voc� vae a bordo?

--Est� douda? � imposs�vel.

--Ent�o, adeus!

--Adeus!

--N�o se esque�a de D. Placida. V� vel-a algumas vezes. Coitada! Foi
hontem despedir-se de n�s; chorou muito, disse que eu n�o a veria
mais... � uma boa creatura, n�o?

--Certamente.

--Se tivermos de escrever, ella receber� as cartas. Agora at� daqui a...

--Talvez dous annos?

--Qual! elle diz que � s� at� fazer as elei��es.

--Sim? ent�o at� breve. Olhe que est�o olhando para n�s.

--Quem?

--Alli do soph�. Separemo-nos.

--Custa-me muito.

--Mas � preciso; adeus, Virgilia!

--At� breve. Adeus!




CAPITULO CXV


O almo�o


N�o a vi partir; mas � hora marcada senti alguma cousa que n�o era dor
nem prazer, uma cousa mixta, allivio e saudade, tudo misturado, em
eguaes doses. N�o se irrite o leitor com esta confiss�o. Eu bem sei
que, para titillar-lhe os nervos da fantasia, devia padecer um grande
desespero, derramar algumas lagrimas, e n�o almo�ar. Seria romanesco;
mas n�o seria biographico. A realidade pura � que eu almocei, como nos
demais dias, acudindo ao cora��o com as lembran�as da minha aventura, e
ao estomago com os acepipes de Mr. Pruddon...

...Velhos do meu tempo, lembrai-vos desse mestre cosinheiro do hotel
Pharoux, um sujeito que, segundo dizia o dono da casa, havia servido
nos famosos V�ry e V�four, de Paris, e mais nos palacios do conde
Mol� e do duque de la Rochefoucauld? Era insigne. Entrou no Rio de
Janeiro com a polka... A polka, Mr. Pruddon, o Tivoli, o baile dos
estrangeiros, o Casino, eis algumas das melhores recorda��es daquelle
tempo; mas sobretudo os acepipes do mestre eram deliciosos.

Eram, e naquella manh� parece que o diabo do homem adivinh�ra a nossa
catastrophe. J�mais o engenho e a arte lhe foram t�o propicios. Que
requinte de temperos! que tenrura de carnes! que rebuscado de f�rmas!
Comia-se com a bocca, com os olhos, com o nariz. N�o guardei a conta
desse dia; do contrario, � mui provavel que a deixasse nestas paginas.
Sei que foi cara. Ai dor! era-me preciso enterrar magnificamente os
meus amores. Elles la iam, mar em f�ra, no espa�o e no tempo, e eu
ficava-me alli n'uma ponta de mesa, com os meus quarenta e tantos
annos, t�o vadios e t�o vazios; ficava-me para os n�o ver nunca mais,
porque ella poderia tornar e tornou, mas o effluvio da manh� quem � que
o pediu ao crep�sculo da tarde?




CAPITULO CXVI


Philosophia das folhas velhas


Fiquei t�o triste com o fim do ultimo capitulo que estava capaz de n�o
escrever este, descan�ar um pouco, purgar o espirito da melancolia que
o empacha, e continuar depois. Mas n�o, n�o quero perder tempo.

A partida de Virgilia deu-me uma amostra da viuvez. Nos primeiros
dias metti-me em casa, a fisgar moscas, como Domiciano, se n�o mente
o Suetonio, mas a fisgal-as de um modo particular: com os olhos.
Fisgava-as uma a uma, no fundo de uma sala grande, estirado na rede,
com um livro aberto entre as m�os. Era tudo: saudades, ambi��es, um
pouco de tedio, e muito devaneio solto. Meu tio conego morreu nesse
intervallo; item, dous primos; e eu n�o me dei por abalado; levei-os ao
cemiterio, como quem leva dinheiro a um banco. Que digo? como quem leva
cartas ao correio: sellei as cartas, metti-as na caixinha, e deixei ao
carteiro o cuidado de as entregar em m�o propria. Foi tambem per esse
tempo que nasceu minha sobrinha Venancia, filha do Cotrim. Morriam uns,
nasciam outros: eu continuava �s moscas.

Outras vezes agitava-me. Ia �s gavetas, entornava as cartas antigas,
dos amigos, dos parentes, das namoradas, (at� as de Marcella), e
abria-as todas, lia-as uma a uma, e recompunha o preterito... Leitor
ignaro, se n�o guardas as cartas da juventude, n�o conhecer�s um dia
a philosophia das folhas velhas, n�o gostar�s o prazer de ver-te, ao
longe, na penumbra, com um chap�u de tres bicos, botas de sete leguas
e longas barbas assyrias, a bailar ao som de uma gaita anacreontica.
Guarda as tuas cartas da juventude!

Ou, se te n�o apraz o chap�u de tres bicos, empregarei a locu��o de um
velho marujo, familiar da casa do Cotrim; direi que, se guardares as
cartas da juventude, achar�s occasi�o de �cantar uma saudade.� Parece
que os nossos marujos d�o este nome �s cantigas de terra, entoadas no
alto mar. Como express�o poetica, � o que se p�de exigir mais triste.




CAPITULO CXVII


O Humanitismo


Duas for�as, por�m, al�m de uma terceira, compelliam-me a tornar � vida
agitada do costume: Sabina e o Quincas Borba. Minha irm� encaminhou a
candidatura conjugal de Nh�-lol� de um modo verdadeiramente impetuoso.
Quando dei por mim estava com a mo�a quasi nos bra�os. Quanto ao
Quincas Borba, expoz-me emfim o Humanitismo, systema de philosophia
destinado a arruinar todos os demais systemas.

--Humanitas, dizia elle, o principio das cousas, n�o � outro sen�o o
mesmo homem repartido por todos os homens. Conta tres phases Humanitas;
a _statica_, anterior a toda a crea��o; a _expansiva_, come�o das
cousas; a _dispersiva_, apparecimento do homem; e contar� mais uma,
a _contractiva_, absorp��o do homem e das cousas. A _expans�o_,
iniciando o universo, suggeriu a Humanitas o desejo de o gozar, e dahi
a _dispers�o_, que n�o � mais do que a multiplica��o personificada da
substancia original.

Como me n�o apparecesse assaz clara esta exposi��o, o Quincas Borba
desenvolveu-a de um modo profundo, fazendo notar as grandes linhas
do systema. Explicou-me que, por um lado, o Humanitismo ligava-se ao
Brahmanismo, a saber, na distribui��o dos homens pelas differentes
partes do corpo de Humanitas; mas aquillo que na religi�o indiana
tinha apenas uma estreita significa��o theologica e politica, era no
Humanitismo a grande lei do valor pessoal. Assim, descender do peito
ou dos rins de Humanitas, isto �, ser _um forte_, n�o era o mesmo que
descender dos cabellos ou da ponta do nariz. Dahi a necessidade de
cultivar e temperar o musculo. Hercules ou Herakles n�o foi sen�o um
symbolo antecipado do Humanitismo. Neste ponto o Quincas Borba ponderou
que o paganismo poderia ter chegado � verdade, se se n�o houvesse
amesquinhado com a parte galante dos seus mythos. Nada disso acontecer�
com o Humanitismo. Nesta egreja nova n�o ha aventuras faceis, nem
quedas, nem tristezas, nem alegrias pueris. O amor, por exemplo, � um
sacerdocio, a reproduc��o um ritual. Como a vida � o maior beneficio
do universo, e n�o ha mendigo que n�o prefira a miseria � morte (o
que � um delicioso influxo de Humanitas), segue-se que a transmiss�o
da vida, longe de ser uma occasi�o de galanteio, � a hora suprema da
missa espiritual. Porquanto, verdadeiramente ha s� uma desgra�a: � n�o
nascer.

--Imagina, por exemplo, que eu n�o tinha nascido, continuou o Quincas
Borba; � positivo que n�o teria agora o prazer de conversar comtigo,
comer esta batata, ir ao theatro, e para tudo dizer n'uma s� palavra:
viver. Nota que eu n�o fa�o do homem um simples vehiculo de Humanitas;
n�o, elle � ao mesmo tempo vehiculo, cocheiro e passageiro; elle �
o proprio Humanitas reduzido; dahi a necessidade de adorar-se a si
proprio. Queres uma prova da superioridade do meu systema? Contempla
a inveja. N�o ha moralista grego ou turco, christ�o ou mussulmano,
que n�o troveje contra o sentimento da inveja. O accordo � universal,
desde os campos da Idum�a at� o alto da Tijuca. Ora bem; abre m�o dos
velhos preconceitos, esquece as rhetoricas rafadas, e estuda a inveja,
esse sentimento t�o subtil e t�o nobre. Sendo cada homem uma reduc��o
de Humanitas, � claro que nenhum homem � fundamentalmente opposto a
outro homem, quaesquer que sejam as apparencias contrarias. Assim, por
exemplo, o algoz que executa o condemnado p�de excitar o v�o clamor
dos poetas; mas substancialmente � Humanitas que corrige em Humanitas
uma infrac��o da lei de Humanitas. O mesmo direi do individuo que
estripa a outro; � uma manifesta��o da for�a de Humanitas. Nada obsta
(e ha exemplos) que elle seja egualmente estripado. Si entendeste
bem, facilmente comprehender�s que a inveja n�o � sen�o uma admira��o
que luta, e sendo a luta a grande func��o do genero humano, todos os
sentimentos bellicosos s�o os mais adequados � sua felicidade. Dahi vem
que a inveja � uma virtude.

Para que negal-o? eu estava estupefacto. A clareza da exposi��o, a
logica dos principios, o rigor das consequencias, tudo isso parecia
superiormente grande, e foi-me preciso suspender a conversa por alguns
minutos, em quanto digeria a philosophia nova. O Quincas Borba mal
podia encobrir a satisfa��o do triumpho. Tinha uma aza de frango no
prato, e trincava-a com philosophica serenidade. Eu fiz-lhe ainda
alguma objec��es, mas t�o frouxas, que elle n�o gastou muito tempo em
destruil-as.

--Para entender bem o meu systema, concluiu elle, importa n�o esquecer
nunca o principio universal, repartido e resumido em cada homem. Olha:
a guerra, que parece uma calamidade, � uma opera��o conveniente,
como se dissessemos o estalar dos dedos de Humanitas; a fome (e elle
chupava philosophicamente a aza do frango), a fome � uma prova a que
Humanitas submette a propria viscera. Mas eu n�o quero outro documento
da sublimidade do meu systema, sen�o este mesmo frango. Nutriu-se de
milho, que foi plantado por um africano, supponhamos, importado de
Angola. Nasceu esse africano, cresceu, foi vendido um navio o trouxe,
um navio construido de madeira cortada no matto por dez ou doze
homens, levado por velas, que oito ou dez homens teceram, sem contar
a cordoalha e outras partes do apparelho nautico. Assim, este frango,
que eu almocei agora mesmo, � o resultado de uma multid�o de esfor�os e
lutas, executados com o unico fim de dar mate ao meu appetite.

Entre o queijo e o caf�, demonstrou-me o Quincas Borba que o seu
systema era a destrui��o da d�r. A d�r, segundo o Humanitismo, � uma
pura illus�o. Quando a crian�a � amea�ada por um p�u, antes mesmo de
ter sido espancada, fecha os olhos e treme; essa _predisposi��o_ � que
constitue a base da illus�o humana, herdada e transmittida. N�o basta
certamente a adop��o do systema para acabar logo com a d�r; mas �
indispensavel; o resto � a natural evolu��o das cousas. Uma vez que o
homem se compenetre bem de que elle � o proprio Humanitas, n�o tem mais
do que remontar o pensamento � substancia original para obstar qualquer
sensa��o dolorosa. A evolu��o por�m � t�o profunda, que mal se lhe
podem assignar alguns milhares de annos.

