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a pos-graduação e os genios



Colegas

Eu gostaria de compartilhar com voces um artigo que achei muito interessante do
Renato Janine Ribeiro publicado no último informativo da Capes.

Márcia.

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              A pós-graduação e os gênios

A antropóloga Eunice Durham, minha colega na Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da USP, foi presidente da Capes. No exercício desse cargo,
visitou a Congregação da Faculdade e criticou os professores não produtivos. Um
professor presente, pessoa a quem respeito muito, argumentou: "Eunice, mas deste
jeito Espinosa (que publicou pouquíssimo em vida) nunca teria sido aceito pela
Capes como professor!" 

E a professora Eunice respondeu: "O problema é que todos os que não publicam
acham que são Espinosa". 

Poderíamos transformar esta questão num silogismo errado: Sócrates não escreveu
nada (primeira premissa); Sócrates foi um gênio (segunda premissa); quem não
escreve nada é gênio (conclusão). Mesmo intuitivamente, dá para perceber que
aqui há um erro lógico sério. Quando muito, poderíamos concluir que mesmo quem
não escreve nada pode ser um gênio. Não mais que isso. 

Podemos também mostrar as mudanças na forma pela qual se dá a produção
científica. No século V a.C., quando viveu Sócrates, ou mesmo no século XVII,
quando floresceu Espinosa, os custos da pesquisa científica eram bastante
baixos, ela se fazia por indivíduos mais do que por grupos (embora houvesse
escolas e discípulos em Atenas, e Espinosa fosse contemporâneo da criação da
Royal Society - que, por sinal, não aceitou entre seus membros Thomas Hobbes).
Hoje, sem uma rede de interlocutores, boas bibliotecas e laboratórios, pouco se
faz em termos de ciência ou de geração de conhecimento de qualidade. 

Mas cabe a questão: um sistema que se baseia na avaliação externa por pares e
privilegia a produção científica nos melhores periódicos ou editoras de alguma
forma facilita - ou dificulta - a emergência de gênios? Creio que, nos artigos
anteriores, ficou bastante claro que certas críticas à avaliação da Capes, como
o "publish or perish", o "produtivismo" e outras, só podem ser feitas por quem
não tem a menor idéia do que é essa avaliação. Por isso, passamos aqui a outro
patamar. 

O dado preliminar é: hoje temos um sistema científico de alta qualidade, que em
larga medida confere a qualidade do trabalho novo que entra. Mas há trabalhos
que esse sistema recusa. Muitos dos que se opõem aos sistemas de avaliação, de
revisão por pares e outros, alegam que o sistema é enviesado e privilegia, por
exemplo, quem já está dentro (os insiders) em detrimento dos outsiders. 

Isso pode, claro, ocorrer. Cabe a todo sistema de avaliação reduzir ao mínimo o
peso dos preconceitos na entrada do novo. Todo cientista responsável é capaz de
aceitar a qualidade de trabalhos com os quais não concorda - ou deveria ser
capaz de aceitá-la, isto é, de distinguir muito bem o acordo/desacordo e a
qualidade/falta de qualidade. E o dado empírico é que, da ciência rejeitada, dos
trabalhos propostos à publicação e recusados, ou, de modo geral, dos trabalhos
que a academia não aceita, uma fração mínima tem mesmo qualidade. Por mais que
uma vertente romântica goste da idéia do gênio incompreendido, o silogismo "Sou
incompreendido. Um grande cientista, artista ou pensador foi incompreendido.
Portanto, todos os incompreendidos são grandes (cientistas, artistas ou
pensadores)." é falso. Não procede. 

Gênios 
No entanto, existe um número de pessoas, difícil de quantificar, que
efetivamente rompem com os padrões vigentes e conseguem produzir uma obra de
destaque. O mito romântico não seria tão forte se não tivesse uma base de
realidade. Há exageros, como o que diz que Einstein foi mau aluno e de repente
se tornou bom: na verdade, apenas mudou o sistema de notas no seu país natal, de
modo que a escala se inverteu e quem era bom aluno (como ele) continuou sendo,
embora a nota de um ano para outro passasse de 1 para 10, ou de 10 para 1. Mas o
novo também é rejeitado, ainda que depois se imponha. 