O Quincas Borba leu-me dahi a dias a sua grande obra. Eram quatro
volumes manuscriptos, de cem paginas cada um, com letra miuda e
cita��es latinas. O ultimo volume compunha-se de um tratado politico,
fundado no Humanitismo; era talvez a parte mais enfadonha do systema,
posto que concebida com um formidavel rigor de logica. Reorganisada a
sociedade pelo methodo delle, nem por isso ficavam eliminadas a guerra,
a insurrei��o, o simples murro, a facada anonyma, a miseria, a fome, as
doen�as; mas sendo esses suppostos flagellos verdadeiros equivocos do
entendimento, porque n�o passariam de movimentos externos da substancia
interior, destinados a n�o influir sobre o homem, sen�o como simples
quebra da monotonia universal, claro estava que a sua existencia n�o
impediria a felicidade humana. Mas ainda quando taes flagellos (o que
era radicalmente falso) correspondessem no futuro � concep��o acanhada
de antigos tempos, nem por isso ficava destruido o systema, e por dous
motivos: 1.� porque sendo Humanitas a substancia creadora e absoluta,
cada individuo deveria achar a maior delicia do mundo em sacrificar-se
ao principio de que descende; 2.� porque, ainda assim, n�o diminuiria o
poder espiritual do homem sobre a terra, inventada unicamente para seu
recreio delle, como as estrellas, as brisas, as tamaras e o rhuibarbo.
Pangloss, dizia-me elle ao fechar o livro, n�o era t�o tolo como o
pintou Voltaire.




CAPITULO CXVIII


A terceira for�a


A terceira for�a (Veja a primeira linha do capitulo passado) a
terceira for�a que me chamava ao bulicio era a impaciencia de luzir,
e, sobretudo, a incapacidade de viver s�. A multid�o attrahia-me, o
applauso namorava-me, a gala, o tumulto, o rufo, eram outros tantos
objectos de seduc��o. Se a id�a do emplasto me tem apparecido nesse
tempo, quem sabe? n�o teria morrido logo e estaria celebre. Mas o
emplasto n�o veiu. Veiu o desejo de agitar-me em alguma cousa, com
alguma cousa e por alguma cousa. _Tout notre mal vient de ne pouvoir
�tre seuls._ Esta maxima de la Bruy�re sempre me pareceu um grande
disparate. N�o ha duvida que a sociabilidade � a primeira virtude dos
homens, a segunda � a curiosidade, a terceira � a pontualidade dos
pagamentos, a quarta o valor militar, e assim por diante.




CAPITULO CXIX


Parenthesis


(Haver� uma critica t�o perversa que possa attribuir a minha opini�o
sobre la Bruy�re � inveja das suas maximas? Eu aparo desde j� esse
golpe, transcrevendo algumas das que compuz por aquelle tempo, e
rasguei logo depois, por n�o me parecerem dignas do pr�lo. Fil-as n'um
periodo em que a flor amarella do capitulo XXV torn�ra a abrir; eram
bocejos de enfado. E se n�o vejam:

    Supporta-se com paci�ncia a colica do proximo.

    Matamos o tempo; o tempo nos enterra.

    Um cocheiro philosopho costumava dizer que o gosto da
    carruagem seria diminuto, se todos andassem de carruagem.

    Cr� em ti; mas nem sempre duvides dos outros.

    N�o se comprehende que um botocudo fure o bei�o para
    enfeital-o com um peda�o de p�u. Esta reflex�o � de um
    joalheiro.

    N�o te irrites se te pagarem mal um beneficio: antes cair das
    nuvens, que de um terceiro andar.)




CAPITULO CXX


Compelle intrare


--N�o, senhor, agora quer voc� queira, quer n�o, ha de casar, disse-me
Sabina. Que bello futuro! Um solteir�o sem filhos.

Sem filhos! Eis o dardo secreto. A id�a de ter filhos deu-me um
sobresalto; percorreu-me outra vez o fluido mysterioso. Sim, cumpria
ser pae. A vida celibata podia ter certas vantagens proprias, mas
seriam tenues, e compradas a troco da solid�o. Sem filhos! N�o;
impossivel. Dispuz-me a aceitar tudo, ainda mesmo a allian�a do
Damasceno. Sem filhos! Como j� ent�o depositasse grande confian�a no
Quincas Borba, fui ter com elle e expuz-lhe os movimentos internos da
minha paternidade. O philosopho ouviu-me com alvoro�o; declarou-me que
Humanitas se agitava em meu seio; animou-me ao casamento; ponderou
que eram mais alguns convivas que batiam � porta, etc. _Compelle
intrare_, como dizia Jesus. E n�o me deixou sem provar que o apologo
evangelico n�o era mais do que um prenuncio do Humanitismo, erradamente
interpretado pelos padres.




CAPITULO CXXI


Morro abaixo


No fim de tres mezes, ia tudo � maravilha. O fluido, Sabina, os olhos
da mo�a, os desejos do pae, eram outros tantos impulsos que me levavam
ao matrimonio. A lembran�a de Virgilia apparecia de quando em quando,
� porta; e com ella um diabo negro, que me mettia � cara um espelho,
no qual eu via ao longe Virgilia desfeita em lagrimas; mas outro diabo
vinha, c�r de rosa, com outro espelho, em que se reflectia a figura de
Nh�-lol�, terna, luminosa, angelica.

N�o falo dos annos. Eu n�o os sentia; acrescentarei at� que os deit�ra
f�ra, certo domingo, em que fui � missa na capella do Livramento. Como
o Damasceno morava nos Cajueiros, eu acompanhava-os muitas vezes �
missa. O morro estava ainda n� de habita��es, salvo o velho palacete do
alto, onde era a capella. Pois um domingo, ao descer com Nh�-lol� pelo
bra�o, n�o sei que phenomeno se deu que fui deixando aqui dous annos,
alli quatro, logo adiante cinco, de maneira que, quando cheguei abaixo,
estava com vinte annos apenas, t�o l�pidos como elles tinham sido.

Agora, se querem saber em que circumstancias se deu o phenomeno,
basta-lhes ler este capitulo at� o fim. Vinhamos da missa, ella, o pae
e eu. No meio do morro ach�mos um grupo de homens. O Damasceno, que
vinha ao p� de n�s, percebeu o que era e adiantou-se alvoro�ado; n�s
fomos atraz delle. E vimos isto: homens de todas as edades, tamanhos e
c�res, uns em mangas de camisa, outros de jaqueta, outros mettidos em
sobrecasacas esfrangalhadas; attitudes diversas, uns de c�caras, outros
com as m�os apoiadas nos joelhos, estes sentados em pedras, aquelles
encostados ao muro; e todos com os olhos fixos no centro, e as almas
debru�adas das pupillas.

--Que �? perguntou-me Nh�-lol�.

Fiz-lhe signal que se calasse; abri subtilmente caminho, e todos
me foram cedendo espa�o, sem que positivamente ninguem me visse. O
centro tinha-lhes atado os olhos. Era uma briga de gallos. Vi os dous
contendores, dous gallos de espor�o agudo, olho de fogo e bico afiado.
Ambos agitavam as cristas em sangue; o peito de um e de outro estava
desplumado e rubro; invadia-os o can�asso. Mas lutavam ainda assim,
olhos fitos nos olhos, bico abaixo, bico acima, golpe deste, golpe
daquelle, vibrantes e raivosos. O Damasceno n�o sabia mais de nada; o
espectaculo eliminou para elle todo o universo. Em v�o lhe disse que
era tempo de descer: elle n�o respondia, n�o ouvia, concentrara-se no
duello. A briga de gallos era uma de suas paix�es.

Foi nessa occasi�o que Nh�-lol� me puxou brandamente pelo bra�o,
dizendo que nos fossemos embora. Aceitei o conselho e vim com ella por
alli abaixo. J� disse que o morro era ent�o deshabitado; disse-lhes
tambem que vinhamos da missa, e n�o lhes tendo dito que chovia, era
claro que fazia bom tempo, um sol delicioso. E forte. T�o forte que eu
abri logo o guarda-sol, segurei-o pelo centro do cabo, e inclinei-o por
modo que ajuntei uma pagina � philosophia do Quincas Borba: Humanitas
osculou Humanitas... Foi assim que os annos me vieram caindo pelo morro
abaixo.

Ao sop� detivemo-nos alguns minutos; � espera do Damasceno; elle
veiu dahi a pouco, rodeado dos apostadores, a commentar com elles a
briga. Um destes, thesoureiro das apostas, distribuia um velho ma�o
de notas de dez tost�es, que os triumphadores recebiam duplamente
alegres. Quanto aos gallos vinham sobra�ados pelo respectivo dono. Um
delles trazia a crista t�o comida e ensanguentada, que vi logo nelle o
vencido; mas era engano,--o vencido era o outro, que n�o trazia crista
nenhuma. Ambos tinham o bico aberto, respirando a custo, esfalfados.
Os apostadores, ao contrario, vinham alegres, sem embargo das fortes
commo��es da luta; biographavam os contendores, relembravam as proezas
de ambos. Eu fui andando, vexado; Nh�-lol�, vexadissima.




CAPITULO CXXII


Uma inten��o mui fina


O que vexava a Nh�-lol� era o pae. A facilidade com que elle se mett�ra
com os apostadores punha em relevo antigos costumes e affinidades
sociaes; e Nh�-lol� cheg�ra a temer que tal sogro me parecesse indigno.
Era notavel a differen�a que ella fazia de si mesma; estudava-se e
estudava-me. A vida elegante e polida attrahia-a, principalmente
porque lhe parecia o meio mais seguro de ajustar as nossas pessoas.
Nh�-lol� observava, imitava, adivinhava; ao mesmo tempo dava-se ao
esfor�o de mascarar a inferioridade da familia. Naquelle dia, por�m,
a manifesta��o do pae foi tamanha que a entristeceu grandemente. Eu
busquei ent�o divertil-a do assumpto, dizendo-lhe muitas chan�as e
motes de bom tom; v�os esfor�os, que n�o a alegravam mais. Era t�o
profundo o abatimento, t�o expressivo o desanimo, que eu cheguei a
attribuir a Nh�-lol� a inten��o positiva de separar, no meu espirito,
a sua causa da causa do pae. Este sentimento pareceu-me de grande
eleva��o; era uma affinidade mais entre n�s.

--N�o ha remedio, disse eu commigo, vou arrancar esta flor a este
pantano.




CAPITULO CXXIII


O verdadeiro Cotrim


N�o obstante os meus quarenta e tantos annos, como eu amasse a harmonia
da familia, entendi n�o tratar o casamento sem primeiro falar ao
Cotrim. Elle ouviu-me e respondeu-me seriamente que n�o tinha opini�o
em negocio de parentes seus. Podiam suppor-lhe algum interesse, se
acaso louvasse, as raras prendas de Nh�-lol�; por isso calava-se. Mais:
estava certo de que a sobrinha nutria por mim verdadeira paix�o, mas se
ella o consultasse, o seu conselho seria negativo. N�o era levado por
nenhum odio; apreciava as minhas b�as qualidades,--n�o se fartava de
as elogiar, como era de justi�a; e pelo que respeita a Nh�-lol�, n�o
chegaria j�mais a negar que era noiva excellente; mas dahi a aconselhar
o casamento ia um abysmo.

--Lavo inteiramente as m�os, concluiu elle.

--Mas voc� achava outro dia que eu devia casar quanto antes...

--Isso � outro negocio. Acho que � indispensavel casar, principalmente
tendo ambi��es politicas. Saiba que na politica o celibato � uma
r�mora. Agora, quanto � noiva, n�o posso ter voto, n�o quero, n�o devo,
n�o � de minha honra. Parece-me que Sabina foi al�m, fazendo-lhe certas
confidencias, segundo me disse; mas em todo caso ella n�o � tia carnal
de Nh�-lol�, como eu. Olhe... mas n�o... n�o digo...

--Diga.

--N�o; n�o digo nada.

Talvez pare�a excessivo o escrupulo do Cotrim, a quem n�o souber que
elle possuia um caracter ferozmente honrado. Eu mesmo fui injusto
com elle durante os annos que se seguiram ao inventario do meu pae.
Reconhe�o que era um modelo. Arguiam-n'o de avareza, e cuido que
tinham raz�o; mas a avareza � apenas a exagera��o de uma virtude,
e as virtudes devem ser como os or�amentos: melhor � o saldo que
o _deficit._ Como era muito secco de maneiras tinha inimigos, que
chegavam a accusal-o de barbaro. O unico facto allegado neste
particular era o de mandar com frequencia escravos ao calabou�o, donde
elles desciam a escorrer sangue; mas, al�m de que elle s� mandava os
perversos e os fuj�es, occorre que, tendo longamente contrabandeado em
escravos, habituara-se de certo modo ao trato um pouco mais duro que
esse genero de negocio requeria, e n�o se p�de honestamente attribuir �
indole original de um homem o que � puro effeito de rela��es sociaes.
A prova de que o Cotrim tinha sentimentos pios encontrava-se no seu
amor aos filhos, e na d�r que padeceu quando lhe morreu S�ra, dalli a
alguns mezes; prova irrefutavel, acho eu; e n�o unica. Era thesoureiro
de uma confraria, e irm�o de varias irmandades, e at� irm�o remido de
uma destas, o que n�o se coaduna muito com a reputa��o da avareza;
verdade � que o beneficio n�o ca�ra no ch�o: a irmandade (de que elle
f�ra juiz,) mandara-lhe tirar o retrato a oleo. N�o era perfeito,
de certo; tinha, por exemplo, o sestro de mandar para os jornaes a
noticia de um ou outro beneficio que praticava,--sestro reprehensivel
ou n�o louvavel, concordo; mas elle desculpava-se dizendo que as b�as
ac��es eram contagiosas, quando publicas; raz�o a que se n�o pode negar
algum peso. Creio mesmo (e nisto fa�o o seu maior elogio) que elle
n�o praticava, de quando em quando, esses beneficios sen�o com o fim
de espertar a philantropia dos outros; e se tal era o intuito, for�a
� confessar que a publicidade tornava-se uma condi��o _sine qua non._
Em summa, poderia dever algumas atten��es, mas n�o devia um real a
ninguem.




CAPIULO CXXIV


V� de intermedio


Que ha entre a vida e a morte? Uma curta ponte. N�o obstante, se eu
n�o compuzesse este capitulo, padeceria o leitor um forte abalo, assaz
damnoso ao effeito do livro. Saltar de um retrato a um epitaphio, p�de
ser real e commum; o leitor, entretanto, n�o se refugia no livro, sen�o
para escapar � vida. N�o digo que este pensamento seja meu; digo que
ha nelle uma dose de verdade, e que, ao menos, a f�rma � pittoresca. E
repito: n�o � meu.

V� de intermedio, e contemos a este proposito uma anecdota. Foi no
tempo da minha vida parlamentar; eramos cinco; falavamos de cousas e
lousas, e aconteceu tocar nos negocios do Rio da Prata. Ent�o, disse
um:--O governo n�o deve esquecer que o dinheiro � o nervo da guerra. Ao
que eu redargui que n�o, que o nervo da guerra eram os bons soldados.
Um dos ouvintes co�ou o nariz, outro consultou o relogio, o terceiro
tamborilou sobre o joelho, o quarto deu algumas pernadas pela sala,
o quinto era eu. Mas, continuando a falar, ponderei que essa id�a,
inteiramente justa, n�o era minha, e sim de Machiavelli; circumstancia
que levou o primeiro a n�o co�ar o nariz, o segundo a n�o consultar o
relogio, o terceiro a n�o tamborilar sobre o joelho, e o quarto a n�o
dar pernadas; e todos me rodearam, e me pediram que repetisse o dito,
e repeti, e elles extasiavam-se, e batiam com a cabe�a approvando,
saboreando, decorando. O que estimei, porque fui sempre amador de id�as
justas. Mas vamos ao epitaphio.




CAPITULO CXXV


Epitaphio


                      AQUI JAZ

            D. EULALIA DAMASCENA DE BRITO

                       MORTA

             AOS DEZENOVE ANNOS DE IDADE

                   ORAI POR ELLA!




CAPITULO CXXVI


Desconsola��o


O epitaphio diz tudo. Vale mais do que se lhes narrasse a molestia de
Nh�-lol�, a morte, o desespero da familia, o enterro. Ficam sabendo
que morreu; accrescentarei que foi por occasi�o da primeira entrada
da febre amarella. N�o digo mais nada, a n�o ser que a acompanhei at�
o ultimo jazigo, e me despedi triste, mas sem lagrimas. Conclui que
talvez n�o a amasse dev�ras.

Vejam agora a que excessos p�de levar uma inadvertencia; doeu-me um
pouco a cegueira da epidemia que, matando � direita e � esquerda, levou
tambem uma jovem dama, que tinha de ser minha mulher; e n�o cheguei
a entender a necessidade da epidemia, e menos ainda daquella morte.
Creio at� que esta me pareceu ainda mais absurda que todas as outras
mortes. O Quincas Borba, por�m, explicou-me que as epidemias eram uteis
� especie, embora desastrosas para uma certa por��o de indiv�duos; e
fez-me notar que, por mais horrendo que fosse o espectaculo, havia
uma vantagem de muito peso: a sobrevivencia do maior numero. Chegou a
perguntar-me se, no meio do luto geral, n�o sentia eu algum secreto
encanto em ter escapado �s garras da peste; mas esta pergunta era t�o
insensata, que ficou sem resposta.

Se n�o contei a morte, n�o conto igualmente a missa do setimo dia.
A tristeza do Damasceno era profunda; esse pobre homem parecia uma
ruina. Quinze dias depois estive com elle; continuava inconsolavel, e
dizia que a dor grande com que Deus o castig�ra fora ainda augmentada
com a que lhe infligiram os homens. N�o me disse mais nada. Tres
semanas depois tornou ao assumpto, e ent�o confessou-me que, no no
meio do desastre irreparavel, quizera ter a consola��o da presen�a dos
amigos. Doze pessoas apenas, e tres quartas partes amigos do Cotrim,
acompanharam � cova o cadaver de sua querida filha. E elle fizera
expedir oitenta convites. Ponderei-lhe que as perdas eram t�o geraes
que bem se podia desculpar essa desatten��o apparente. O Damasceno
abanava a cabe�a de um modo incr�dulo e triste.

--Qual! gemia elle, desampararam-me.

O Cotrim, que estava presente:

--Vieram os que dev�ras se interessam por voc� � por n�s. Os oitenta
viriam por formalidade, falariam da inercia do governo, das panac�as
dos boticarios, do pre�o das casas, ou uns dos outros...

O Damasceno ouviu calado, abanou outra vez a cabe�a, e suspirou:

--Mas viessem!




CAPITULO CXXVII


Formalidade


Grande cousa � haver recebido do ceu uma particula da sabedoria, o dom
de achar as rela��es das cousas, a faculdade de as comparar e o talento
de concluir! Eu tive essa distinc��o psychica; eu a agrade�o ainda
agora do fundo do meu sepulchro.

De facto, o homem vulgar que ouvisse a ultima palavra do Damasceno,
n�o se lembraria della, quando, tempos depois, houvesse de olhar para
uma gravura representando seis damas turcas. Pois eu lembrei-me. Eram
seis damas de Constantinopla,--modernas,--em trajos de rua, com a
cara tapada, n�o tapada � outra maneira, com um espesso panno que as
cobrisse dev�ras, mas com um veu tenuissimo, que simulava descobrir
somente os olhos, e na realidade descobria a cara inteira. E eu achei
gra�a a essa esperteza da faceirice musulmana, que assim esconde o
rosto,--e cumpre o uso,--mas n�o o esconde,--e divulga a belleza.
Apparentemente, nada ha entre as damas turcas e o Damasceno; mas se
tu �s um espirito profundo e penetrante (e duvido muito que me negues
isso), comprehender�s que, tanto n'um como n'outro caso, surge ahi a
orelha de uma rigida e meiga companheira do homem social...

Amavel Formalidade, tu �s, sim, o bord�o da vida, o balsamo dos
cora��es, a medianeira entre os homens, o vinculo da terra e do ceu; tu
enxugas as lagrimas de um pae, tu captas a indulgencia de um Propheta;
e se a d�r adormece, e se a consciencia se accommoda, a quem, sen�o a
ti, dever�o esse immenso beneficio? A estima que passa de chapeu na
cabe�a n�o diz nada � alma; mas a indifferen�a que corteja deixa-lhe
uma deleitosa impress�o. A raz�o � que, ao contrario de uma velha
formula absurda, n�o � a lettra que mata; a lettra d� vida; o espirito
� que � objecto de controversia, de duvida, de interpreta��o, e
conseguintemente de luta e de morte. Vive tu, amavel Formalidade, para
socego do Damasceno e gloria de Muhammed.




CAPITULO CXXVIII


Na camara

E notai bem que eu vi a gravura turca, dous annos depois das palavras
de Damasceno, e vi-a na camara dos deputados, em meio de grande
borborinho, emquanto um deputado discutia um parecer da commiss�o de
or�amento, sendo eu tambem deputado. Para quem ha lido este livro �
escusado encarecer a minha satisfa��o, e para os outros � igualmente
inutil. Era deputado, e vi a gravura turca, recostado na minha cadeira,
entre um collega, que contava uma anecdota, e outro, que tirava a
lapis, nas costas de uma sobrecarta, o perfil do orador. O orador era o
Lobo Neves. A onda da vida trouxe-nos � mesma praia, como duas botelhas
de naufragos, elle contendo o seu resentimento, eu devendo conter o meu
remorso; e empr�go esta f�rma suspensiva, dubitativa ou condicional,
para o fim de dizer que effectivamente n�o continha nada, a n�o ser a
ambi��o de ser ministro.




CAPITULO CXXIX


Sem remorsos


N�o tinha remorsos. Se possuisse os apparelhos proprios, incluia neste
livro uma pagina de chimica, porque havia de decompor o remorso at�
os mais simples elementos, com o fim de saber, de um modo positivo e
concludente, por que raz�o Achilles passea � roda de Troya o cadaver
do adversario, e lady Macbeth passea � volta da sala a sua mancha de
sangue. Mas eu n�o tenho apparelhos chimicos, como n�o tinha remorsos;
tinha vontade de ser ministro de Estado. Comtudo, se hei de acabar este
capitulo, direi que n�o quizera ser Achilles nem lady Macbeth; e que a
ser alguma cousa, antes Achilles, antes passear ovante o cadaver do que
a mancha; ouvem-se no fim as supplicas de Priamo, e ganha-se uma bonita
reputa��o militar e litteraria. Eu n�o ouvia as supplicas de Priamo,
mas o discurso do Lobo Neves, e n�o tinha remorsos.