A nossa questão então é: um sistema de avaliação por pares facilita, ou
dificulta, a emergência do gênio? Ou a do novo? Podemos responder nas duas
direções. Podemos supor que, formando uma grande massa de pesquisadores em
física, ou filosofia, que dialogam entre si, que conhecem cada vez mais, nós
facilitamos que alguns deles se despontem pela sua originalidade e se alcem à
condição de gênios - ou que, pelo mesmo processo, nós os tornamos homogêneos e
pouco abertos à novidade. Tendo mais a acreditar na primeira opção, mas são
assuntos abertos à discussão. E, de todo modo, o advento da novidade, ou da
genialidade, nunca é fácil. 

Então, poderíamos deslocar a questão e formular duas hipóteses. Aliás, as idéias
expostas neste artigo são claramente pessoais e nada têm de institucional. Não
são as idéias de um diretor de avaliação, mas são hipóteses de um professor que
aprendeu na e com a Capes. Não empenham a agência, nem a mim mesmo: são como as
idéias que o sobrinho de Rameau, no livro de Diderot, manda passearem. Caminhar
sempre foi útil para pensar. 

A primeira é que, talvez, o gênio não dependa tanto de sua formação. Se
pensarmos no gênio, num sentido bastante exigente, como alguém que faz o balanço
entre respeitar as convenções (que são tão necessárias até para o convívio
social) e criar o novo pender para o segundo lado, então poderíamos pensar que o
gênio terá dificuldades de convívio, será obcecado, talvez seja uma pessoa de
poucas (mas excelentes) idéias¹ . Esta é uma hipótese, que poderia ser reforçada
com a teoria do desafio, desenvolvida por um historiador hoje pouco lembrado, A.
J. Toynbee, em seu A Study of History. Toynbee sustentava que uma civilização se
desenvolvia mais quando tinha de enfrentar um desafio (por isso, em lugares
muito aprazíveis a civilização não chegou a um grande avanço), mas não um
desafio excessivamente grande (daí que, nos desertos e nos gelos extremos, ela
também não tivesse seus melhores escores). Pode ser que o gênio tenha a ver com
o desafio e, por isso, escolas para gênios não sejam a melhor maneira de
fazê-los desenvolver suas potencialidades. Talvez seja mais eficaz a dificuldade
(se não extrema) do que a facilidade. Talvez. 

A segunda questão é se a missão da avaliação - e por extensão das agências
estatais de fomento - é formar gênios. Pelo que sugeri acima, gênios não são
formados de fora para dentro. Podem ser ajudados (talvez, ao serem
dificultados). Eles se formam a si mesmos (com alguma ajuda/dificuldade). Mas o
que um projeto de Estado, ou de sociedade, pode realizar é - possivelmente - a
formação de uma massa significativa de pessoas bem capacitadas a desenvolver
pesquisas e a adiantar o conhecimento. Por isso Eunice Durham tinha razão: não é
qualquer improdutivo que é um Espinosa; e poderíamos acrescentar: e não está em
nossas mãos o segredo de como formar Espinosas e Sócrates. 

Tudo isso posto, e neste mais pessoal de meus artigos na presente série, o que
precisamos é não apenas formar pessoas capacitadas, mas gerar constantemente a
capacidade de elas criticarem o próprio sistema em que se formaram. Estes anos,
temos discutido muito a avaliação. Acreditamos que, com isso, ela avançou. É
preciso repor em xeque as frases e idéias aceites. Isso deveria estar mais na
agenda da pesquisa do que está. "Sempre zombei de todo pensador que não zombou
de si mesmo", assim começa Nietzsche seu livro A gaia ciência. Uma autocrítica é
sempre enriquecedora. 


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¹Aqui há uma história e uma referência bibliográfica. Conta-se que Einstein,
visitando o Brasil, foi acompanhado por um acadêmico ilustre ? que de tempos em
tempos retirava uma caderneta do bolso e escrevia alguma coisa. O cientista lhe
perguntou: "O que o senhor tanto escreve assim?" O nosso acadêmico: "Cada vez
que uma idéia nova me ocorre, eu a anoto, para não a esquecer. O senhor não faz
a mesma coisa?" E a resposta de Einstein teria sido: "Não, eu só tive uma idéia
na vida". 
A referência bibliográfica é ao livro de Isaiah Berlin, The Fox and the
Hedgehog, que obviamente não é a fonte da historieta acima. Berlin distingue os
pensadores ouriços, que perseguem uma única idéia na vida, dos pensadores
raposas, que percorrem um sem-fim de idéias. Hegel seria um ouriço, Nietzsche
uma raposa. Tolstoi, a cujo estudo Berlin dedica o livro, seria uma raposa que
se esforçou a vida toda por ser ouriço. 
Renato Janine Ribeiro 



Marcia D'elia Branco <mbranco@ime.usp.br>