CAPITULO CXXX


Para intercalar no cap. CXXIX


A primeira vez que pude falar a Virgilia, depois da presidencia, foi
n'um baile em 1855. Trazia um soberbo vestido de gorgor�o azul, e
ostentava �s luzes o mesmo par de hombros de outro tempo. N�o era a
frescura da primeira edade; ao contrario; mas ainda estava formosa,
de uma formosura outoni�a, real�ada pela noite. Lembra-me que falamos
muito; e lembra-me que n�o alludimos a cousa nenhuma do passado.
Subentendia-se tudo. Um dito remoto, vago, ou ent�o um olhar, e mais
cousa nenhuma. Pouco depois retirou-se; eu fui vel-a descer as escadas,
e n�o sei por que phenomeno de ventriloquismo cerebral (perdoem-me
os philologos essa phrase barbara), murmurei commigo esta palavra
profundamente retrospectiva:

--Magnifica!

Conv�m intercalar este capitulo entre a primeira ora��o e a segunda do
cap. CXXIX.




CAPITULO CXXXI


De uma calumnia


Como eu acabava de dizer aquillo, pelo processo ventriloco-cerebral,--o
que era simples opini�o e n�o remorso,--senti que alguem me punha a m�o
no hombro. Voltei-me; era um antigo companheiro, official de marinha,
jovial, um pouco despejado de maneiras. Elle sorriu maliciosamente, e
disse-me:

--Seu magan�o! Recorda��es do passado, hein?

--Viva o passado!

--Voc� naturalmente foi reintegrado no emprego.

--Salta, pelintra! disse eu, amea�ando-o com o dedo.

Confesso que este dialogo era uma indiscri��o,--principalmente a ultima
replica. E com tanto maior prazer o confesso, quanto que as mulheres �
que tem fama de indiscretas, e n�o quero acabar o livro sem rectificar
essa no��o do espirito humano. Em pontos de aventura amorosa, achei
homens que sorriam, ou negavam a custo, de um modo frio, monosyllabico,
etc., ao passo que as parceiras n�o davam por si, e jurariam aos
Santos Evangelhos, que era tudo uma calumnia. A raz�o desta differen�a
� que a mulher (salva a hypothese do cap. CI e outras) entrega-se por
amor, ou seja o amor-paix�o de Stendhal, ou o puramente physico de
algumas damas romanas, por exemplo, ou polynesias, laponias, cafres,
e p�de ser que outras ra�as civilisadas; mas o homem,--falo do homem
de uma sociedade culta e elegante,--o homem conjuga a sua vaidade ao
outro sentimento. Alem disso (e refiro-me sempre aos casos defesos),
a mulher, quando ama outro homem, parece-lhe que mente a um dever, e
portanto tem de dissimular com arte maior, tem de refinar a aleivosia;
ao passo que o homem, sentindo-se causa da infrac��o e vencedor de
outro homem, fica legitimamente orgulhoso, e logo passa a outro
sentimento menos rispido e menos secreto,--essa meiga fatuidade, que �
a transpira��o luminosa do merito.

Mas seja ou n�o verdadeira a minha explica��o, basta-me deixar escripto
nesta pagina, para uso dos seculos, que a indiscri��o das mulheres
� uma burla inventada pelos homens; em amor, pelo menos, elas s�o
um verdadeiro sepulchro. Perdem-se muita vez por desastradas, por
inquietas, por n�o saberem resistir aos gestos, aos olhares; e � por
isso que uma grande dama e fino espirito, a rainha de Navarra, empregou
algures esta metaphora para dizer, que toda a aventura amorosa vinha a
descobrir-se por for�a, mais tarde ou mais cedo: �n�o ha cachorrinho
t�o adestrado, que alfim lhe n�o ou�amos o latir.�




CAPITULO CXXXII


Que n�o � serio


Citando o dito da rainha de Navarra, occorre-me que entre o nosso povo,
quando uma pessoa v� outra pessoa arrufada, costuma perguntar-lhe:
�Gentes, quem matou seus cachorrinhos?� como se dissesse:--�quem lhe
levou os amores, as aventuras secretas, etc.� Mas este capitulo n�o �
serio.




CAPITULO CXXXIII


O principio de Helvetius


Estavamos ao ponto era que o official de marinha me arrancou a
confiss�o dos amores de Virgilia; e aqui emendo eu o principio de
Helvetius,--ou, por outra, explico-o. O meu interesse era calar;
confirmar a suspeita de uma cousa antiga f�ra provocar algum odio
supitado, dar origem a um escandalo, quando menos adquirir a reputa��o
de indiscreto. Era esse o interesse; e entendendo-se o principio
de Helvetius de um modo superficial, isso � o que devia ter feito.
Mas eu j� dei o motivo da indiscri��o masculina: antes daquelle
interesse de _seguran�a_, havia outro, o do _desvanecimento_, que �
mais intimo, mais immediato: o primeiro era reflexivo, suppunha um
syllogismo anterior; o segundo era espontaneo, instintivo, vinha das
entranhas do sugeito; finalmente, o primeiro tinha o effeito remoto,
o segundo proximo. Conclus�o: o principio de Helvetius � verdadeiro
no meu caso;--a diferen�a � que n�o era o interesse apparente, mas o
recondito.




CAPITULO CXXXIV


Cincoenta annos


N�o lhes disse ainda,--mas digo-o agora,--que quando Virgilia descia a
escada, e o official de marinha me tocava no hombro, tinha eu cincoenta
annos. Era portanto a minha vida que descia pela escada abaixo,--ou a
melhor parte, ao menos, uma parte cheia de prazeres, de agita��es, de
sustos,--capeada de dissimula��o e duplicidade,--mas emfim a melhor,
se devemos falar a linguagem usual. Si, por�m, empregarmos outra mais
sublime, a melhor parte foi a restante, como eu terei a honra de lhes
dizer nas poucas paginas deste livro.

Cincoenta annos! N�o era preciso confessal-o. J� se vae sentindo que o
meu estylo n�o � t�o lesto como nos primeiros dias. Naquella occasi�o,
cessado o dialogo com o official de marinha, que enfiou a capa e saiu,
confesso que fiquei um pouco triste. Voltei � sala, lembrou-me dansar
uma polka, embriagar-me das luzes, das flores, dos crystaes, dos olhos
bonitos, e do borburinho surdo e ligeiro das conversas particulares.
E n�o me arrependo; remocei. Mas, meia hora depois, quando me retirei
do baile, �s quatro da manh�, o que � que fui achar no fundo do carro?
Os meus cincoenta annos. L� estavam elles os teimosos, n�o tolhidos
de frio, nem rheumaticos,--mas cochillando a sua fadiga, um pouco
cobi�osos de cama e de repouso. Ent�o,--e vejam at� que ponto p�de ir
a imagina��o de um homem, com somno,--ent�o pareceu-me ouvir de um
morcego encarapitado no tejadilho:--Sr. Braz Cubas, a rejuvenescencia
estava na sala, nos crystaes, nas luzes, nas sedas,--emfim, nos outros.




CAPITULO CXXXV


Oblivion


E agora sinto que, se alguma dama tem seguido estas paginas, fecha o
livro e n�o l� as restantes. Para ella extinguiu-se o interesse da
minha vida, que era o amor. Cincoenta annos! N�o � ainda a invalidez,
mais j� n�o � a frescura. Venham mais dez, e eu entenderei o que um
inglez dizia, entenderei que �cousa � n�o achar j� quem se lembre de
meus paes, e de que modo me ha de encarar o proprio ESQUECIMENTO.�

Vae em versaletes esse nome. OBLIVION! Justo � que se dem todas as
honras a um personagem t�o desprezado e t�o digno, conviva da ultima
hora, mas certo. Sabe-o a dama que luziu na aurora do actual reinado; e
mais dolorosamente a que ostentou suas gra�as em flor sob o ministerio
Paran�, porque esta acha-se mais perto do triumpho, e sente j� que
outras lhe tomaram o carro. Ent�o, se � digna de si mesma, n�o teima em
espertar a lembran�a morta ou expirante; n�o busca no olhar de hoje a
mesma sauda��o do olhar de hontem, quando eram outros os que encetavam
a marcha da vida, de alma alegre e p� veloz. _Tempora mutantur._ E
ella comprehender� que este turbilh�o � assim mesmo, leva as folhas do
mato e os farrapos do caminho, sem excep��o nem piedade; e se tiver um
pouco de philosophia, n�o invejar�, mas lastimar� as que lhe tomaram o
carro, porque tambem ellas h�o de ser apeadas pelo estribeiro OBLIVION.
Espectaculo, cujo fim � divertir o planeta Saturno, que anda muito
aborrecido.




CAPITULO CXXXVI


Inutilidade


Mas, ou muito me engano, ou acabo de escrever um capitulo in�til.




CAPITULO CXXXVII


A barretina


E dahi, n�o; elle resume as reflex�es que fiz no dia seguinte ao
Quincas Borba, accrescentando que me sentia acabrunhado, e mil
outras cousas tristes. Mas esse philosopho, com o elevado tino de
que dispunha, bradou-me que eu ia escorregando na ladeira fatal da
melancolia.

--Meu caro Braz Cubas, n�o te deixes vencer desses vapores. Que diacho!
� preciso ser homem! ser forte! lutar! vencer! brilhar! influir!
dominar! Cincoenta annos � a edade da sciencia e do governo. Animo,
Braz Cubas; n�o me sejas palerma. Que tens tu com essa success�o de
ruina a ruina ou de flor a flor? Trata de saborear a vida; e fica
sabendo que a peor philosophia � a do choramigas que se deita �
margem do rio para o fim de lastimar o curso incessante das aguas. O
officio dellas � n�o parar nunca; accommoda-te com a lei, e trata de
aproveital-a.

Ve-se nas menores cousas o que vale a autoridade de um grande
philosopho. As palavras do Quincas Borba tiveram o cond�o de sacudir
o torpor moral e mental em que andava. Vamos l�; fa�amo-nos governo.
Crel-o-eis, posteros? Eu n�o havia intervindo at� ent�o nos grandes
debates. Cortejava a pasta por meio de rapap�s, ch�s, commiss�es e
votos; e a pasta n�o vinha. Urgia apoderar-me da tribuna.

Comecei de vagar. Tres dias depois, discutindo-se o or�amento da
justi�a, aproveitei o ensejo para perguntar modestamente ao ministro
se n�o julgava util diminuir a barretina da guarda nacional. N�o
tinha vasto alcance o objecto da pergunta; mas ainda assim demonstrei
que n�o era indigno das cogita��es de um homem de Estado; e citei
Philopemen, que ordenou a substitui��o dos broqueis de suas tropas,
que eram pequenos, por outros maiores, e bem assim as lan�as, que
eram demasiado leves; facto que a historia n�o achou que desmentisse
a gravidade de suas paginas. O tamanho das nossas barretinas estava
pedindo um c�rte profundo, n�o s� por serem deselegantes, mas tambem
por serem anti-hygienicas. Nas paradas, ao sol, o excesso do calor
produzido por ellas podia ser fatal. Sendo certo que um dos preceitos
de Hippocrates era trazer a cabe�a fresca, parecia cruel obrigar um
cidad�o, por simples considera��o de uniforme, a arriscar a saude e
a vida, e consequentemente o futuro da familia. A camara e o governo
deviam lembrar-se que a guarda nacional era o anteparo da liberdade
e da independencia, e que o cidad�o, chamado a um servi�o gratuito,
frequente e penoso, tinha direito a que se lhe diminuisse o onus,
decretando um uniforme leve e maneiro. Accrescia que a barretina,
por seu peso, abatia a cabe�a dos cidad�os, e a patria precisava de
cidad�os cuja fronte pudesse levantar-se altiva e serena diante do
poder; e conclui com esta id�a: O chor�o, que inclina os seus galhos
para a terra, � arvore de cemiterio; a palmeira, erecta e firme, �
arvore do deserto, das pra�as e dos jardins.

V�ria foi a impress�o deste discurso. Quanto � forma, ao rapto
eloquente, � parte litteraria e philosophica, a opini�o foi s� uma;
disseram-me todos que era completo, e que de uma barretina ninguem
ainda conseguira tirar tantas id�as. Mas a parte politica foi
considerada por muitos deploravel; alguns achavam o meu discurso um
desastre parlamentar; emfim, vieram dizer-me que outros me davam j�
em opposi��o, entrando nesse numero os opposicionistas da camara,
que chegaram a insinuar a conveniencia de uma mo��o de desconfian�a.
Repelli energicamente tal interpreta��o, que n�o era s� erronea, mas
calumniosa, � vista da notoriedade com que eu sustentava o gabinete;
accrescentei que a necessidade de diminuir a barretina, n�o era
tamanha que n�o pudesse esperar alguns annos; e que, em todo caso,
eu transigiria na extens�o do c�rte, contentando-me com tres quartos
de polegada ou menos; emfim, dado mesmo que a minha id�a n�o fosse
adoptada, bastava-me tel-a iniciado no parlamento.

O Quincas Borba, por�m, n�o fez restric��o alguma. N�o sou homem
politico, disse-me elle ao jantar; n�o sei se andaste bem ou mal;
sei que fizeste um excellente discurso. E ent�o notou as partes
mais salientes, as bellas imagens, os argumentos fortes, com esse
comedimento de louvor que t�o bem fica a um grande philosopho; depois,
tomou o assumpto � sua conta, e impugnou a barretina com tal for�a,
com tamanha lucidez, que acabou convencendo-me effectivamente do seu
perigo.




CAPITULO CXXXVIII


A um Critico


    Meu caro critico,

    Algumas paginas atraz, dizendo eu que tinha cincoenta annos,
    accrescentei: �J� se vae sentindo que o meu estylo n�o � t�o
    lesto como nos primeiros dias.� Talvez aches esta phrase
    incomprehensivel, sabendo-se o meu actual estado; mas eu
    chamo a tua atten��o para a subtileza daquelle pensamento. O
    que eu quero dizer n�o � que esteja agora mais velho do que
    quando comecei o livro. A morte n�o envelhece. Quero dizer,
    sim, que em cada phase da narra��o da minha vida experimento
    a sensa��o correspondente. Valha-me Deus! � preciso explicar
    tudo.




CAPITULO CXXXIX


De como n�o fui ministro de estado

.               .   .       .   .   .   .   .   .   .   .
.       .   .       .   .   .                   .   .   .
.   .   .   .   .       .           .               .   .
                    .                                   .
    .       .       .   .       .   .           .       .




CAPITULO CXL


Que explica o anterior


Ha cousas que melhor se dizem calando; tal � a materia do capitulo
anterior. Podem entendel-o os ambiciosos mallogrados. Se a paix�o
do poder � a mais forte de todas, como alguns inculcam, imaginem o
desespero, a d�r, o abatimento do dia em que perdi a cadeira da camara
dos deputados. Iam-se-me as esperan�as todas; terminava a carreira
politica. E notem que o Quincas Borba, por induc��es philosophicas
que fez, achou que a minha ambi��o n�o era a paix�o verdadeira do
poder, mas um capricho, um desejo de folgar. Na opini�o delle, este
sentimento, n�o sendo mais profundo que o outro, amofina muito mais,
porque or�a pelo amor que as mulheres tem �s rendas e toucados. Um
Cromwell ou um Bonaparte, acrescentava elle, por isso mesmo que os
queima a paix�o do poder, l� chegam � fina for�a, ou pela escada da
direita, ou pela da esquerda. N�o era assim o meu sentimento; este,
n�o tendo em si a mesma for�a, n�o tem a mesma certeza do resultado;
e dahi a maior afflic��o, o maior desencanto, a maior tristeza. O meu
sentimento, segundo o Humanitismo...

--Vae para o diabo com o teu Humanitismo, interrompi-o; estou farto de
philosophias que me n�o levam a cousa nenhuma.

A dureza da interrup��o, tratando-se de tamanho philosopho, equivalia a
um desacato; mas elle proprio desculpou a irrita��o com que lhe falei.
Trouxeram-nos caf�; era uma hora da tarde, estavamos na minha sala de
estudo, uma bella sala, que dava para o fundo da chacara, bons livros,
objectos d'arte, um Voltaire entre elles, um Voltaire de bronze, que
nessa occasi�o parecia accentuar o risinho de sarcasmo, com que me
olhava, o ladr�o; cadeiras excellentes; f�ra, o sol, um grande sol,
que o Quincas Borba, n�o sei se por chala�a ou poesia, chamou um dos
ministros da natureza; corria um vento fresco, o ceu estava nitidamente
azul. De cada janella,--eram trez--pendia uma gaiola com passaros,
que chilreavam as suas operas rusticas. Tudo tinha a apparencia de
uma conspira��o das cousas contra o homem: e, comquanto eu estivesse
na _minha_ sala, olhando para a _minha_ chacara, sentado na _minha_
cadeira, ouvindo os _meus_ passaros, ao p� dos _meus_ livros, allumiado
pelo _meu_ sol, n�o chegava a curar-me das saudades daquella outra
cadeira, que n�o era minha.




CAPITULO CXLI


Os c�es


--Mas, emfim, que pretendes fazer agora? perguntou-me o Quincas Borbas,
indo p�r a chicara vazia no parapeito de uma das janellas.

N�o sei; vou metter-me na Tijuca; fugir aos homens. Estou envergonhado,
aborrecido. Tantos sonhos, meu caro Borba, tantos sonhos, e n�o sou
nada.

--Nada! interrompeu-me o Quincas Borba com um gesto de indigna��o.

Para distrair-me, convidou-me a sair; saimos para os lados do Engenho
Velho. Iamos a p�, philosophando as cousas. Nunca me hade esquecer o
beneficio desse passeio, que me restituiu o socego e a for�a. A palavra
daquelle grande homem era o cordial da sabedoria. Disse-me elle que eu
n�o podia fugir ao combate; se me fechavam a tribuna, cumpria-me abrir
um jornal. Chegou a usar uma express�o menos elevada, mostrando assim
que a lingua philosophica podia, uma ou outra vez, retemperar-se no
cal�o do povo. Funda um jornal, disse-me elle, e �desmancha toda esta
egrejinha.�

--Magnifica id�a! Vou fundar um jornal, vou escachal-os, vou...

--Lutar. P�des escachal-os ou n�o; o essencial � que lutes. Vida �
luta. Vida sem luta � um mar morto no centro do organismo universal.

Dahi a pouco demos com uma briga de c�es; facto que aos olhos de um
homem vulgar n�o teria valor. O Quincas Borba fez-me parar e observar
os c�es. Eram dous. Notou que ao p� delles estava um osso, motivo da
guerra, e n�o deixou de chamar a minha atten��o para a circumstancia
de que o osso n�o tinha carne. Um simples osso n�. Os c�es mordiam-se,
rosnavam, com o furor nos olhos... O Quincas Borba metteu a bengala
debaixo do bra�o, encostou o queixo no cast�o, e parecia em extasis.

--Que bello que isto �! dizia elle de quando em quando.

Quiz arrancar-me dalli, mas n�o pude; elle estava arraigado ao ch�o,
e s� continuou a andar, quando a briga cessou inteiramente, e um
dos c�es, mordido e vencido, foi levar a sua fome a outra parte.
Notei que fic�ra sinceramente alegre, posto contivesse a alegria,
segundo convinha a um grande philosopho. Fez-me observar a belleza do
espectaculo, relembrou o objecto da luta, concluiu que os c�es tinham
fome; mas a priva��o do alimento era nada para os effeitos geraes da
philosophia. Nem deixou de recordar que em algumas partes do globo
o espectaculo � mais grandioso: as creaturas humanas � que disputam
aos c�es os ossos e outros manjares menos appeteciveis; luta que se
complica muito, porque entra em ac��o a intelligencia do homem, com
todo o accumulo de sagacidade que lhe deram os seculos, etc.




CAPITULO CXLII


O pedido secreto


Quanta cousa n'um minuete! como dizia o outro. Quanta cousa n'uma briga
de c�es! Mas eu n�o era um discipulo servil ou medroso, que deixasse de
fazer uma ou outra objec��o adequada. Andando, disse-lhe que tinha uma
duvida; n�o estava bem certo da vantagem de disputar a comida aos c�es.
Elle respondeu-me com excepcional brandura:

--Disputai-a aos outros homens � mais logico, porque a condi��o dos
contendores � a mesma, e leva o osso o que f�r mais forte. Mas porque
n�o ser� um espectaculo grandioso disputal-o aos c�es? Voluntariamente,
comem-se gafanhotos, como o Precursor, ou cousa peor, como Ezequiel;
logo, o ruim � comivel; resta saber se � mais digno do homem
disputal-o, por virtude de uma necessidade natural, ou preferil-o, para
obedecer a uma exalta��o religiosa, isto �, modificavel, ao passo que a
fome � eterna, como a vida e como a morte.

Estavamos � porta de casa; deram-me uma carta, dizendo que vinha de uma
senhora. Entramos; e o Quincas Borba, com a discri��o propria de um
philosopho, foi ler a lombada dos livros de uma estante, emquanto eu
lia a carta, que era de Virgilia:

    �Meu bom amigo,

    �D. Placida est� muito mal. Pe�o-lhe o favor de fazer alguma
    cousa por ella; mora no becco das Escadinhas; veja se alcan�a
    metei-a na Miseric�rdia.

    Sua amiga sincera,

    [signature]

N�o era a letra fina e correcta de Virgilia, mas grossa e desegual; o
V da assignatura n�o passava de um rabisco sem inten��o alphabetica;
de maneira que, se a carta apparecesse, era mui difficil attribuir-lhe
a autoria. Virei e revirei o papel. Pobre D. Placida! Mas eu tinha-lhe
deixado os cinco contos da praia da Gamb�a, en�o podia comprehender
que...

--Vaes comprehender, disse o Quincas Borba, tirando um livro da estante.

--O que? perguntei espantado.

--Vaes comprehender que eu s� te disse a verdade. Pascal � um dos meus
av�s espirituaes; e, �omquanto a minha philosophia valha mais que a
delle, n�o posso negar que era um grande homem. Ora, que diz elle
nesta pagina?--E, chap�u na cabe�a, bengala sobra�ada, apontava o logar
com o dedo.--Que diz elle? Diz que o homem tem �uma grande vantagem
sobre o resto do universo: sabe que morre, ao passo que o universo
ignora-o absolutamente.� V�s? Logo, o homem que disputa o osso a um c�o
tem sobre este a grande vantagem de saber que tem fome; e � isto que
torna grandiosa a luta, como eu dizia. �Sabe que morre� � uma express�o
profunda; creio todavia que � mais profunda a minha express�o: sabe
que tem fome. Porquanto, o facto da morte limita, por assim dizer, o
entendimento humano; a consciencia da extinc��o dura um breve instante
e acaba para nunca mais, ao passo que a fome tem a vantagem de voltar,
de prolongar o estado consciente. Parece-me (se n�o vae nisso alguma
immodestia), que a f�rmula de Pascal � inferior � minha, sem todavia
deixar de ser um grande pensamento, e Pascal um grande homem.




CAPITULO CXLIII


N�o vou


Emquanto elle restituia o livro � estante, relia eu o bilhete. Ao
jantar, vendo que eu falava pouco, mastigava sem acabar de engulir,
fitava o canto da sala, a ponta da meza, um prato, uma cadeira, uma
mosca invisivel, disse-me elle:--Tens alguma cousa; aposto que foi
aquella carta?--Foi. Realmente, sentia-me aborrecido, incommodado, com
o pedido de Virgilia. Tinha dado a D. Placida cinco contos de r�is;
duvido muito que ninguem fosse mais generoso do que eu, nem tanto.
Cinco contos! E que fizera delles? Naturalmente botou-os f�ra, comeu-os
em grandes festas, e agora toca para a Misericordia, e eu que a leve!
Morre-se em qualquer parte. Accresce que eu n�o sabia, ou n�o me
lembrava do tal becco das Escadinhas; mas, pelo nome, parecia-me algum
recanto estreito e escuro da cidade. Tinha de l� ir, chamar a atten��o
dos visinhos, bater � porta, etc. Que massada! N�o vou.




CAPITULO CXLIV


Utilidade relativa


Mas a noite, que � boa conselheira, ponderou que a cortezia mandava
obedecer aos desejos da minha antiga dama.

--Letras vencidas, urge pagal-as, disse eu ao levantar-me.

Depois do almo�o fui � casa de D. Placida; achei um m�lho de ossos,
envolto em molambos, estendido sobre um catre velho e nauseabundo;
dei-lhe algum dinheiro. No dia seguinte fil-a transportar para a
Misericordia, onde ella morreu uma semana depois. Minto: amanheceu
morta; saiu da vida �s escondidas, tal qual entr�ra. Outra vez
perguntei, a mim mesmo, como no cap. LXXV, se era para isto que o
sachrist�o da S� e a doceira trouxeram D. Placida � luz, n'um momento
de sympathia especifica. Mas adverti logo que, se n�o fosse D. Placida,
talvez os meus amores com Virgilia tivessem sido interrompidos, ou
immediatamente quebrados, em plena effervescencia; tal foi, portanto, a
utilidade da vida de D. Placida. Utilidade relativa, convenho; mas que
diacho ha absoluto nesse mundo?




CAPITULO CXLV


Simples repeti��o


Quanto aos cinco contos, n�o vale a pena dizer que um canteiro da
visinhan�a fingiu-se enamorado de D. Placida, logrou espertar-lhe
os sentidos, ou a vaidade, e casou com ella; no fim de alguns mezes
inventou um negocio, vendeu as apolices e fugiu com o dinheiro. N�o
vale a pena. � o caso dos c�es do Quincas Borba. Simples repeti��o de
um capitulo.




CAPITULO CXLVI


O programma


Urgia fundar o jornal. Redigi o programma, que era uma applica��o
politica do Humanitismo; somente, como o Quincas Borba n�o houvesse
ainda publicado o livro, (que aperfei�oava de anno em anno) assentamos
de lhe n�o fazer nenhuma referencia. O Quincas Borba exigiu apenas uma
declara��o, autographa e reservada, de que alguns principios novos
applicados � politica eram tirados do livro delle, ainda inedito.

Era a fina fl�r dos programmas; promettia curar a sociedade, destruir
os abusos, defender os s�os principios de liberdade e conserva��o;
fazia um appello ao commercio e � lavoura; citava Guizot e Ledru-Rollin
e acabava com esta amea�a, que o Quincas Borba achou mesquinha e
local: �A nova doutrina que professamos ha de inevitavelmente derribar
o actual ministerio.� Confesso que, nas circumstancias politicas da
occasi�o, o programma pareceu-me uma obra-prima. A amea�a do fim, que
o Quincas Borba achou mesquinha, demonstrei-lhe que era saturada do
mais puro Humanitismo, e elle mesmo o confessou depois. Porquanto, o
Humanitismo n�o excluia nada; as guerras de Napole�o e uma contenda
de cabras eram, segundo a nossa doutrina, a mesma sublimidade, com a
differen�a que os soldados de Napole�o sabiam que morriam, cousa que
apparentemente n�o acontece �s cabras. Ora, eu n�o fazia mais do que
applicar �s circumstancias a nossa f�rmula philosophica: Humanitas
queria substituir Humanitas para consola��o de Humanitas.

--Tu �s o meu discipulo amado, o meu califa, bradou o Quincas Borba,
com uma nota de ternura, que at� ent�o lhe n�o ouvira. Posso dizer
como o grande Muhammed: nem que venham agora contra mim o sol e a lua,
n�o recuarei das minhas id�as. Cr�, meu caro Braz Cubas, que esta � a
verdade eterna, anterior aos mundos, posterior aos seculos.




CAPITULO CXLVII


O desatino


Mandei logo para a imprensa uma noticia discreta, dizendo que
provavelmente come�aria a publica��o de um jornal opposicionista, dahi
a algumas semanas, redigido pelo Dr. Braz Cubas. O Quincas Borba, a
quem li a noticia, pegou da penna, e acrescentou ao meu nome, com uma
fraternidade verdadeiramente humanistica, esta phrase: �um dos mais
gloriosos membros da passada camara.�

No dia seguinte entra-me em casa o Cotrim. Vinha um pouco transtornado,
mas dissimulava, affectando socego e at� alegria. Vira a noticia
do jornal, e achou que devia, como amigo e parente, dissuadir-me
de semelhante id�a. Era um erro, um erro fatal. Mostrou que eu ia
collocar-me n'uma situa��o difficil, e de certa maneira trancar as
portas do parlamento. O ministerio, n�o s� lhe parecia excellente,
o que ali�s podia n�o ser a minha opini�o, mas com certeza viveria
muito; e que podia eu ganhar com indispol-o contra mim? Sabia que
alguns dos ministros me eram affei�oados; n�o era impossivel uma vaga,
e... Interrompi-o nesse ponto, para lhe dizer que medit�ra muito o
passo que ia dar, e n�o podia recuar uma linha. Cheguei a prop�r-lhe a
leitura do programma, mas elle recusou energicamente, dizendo que n�o
queria ter a minima parte no meu desatino.

--� um verdadeiro desatino, repetiu elle; pense ainda alguns dias, e
ver� que �* um desatino.

A mesma cousa disse Sabina, � noite, no theatro. Deixou a filha no
camarote, como Cotrim, e trouxe-me ao corredor.

--Mano Braz, que � que voc� vae fazer? perguntou-me afflicta. Que id�a
� essa de provocar o governo, sem necessidade, quando podia....

Expliquei-lhe que n�o me convinha mendigar uma cadeira no parlamento;
que a minha id�a era derrubar o ministerio, por n�o me parecer adequado
� situa��o--e a certa f�rmula philosophica; afiancei que empregaria
sempre uma linguagem cortez, embora energica. A violencia n�o era
especiaria do meu paladar. Sabina bateu com o leque na ponta dos dedos,
abanou a cabe�a, e tornou ao assumpto com um ar de supplica e amea�a,
alternadamente; eu disse-lhe que n�o, que n�o, e que n�o. Desenganada,
lan�ou-me em rosto preferir os conselhos de pessoas estranhas e
invejosas aos della e do marido.--Pois siga o que, lhe parecer,
concluiu; n�s cumprimos a nossa obriga��o. Deu-me as costas e voltou ao
camarote.




CAPITULO CXLVIII


O problema insoluvel


Publiquei o jornal. Vinte e quatro horas depois, apparecia em outros
uma declara��o do Cotrim, dizendo, era substancia, que �posto n�o
militasse em nenhum dos partidos em que se dividia a patria, achava
conveniente deixar bem claro que n�o tinha influencia nem parte directa
ou indirecta na folha de seu cunhado, o Dr. Braz Cubas, cujas id�as
e procedimento politico inteiramente reprovava. O actual ministerio
(como ali�s qualquer outro composto de eguaes capacidades) parecia-lhe
destinado a promover a felicidade publica.�

N�o podia acabar de crer nos meus olhos. Esfreguei-os uma e duas
vezes, e reli a declara��o inopportuna, insolita e enigmatica. Se
elle nada tinha com os partidos, que lhe importava um incidente t�o
vulgar como a publica��o de uma folha? Nem todos os cidad�os que acham
bom ou mau um ministerio fazem declara��es taes pela imprensa, nem
s�o obrigados a fazel-as. Realmente, era um mysterio a intrus�o do
Cotrim neste negocio, n�o menos que a sua aggress�o pessoal. Nossas
rela��es at� ent�o tinham sido lhanas e benevolas; n�o me lembrava
nenhum dissentimento, nenhuma sombra, nada, depois da reconcilia��o.
Ao contrario, as recorda��es eram de verdadeiros obsequios; assim, por
exemplo, sendo eu deputado, pude obter-lhe uns fornecimentos para o
arsenal de marinha, fornecimentos que elle continuava a fazer com a
maior pontualidade, e dos quaes me dizia algumas semanas antes, que
no fim de mais trez annos, podiam dar-lhe uns duzentos contos. Pois
a lembran�a de tamanho obsequio n�o teve for�a para obstar que elle
viesse a publico enxovalhar o cunhado? Devia ser mui poderoso o motivo
da declara��o, que o fazia commetter ao mesmo tempo um destempero e uma
ingratid�o; confesso que era um problema insoluvel...




CAPITULO CXLIX


Theoria do beneficio


... T�o insoluvel que o Quincas Borba n�o p�de dar com elle, apezar de
estudal-o longamente e com boa vontade.--Ora adeus! concluiu; nem todos
os problemas valem cinco minutos de atten��o.

Quanto � censura de ingratid�o, o Quincas Borba rejeitou-a
inteiramente, n�o como improvavel, mas como absurda, por n�o obedecer
�s conclus�es de uma boa philosophia humanistica:

--N�o me p�des negar um facto, disse elle; � que o prazer do
beneficiador � sempre maior que o do beneficiado. Que � o beneficio? �
um acto que faz cessar certa priva��o do beneficiado. Uma vez produzido
o effeito essencial, isto �, uma vez cessada a priva��o, torna o
organismo ao estado anterior, ao estado indifferente. Supp�e que tens
apertado em demasia o c�s das cal�as; para fazer cessar o incommodo,
desabot�as o c�s, respiras, saboreas um instante de gozo, o organismo
torna � indifferen�a, e n�o te lembras dos teus dedos que praticaram o
acto. N�o havendo nada que perdure, � natural que a memoria se esvae�a,
porque ella n�o � uma planta aerea, precisa de ch�o. A esperan�a de
outros favores, � certo, conserva sempre no beneficiado a lembran�a do
primeiro; mas este facto, ali�s um dos mais sublimes que a philosophia
p�de achar em seu caminho, explica-se pela memoria da priva��o, ou,
usando de outra f�rmula, pela priva��o continuada na memoria, que
repercute a dor passada e aconselha a precau��o do remedio opportuno.
N�o digo que, ainda sem esta circumstancia, n�o aconte�a, algumas
vezes, persistir a memoria do obsequio, acompanhada de certa affei��o
mais ou menos intensa; mas s�o verdadeiras aberra��es, sem nenhum valor
aos olhos de um philosopho.

--Mas, repliquei eu, se nenhuma raz�o ha para que perdure a memoria do
obsequio no obsequiado, menos ha de haver em rela��o ao obsequiador.
Quizera que me explicasses este ponto.

--N�o se explica o que � de sua natureza evidente, retorquiu o Quincas
Borba; mas eu direi alguma cousa mais. A persistencia do beneficio na
memoria de quem o exerce explica-se pela natureza mesma do beneficio
e seus effeitos. Primeiramente, ha o sentimento de uma boa ac��o, e
deductivamente a consciencia de que somos capazes de boas ac��es; em
segundo logar, recebe-se uma convic��o de superioridade sobre outra
creatura, superioridade no estado e nos meios; e esta � uma das
cousas mais legitimamente agradaveis, segundo as melhores opini�es,
ao organismo humano. Erasmo, que no seu _Elogio da Sandice_ escreveu
algumas cousas boas, chamou a atten��o para a complacencia com que dois
burros se co�am um ao outro. Estou longe de rejeitar essa observa��o de
Erasmo; mas direi o que elle n�o disse, a saber, que se um dos burros
co�ar melhor o outro, esse ha de ter nos olhos algum indicio especial
de satisfa��o. Porque � que uma mulher bonita olha muitas vezes para
o espelho, sen�o porque se acha bonita, e porque isso lhe d� certa
superioridade sobre uma multid�o de outras mulheres menos bonitas
ou absolutamente feias? A consciencia � a mesma cousa; remira-se a
miudo, quando se acha bella. Nem o remorso � outra cousa mais do que o
trejeito de uma consciencia que se v� hedionda. N�o esque�as que, sendo
tudo uma simples irradia��o de Humanitas, o beneficio e seus effeitos,
s�o phenomenos perfeitamente admir�veis.




CAPITULO CL


Rota��o e transla��o


Ha em cada empreza, affei��o ou edade um cyclo inteiro da vida humana.
O primeiro numero do meu jornal encheu-me a alma de uma vasta aurora,
coroou-me de verduras, restituiu-me a lepidez da mocidade. Seis mezes
depois batia a hora da velhice, e dahi a duas semanas a da morte, que
foi clandestina, como a de D. Placida. No dia em que o jornal amanheceu
morto, respirei como um homem que vem de longo caminho. De modo que,
se eu disser que a vida humana nutre de si mesma outras vidas, mais
ou menos ephemeras, como o corpo alimenta os seus parasitas, creio
n�o dizer uma cousa inteiramente absurda. Mas, para n�o arriscar essa
figura menos nitida e adequada, prefiro uma imagem astronomica: o homem
executa � roda do grande mysterio um movimento duplo de rota��o e
transla��o; tem os seus dias, deseguaes como os de Jupiter, e delles
comp�e o seu anno mais ou menos longo.

No momento em que eu terminava o meu movimento de rota��o, concluia o
Lobo Neves o seu movimento de transla��o. Morria com o p� na escada
ministerial. Correu ao menos, durante algumas semanas, que elle ia ser
ministro; e pois que o boato me encheu de muita irrita��o e inveja, n�o
� impossivel que a noticia da morte me deixasse alguma tranquillidade,
allivio, e um ou dous minutos de prazer. Prazer � muito, mas � verdade;
juro aos seculos que � a pura verdade.

Fui ao enterro. Na sala mortuaria achei Virgilia, ao p� do feretro, a
solu�ar. Quando levantou a cabe�a, vi que chorava deveras. Ao sair o
enterro, abra�ou-se ao caix�o, afflicta; vieram tiral-a e leval-a para
dentro. Digo-vos que as lagrimas eram verdadeiras. Eu fui ao cemiterio;
e, para dizer tudo, n�o tinha muita vontade de falar; levava uma pedra
na garganta ou na consciencia. No cemiterio, principalmente quando
deixei cair a p� de cal sobre o caix�o, no fundo da cova, o baque surdo
da cal deu-me um estremecimento passageiro, � certo, mas desagradavel;
e depois a tarde tinha o peso e a c�r do chumbo; o cemiterio, as roupas
pretas...




CAPITULO CLI


Philosophia dos epitaphios


Sa�, afastando-me dos grupos, e fingindo ler os epitaphios. E, ali�s,
gosto dos epitaphios; elles s�o, entre a gente civilisada, uma
express�o daquelle pio e secreto egoismo que induz o homem a arrancar
� morte um farrapo ao menos da sombra que passou. Dahi vem, talvez,
a tristeza inconsolavel dos que levam os seus mortos � valla commum;
parece-lhes que a podrid�o anonyma os alcan�a a elles mesmos.




CAPITULO CLII


A moeda do Vespasiano


Tinham ido todos; s� o meu carro esperava pelo dono. Accendi um
charuto; afastei-me do cemiterio. N�o podia sacudir dos olhos a
ceremonia do enterro, nem dos ouvidos os solu�os de Virgilia. Os
solu�os, principalmente, tinham o som vago e mysterioso de um problema.
Virgilia trahira o marido, com sinceridade; e agora chorava-o com
sinceridade. Eis uma combina��o difficil que n�o pude fazer em todo
o trajecto; em casa, por�m, apeando-me do carro, suspeitei que a
combina��o era possivel, e at� facil. Meiga Natura! A taxa da dor �
como a moeda de Vespasiano; n�o cheira � origem, e tanto se colhe do
mal como do bem. A moral reprehender�, porventura, a minha complice;
� o que te n�o importa, implacavel amiga, uma vez que lhe recebeste
pontualmente as lagrimas. Meiga, tres vezes meiga Natura!




CAP�TULO CLIII


O alienista


Come�o a ficar pathetico; e prefiro dormir. Dormi, sonhei que era
nababo, e acordei com a id�a de ser nababo. Eu gostava, �s vezes,
de imaginar esses contrastes de regi�o, estado e credo. Alguns dias
antes tinha pensado na hypothese de uma revolu��o social, religiosa e
politica, que transferisse o arcebispo de Cantuaria a simples collector
de Petropolis, e fiz longos calculos para saber se o collector
eliminaria o arcebispo, ou se o arcebispo rejeitaria o collector, ou
que por��o de arcebispo p�de jazer n'um collector, ou que somma de
collector p�de combinar com um arcebispo, etc. Quest�es insoluveis,
apparentemente, mas na realidade perfeitamente soluveis, desde que se
attenda que p�de haver n'um arcebispo dous arcebispos,--o da bulla e o
outro. Est� dito, vou ser nababo.

Era um simples gracejo; disse-o, todavia, ao Quincas Borba, que
olhou para mim com certa cautella e pena, levando a sua bondade a
communicar-me que eu estava doudo. Ri-me a principio; mas a nobre
convic��o do philosopho incutiu-me certo medo. A unica objec��o contra
a palavra do Quincas Borba � que n�o me sentia doudo, mas n�o tendo
geralmente os doudos outro conceito de si mesmos, tal objec��o ficava
sem valor. E v�de se ha algum fundamento na cren�a popular de que os
philosophos s�o homens alheios �s cousas minimas. No dia seguinte
mandou-me o Quincas Borba um alienista. Conhecia-o, fiquei aterrado.
Elle por�m houve-se com a maior delicadeza e habilidade, despedindo-se
t�o alegremente que me animou a perguntar-lhe se deveras me n�o achava
doudo.

--N�o, disse elle sorrindo; raros homens ter�o tanto juizo como o
senhor.

--Ent�o o Quincas Borba enganou-se?

--Redondamente. E depois:--Ao contrario, se � amigo delle... pe�o-lhe
que o distraia... que...

--Justos ceus! Parece-lhe?... Um homem de tamanho espirito! um
philosopho!

N�o importa; a loucura entra em todas as casas. Imaginem a minha
afflic��o. O alienista, vendo o effeito de suas palavras, reconheceu
que eu era amigo do Quincas Borba, e tratou de diminuir a gravidade da
advertencia. Observou que podia n�o ser nada, e accrescentou at� que um
gr�osinho de sandice, longe de fazer mal, dava certo pico � vida. Como
eu rejeitasse com horror esta opini�o, o alienista sorriu e disse-me
uma cousa t�o extraordinaria, t�o extraordinaria, que n�o merece menos
de um capitulo.




CAPITULO CLIV


Os navios do Pireu


--Ha de lembrar-se, disse-me o alienista, daquelle famoso maniaco
atheniense, que suppunha que todos os navios entrados no Pireu eram
de sua propriedade. N�o passava de um pobret�o, que talvez n�o
tivesse, para dormir, a cuba de Diogenes; mas a posse imaginaria dos
navios valia por todas as drachmas da Hellade. Ora bem, ha em todos
n�s um maniaco de Athenas; e quem jurar que n�o possuiu alguma vez,
mentalmente, dous ou tres patachos, pelo menos, p�de crer que jura
falso.

--Tambem o senhor? perguntei-lhe.

--Tambem eu.

--Tambem eu?

--Tambem o senhor; e o seu criado, n�o menos, se � seu criado esse
homem que alli est� sacudindo os tapetes � janella.

De facto, era um dos meus criados que batia os tapetes, emquanto
n�s falavamos no jardim, ao lado. O alienista notou ent�o que elle
escancar�ra as janellas todas, desde longo tempo, que al��ra as
cortinas, que devass�ra o mais possivel a sala, ricamente alfaiada,
para que a vissem de f�ra, e concluiu:--Este seu criado tem a mania do
atheniense: cr� que os navios s�o delle; uma hora de illus�o que lhe d�
a maior felicidade da terra.




CAPITULO CLV


Reflex�o cordial


--Se o alienista tem raz�o, disse eu commigo, n�o haver� muito que
lastimar o Quincas Borba; e uma quest�o de mais ou de menos. Comtudo,
� justo cuidar delle, e evitar que lhe entrem no cerebro maniacos de
outras paragens.




CAPITULO CLVI


Orgulho tem servilidade


O Quincas Borba divergiu do alienista em rela��o ao meu
criado.--P�de-se, por imagem, disse elle, attribuir ao teu criado
a mania de atheniense; mas imagens n�o s�o id�as nem observa��es
tomadas � natureza. O que o teu criado tem � um sentimento nobre
e perfeitamente regido pelas leis do Humanitismo: � o orgulho
da servilidade. A inten��o delle � mostrar que n�o � criado de
_qualquer._--Depois chamou a minha atten��o para os cocheiros de casa
grande, mais impertigados que o amo, para os criados de hotel, cuja
solicitude obedece �s varia��es sociaes da freguezia, etc. E concluiu
que era tudo a express�o daquelle sentimento delicado e nobre,--prova
cabal de que muitas vezes o homem, ainda a engraxar botas, � sublime.




CAPITULO CLVII


Phase brilhante


--Sublime �s tu, bradei eu, lan�ando-lhe os bra�os ao pesco�o.

Com effeito, era imposs�vel crer que um homem t�o profundo pudesse
chegar � demencia; e foi o que lhe disse ap�s o meu abra�o,
denunciando-lhe a suspeita do alienista. N�o posso descrever a
impress�o que lhe fez a denuncia; lembra-me que elle estremeceu e ficou
muito pallido.

Foi por esse tempo que eu me reconciliei outra vez com o Cotrim, sem
chegar a saber a causa do dissentimento. Reconcilia��o opportuna,
porque a solid�o pesava-me, como um remorso, e a vida era para mim
a peor das fadigas, que � a fadiga sem trabalho. Pouco depois fui
convidado por elle a filiar-me n'uma Ordem Terceira; o que eu n�o fiz
sem consultar o Quincas Borba:

--Vae se queres, disse-me este, mas temporariamente. Eu trato de
annexar � minha philosophia uma parte dogmatica e liturgica. O
Humanitismo ha de ser tambem uma religi�o, a do futuro, a unica
verdadeira. O christianismo � bom para as mulheres e os mendigos, e as
outras religi�es n�o valem mais do que essa: or�am todas pela mesma
vulgaridade ou fraqueza. O paraiso christ�o � um digno emulo do paraiso
mussulmano; e quanto ao nirvana de Buddha n�o passa de uma concep��o de
paralyticos. Ver�s o que � a religi�o humanistica. A absorp��o final,
a phase _contractiva_, � a reconstitui��o da substancia, n�o o seu
anniquilamento, etc. Vae aonde te chamam; n�o esque�as, por�m, que �s o
meu califa.

E vede agora a minha, modestia; filiei-me na Ordem Terceira de ***,
exerci alli alguns cargos, foi essa a phase mais brilhante da minha
vida. N�o obstante, calo-me, n�o digo nada, n�o conto os meus servi�os,
o que fiz aos pobres e aos enfermos, nem as recompensas que recebi,
nada, n�o digo absolutamente nada.

Talvez a economia social pudesse ganhar alguma cousa, si eu mostrasse
como todo e qualquer premio estranho vale pouco ao lado do premio
subjectivo e immediato; mas seria romper o silencio que jurei guardar
neste ponto. Demais, os phenomenos da consciencia s�o de difficil
analyse; por outro lado, se contasse um, teria de contar todos os que
a elle se prendessem, e acabava fazendo um capitulo de psychologia.
Affirmo s�mente que foi a phase mais brilhante da minha vida. Os
quadros eram tristes; tinham a monotonia da desgra�a, que � t�o
aborrecida como a do gozo, e talvez peor. Mas a alegria que se d� �
alma dos doentes e dos pobres, � recompensa de algum valor; e n�o me
digam que � negativa, por s� recebel-a o obsequiado. N�o; eu recebia-a
de um modo reflexo, e ainda assim grande, t�o grande que me dava
excellente id�a de mim mesmo.




CAPITULO CLVIII


Dous encontros


No fim de alguns annos, tres ou quatro, estava enfarado do officio,
e deixei-o, n�o sem um donativo importante, que me deu direito ao
retrato na sacristia. N�o acabarei, por�m, o capitulo sem dizer que vi
morrer no hospital da Ordem, adivinhem quem?... a linda Marcella; e
vi-a morrer no mesmo dia em que, visitando um corti�o, para distribuir
esmolas, achei... Agora � que n�o s�o capazes de adivinhar... achei a
fl�r da moita, Eugenia, a filha de D. Eusebia e do Villa�a, t�o coxa
como a deixara, e ainda mais triste.

Esta, ao reconhecer-me, ficou pallida, e baixou os olhos; mas foi obra
de um instante. Ergueu logo a cabe�a, e fitou-me com muita dignidade.
Comprehendi que n�o receberia esmolas da minha algibeira, e estendi-lhe
a m�o, como faria � esposa de um capitalista. Cortejou-me e fechou-se
no cubiculo. Nunca mais a vi; n�o soube nada da vida della, nem se a
m�e era morta, nem que desastre a trouxera a tamanha miseria. Sei que
continuava coxa e triste. Foi com esta impress�o profunda que cheguei
ao hospital, onde Marcella entrara na vespera, e onde a vi expirar meia
hora depois, feia, magra, decrepita...




CAPITULO CLIX


A semi-demencia


Comprehendi que estava velho, e precisava de uma for�a; mas o Quincas
Borba partira seis mezes antes para Minas Geraes, e levou comsigo a
melhor das philosophias. Voltou quatro mezes depois, e entrou-me em
casa, certa manh�, quasi no estado em que eu o vira no Passeio Publico.
A differen�a � que o olhar era outro. Vinha demente. Contou-me que,
para o fim de aperfei�oar o Humanitismo, queim�ra o manuscripto todo e
ia recome�al-o. A parte dogmatica ficava completa, embora n�o escripta;
era a verdadeira religi�o do futuro.

--Juras por Humanitas? perguntou-me.

--Sabes que sim.

A voz mal podia sair-me do peito; e ali�s n�o tinha descoberto toda
a cruel verdade. O Quincas Borba n�o s� estava louco, mas sabia que
estava louco, e esse resto de consciencia, como uma frouxa lamparina
no meio das trevas, complicava muito o horror da situa��o. Sabia-o,
e n�o se irritava contra o mal; ao contrario, dizia-me que era ainda
uma prova de Humanitas, que assim brincava comsigo mesmo. Recitava-me
longos capitulos do livro, e antiphonas, e litanias espirituaes; chegou
at� a reproduzir uma dansa sacra que inventara para as ceremonias do
Humanitismo. A gra�a lugubre com que elle levantava e sacudia as pernas
era singularmente fantastica. Outras vezes amuava-se a um canto, com os
olhos fitos no ar, uns olhos em que, de longe em longe, fulgurava um
raio persistente da raz�o, triste como uma lagrima...

Morreu pouco tempo depois, em minha casa, jurando e repetindo sempre
que a dor era uma illus�o, e que Pangloss, o calumniado Pangloss, n�o
era t�o tolo como o suppoz Voltaire.




CAPITULO CLX


Das negativas


Entre a morte do Quincas Borba e a minha, mediaram os successos
narrados na primeira parte do livro. O principal delles foi a inven��o
do _emplasto Braz Cubas_, que morreu commigo, por causa da molestia
que apanhei. Divino emplasto, tu me darias o primeiro logar entre os
homens, acima da sciencia e da riqueza, porque eras a genuina e directa
inspira��o do ceu. O acaso determinou o contrario; e ahi vos ficaes
eternamente hypocondriacos.

Este ultimo capitulo � todo de negativas. N�o alcancei a celebridade do
emplasto, n�o fui ministro, n�o fui califa, n�o conheci o casamento.
Verdade � que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de n�o
comprar o p�o com o suor do meu rosto. Mais: n�o padeci a morte de D.
Placida, nem a semi-demencia do Quincas Borba. Sommadas umas cousas e
outras, qualquer pessoa imaginar� que n�o houve mingua nem sobra, e
conseguintemente que sai quite com a vida. E imaginar� mal; porque ao
chegar a este outro lado do mysterio, achei-me com um pequeno saldo,
que � a derradeira negativa deste capitulo de negativas:--N�o tive
filhos, n�o transmitti a nenhuma creatura o legado da nossa miseria.

FIM



�NDICE


Ao leitor v

Dedicat�ria vii

Capitulo


             I    Obito do auto
            II    O emplasto
           III    Genealogia
            IV    A id�a fixa
             V    Em que apparece a orelha de uma senhora
            VI    Chim�ne, qui l'eut dit? Rodrigue, qui l'eut cru?
           VII    O delirio
          VIII    Raz�o contra Sandice
            IX    Transi��o
             X    Naquelle dia
            XI    O menino � pae do homem
           XII    Um episodio de 1814
          XIII    Um salto
           XIV    O primeiro beijo
            XV    Marcella
           XVI    Uma reflex�o immoral
          XVII    Do trapezio o outras cousas
         XVIII    Vis�o do corredor
           XIX    A bordo
            XX    Bacharelo-me
           XXI    O almocreve
          XXII    Volta ao Rio
         XXIII    Triste, mas curto
          XXIV    Curto, era alegre
           XXV    Na Tijuca
          XXVI    O autor hesita
         XXVII    Virgilia?
        XXVIII    Contanto que
          XXIX    A visita
           XXX    A flor da moita
          XXXI    A borboleta preta
         XXXII    C�xa de nascen�a
        XXXIII    Bem aventurados os que n�o descem
         XXXIV    A uma alma sensivel
          XXXV    O caminho de Damasco
         XXXVI    A proposito de botas
        XXXVII    Emfim!
       XXXVIII    A quarta edi��o
         XXXIX    O visinho
            XL    Na sege
           XLI    A allucina��o
          XLII    Que escapou a Aristoteles
         XLIII    Marqueza, porque eu serei marquez
          XLIV    Um Cubas!
           XLV    Notas
          XLVI    A heran�a
         XLVII    O recluso
        XLVIII    Um primo de Virgilia
          XLIX    A ponta do nariz
             L    Virgilia casada
            LI    � minha!
           LII    O embrulho mysterioso
          LIII    . . . . . .
           LIV    A pendula
            LV    O velho dialogo de Ad�o e Eva
           LVI    O momento opportuno
          LVII    Destino
         LVIII    Confidencia
           LIX    Um encontro
            LX    O abra�o
           LXI    Um projecto
          LXII    O travesseiro
         LXIII    Fujamos!
          LXIV    A transac��o
           LXV    Olheiros e escutas
          LXVI    As pernas
         LXVII    A casinha
        LXVIII    O vergalho
          LXIX    Um gr�o de sandice
           LXX    D. Placida
          LXXI    O sen�o do livro
         LXXII    O bibliomano
        LXXIII    O _lunch_
         LXXIV    Historia de D. Placida
          LXXV    Commigo
         LXXVI    O estrume
        LXXVII    Entrevista
       LXXVIII    A presidencia
         LXXIX    Compromisso de gato
          LXXX    De secretario
         LXXXI    A reconcilia��o
        LXXXII    Quest�o de botanica
       LXXXIII    13
        LXXXIV    O conflicto
         LXXXV    O cimo da montanha
        LXXXVI    O mysterio
       LXXXVII    Geologia
      LXXXVIII    O enfermo
        LXXXIX    _In extremis_
            XC    O velho colloquio do Ad�o e Caim
           XCI    Uma carta extraordinaria
          XCII    Um homem extraordinario
         XCIII    O jantar
          XCIV    A causa secreta
           XCV    Flores de antanho
          XCVI    A carta anonyma
         XCVII    Entre a boca e a testa
        XCVIII    Supprimido
          XCIX    Na plateia
             C    O caso provavel
            CI    A revolu��o dalmata
           CII    De repouso
          CIII    Distrac��o
           CIV    Era elle!
            CV    Equivalencia das janellas
           CVI    Jogo perigoso
          CVII    Bilhete
         CVIII    Que se n�o entende
           CIX    O philosopho
            CX    31
           CXI    O muro
          CXII    A opini�o
         CXIII    A solda
          CXIV    Fim do um dialogo
           CXV    O almo�o
          CXVI    Philosophia das folhas velhas
         CXVII    O Humanitismo
        CXVIII    A terceira for�a
          CXIX    Parenthesis
           CXX    _Compelle intrare_
          CXXI    Morro abaixo
         CXXII    Uma inten��o mui fina
        CXXIII    O verdadeiro Cotrim
         CXXIV    V� de intermedio
          CXXV    Epitaphio
         CXXVI    Desconsola��o
        CXXVII    Formalidade
       CXXVIII    Na camara
         CXXIX    Sem remorsos
          CXXX    Por intercallar no cap. CXXIX
         CXXXI    De uma calumnia
        CXXXII    Que n�o � serio
       CXXXIII    O principio de Helvetius
        CXXXIV    Cincoenta annos
         CXXXV    _Oblivion_
        CXXXVI    Inutilidade
       CXXXVII    A barretina
      CXXXVIII    A um critico
        CXXXIX    De como n�o fui ministro d'Estado
           CXL    Que explica o anterior
          CXLI    Os c�es
         CXLII    O pedido secreto
        CXLIII    N�o vou
         CXLIV    Utilidade relativa
          CXLV    Simples repeti��o
         CXLVI    O programma
        CXLVII    O desatino
       CXLVIII    O problema insoluvel
         CXLIX    Theoria do beneficio
            CL    Rota��o e transla��o
           CLI    Philosophia dos epitaphios
          CLII    A moeda de Vespasiano
         CLIII    O alienista
          CLIV    Os navios do Pireu
           CLV    Reflex�o cordial
          CLVI    Orgulho da servilidade
         CLVII    Phase brilhante
        CLVIII    Dous encontros
          CLIX    A semi-demencia
           CLX    Das negativas





End of the Project Gutenberg EBook of Memorias Postumas de Braz Cubas, by 
Machado de Assis

*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK MEMORIAS POSTUMAS DE BRAZ CUBAS ***

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Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541. Contributions to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by
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The Foundation's principal office is in Fairbanks, Alaska, with the
mailing address: PO Box 750175, Fairbanks, AK 99775, but its
volunteers and employees are scattered throughout numerous
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Lake City, UT 84116, (801) 596-1887. Email contact links and up to
date contact information can be found at the Foundation's web site and
official page at www.gutenberg.org/contact

For additional contact information:

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    Chief Executive and Director
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