Para Fernando Tula Molina, da Universidade de Quilmes, as crenças
de que a ciência e a tecnologia são politicamente neutras e de que as
inovações são sinônimo de progresso afastam o conhecimento das
necessidades sociais
Fábio de Castro escreve para a ?Agência
Fapesp?:
A ciência e a tecnologia estão longe de ser politicamente
neutras e as novas descobertas não correspondem necessariamente a
progressos para a sociedade, segundo o professor Fernando Tula Molina, da
Universidade de Quilmes, na Argentina. Para ele, embora façam parte do
senso comum, as noções de neutralidade científica e determinismo
tecnológico representam obstáculo para uma ciência democrática, capaz de
melhorar a sociedade.
Ideias como essas foram expostas por Molina
em nove sessões entre agosto e dezembro de 2008, durante o 15º Seminário
Internacional de Filosofia e História da Ciência, realizado pelo Grupo de
Filosofia, História e Sociologia da Ciência e da Tecnologia do Instituto
de Estudos Avançados (IEA), da Universidade de São Paulo (USP).
O
seminário foi um produto do Projeto Temático Gênese e significado da
tecnociência: relações entre ciência, tecnologia e sociedade, Universidade
de São Paulo, apoiado pela Fapesp e coordenado por Pablo Rubén Mariconda,
do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da USP.
Doutor em filosofia pela Universidade de Buenos
Aires, Molina permaneceu no Brasil como professor convidado do projeto. No
evento, discutiu o tema ?Controle, rumo e legitimidade das práticas
científicas".
Para avaliar as implicações científicas e sociais das
práticas tecnológicas, o professor propõe uma distinção entre a ?eficácia?
e a ?legitimidade? dessas práticas ? e busca elementos conceituais para a
compreensão das origens culturais dessa distinção e da complexidade dos
diferentes atores envolvidos.
Segundo Molina, que também é
pesquisador adjunto do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e
Técnicas (Conicet), na Argentina, ?essa compreensão contribuirá para que
se encontrem os caminhos que levem ao acordo requerido pelas políticas
científicas nos espaços de diálogo das instituições democráticas?.
? Uma das idéias centrais desenvolvidas pelo senhor durante o
seminário realizado no mês passado em São Paulo é a de que a ciência não
pode ser dissociada da política. Como essa questão foi tratada nos
debates?
Molina ? As discussões tiveram origem em um Projeto
Temático apoiado pela FAPESP dirigido pelo professor Pablo Mariconda, do
Grupo de Filosofia, História e Sociologia da Ciência e da Tecnologia do
IEA, responsável pelo seminário. Esse projeto discute a gênese e os
significados da tecnociência. Isso envolve questões históricas,
filosóficas e sociológicas, mas no fundo tudo está virando uma área
importante ligada à política. Tentamos problematizar duas idéias que hoje
são muito fortes em nossa cultura: a neutralidade da ciência e o
determinismo tecnológico. Essas duas noções estabelecem no imaginário
popular uma idéia de que a ciência é neutra, desprovida de política,
quando, na verdade, a ciência ? e sobretudo a tecnologia ? tem muita
política.
? Como esse aspecto político se manifesta?
Uma
das linhas que está sendo desenvolvida é que essa política pode ser vista
com clareza, por exemplo, no chamado código técnico. Esse gravador digital
que você está utilizando, por exemplo, possui um design que encerra em si
todo o contexto de sua concepção e está ligado a determinadas estratégias.
Essas estratégias representam interesses ? que, no caso de uma sociedade
capitalista, correspondem aos interesses das corporações. São interesses
que têm a ver com o consumismo tecnológico. O projeto do gravador já prevê
quando ele sairá de linha, isto é, carrega consigo uma estratégia de
obsolescência programada. Para que você consuma mais, é preciso que na sua
cabeça a aquisição de novos produtos tecnológicos seja entendida como um
progresso. Você acredita que está progredindo e tem um aparelho melhor, de
última tecnologia. Mas eventualmente os aparelhos mais antigos tinham mais
qualidade. Isso é pura política.
? Essa é a idéia do determinismo
tecnológico? Uma crença de que o produto que acaba de ser lançado é
necessariamente melhor, mais eficiente e mais desejável?
Sim. É
uma estratégia de consumo que se baseia na novidade. O produto é um bem
cultural que se vale do valor simbólico que tem a ?eficácia? na nossa
cultura, levando a pessoa a pensar que os produtos desenvolvidos mais
recentemente são melhores. Mas isso é uma falácia. Outra falácia está no
discurso político oficial dos nossos países: a idéia de que o cientista
pode dizer o que é melhor para a sociedade. O cientista não sabe o que é
melhor para a sociedade. Não existem nem mesmo elementos conceituais para
abordar essa questão. O seminário teve, portanto, a tarefa central de
instalar uma discussão e conscientizar sobre alguns erros. Muitos desses
erros, como o individualismo, têm origem filosófica.
? Como o
individualismo é tratado nessa discussão?
Quando a lógica
predominante é a de que alguém só consegue ganhar quando os demais perdem,
o resultado é que as pessoas passam a achar que podem ser livres apenas de
portas fechadas. O que gostaríamos de opor a essa idéia individualista é a
possibilidade de pensar que, ainda hoje, apesar das assimetrias e
desigualdades do capitalismo, podemos aprender a nos organizar de um jeito
diferente e reaprender a conviver. A convivência é o ponto central da
política em um sentido muito antigo, do qual já falava Sócrates. Como
todos os atores, tão diferentes, podem conseguir a felicidade e a
plenitude no meio de todos, no espaço restrito da pólis? A ideia de
democracia que está por trás do seminário é mais profunda que uma noção de
igualdade: é a ideia de que somos todos diferentes.
? Qual o efeito
desse contexto dominado pelo individualismo sobre o desenvolvimento
tecnológico e científico?
Vamos tentar falar do conjunto ciência e
tecnologia: a tecnociência. Se as pessoas acreditam que o investimento em
ciência e tecnologia leva o país a crescer automaticamente, melhorando a
vida da população, temos o determinismo tecnológico. Nesse caso, já que o
resultado seria necessariamente bom para todos, o investimento poderia ser
feito sem preocupação com a participação da coletividade ? esse
determinismo tecnológico é favorecido em um contexto
individualista.
? Então, sem a participação da coletividade nas
decisões científicas e tecnológicas, os avanços do conhecimento não chegam
a beneficiar a sociedade?
Acho que é por isso que temos que
combater o determinismo tecnológico. Com essa lógica, o investimento não
volta diretamente para a população, mas para as corporações. Os
investimentos públicos formam técnicos, especialistas e recursos humanos
para a universidade e para o sistema tecnológico. Mas essas pessoas
poderão desenvolver tecnologias que melhorem as corporações, não
necessariamente o país. Se nossa sociedade tem base tecnológica e
capitalista, mesmo que se possa desenvolver a melhor tecnologia, ela irá
se limitar a desenvolver a tecnologia com melhor custo-benefício. Tudo o
que está envolvido com essas tecnologias será avaliado do ponto de vista
quantitativo, porque estará orientado pela produtividade. Incluindo as
relações com trabalhadores.
? Esse tipo de modelo tecnológico
tenderia a agravar o quadro de exclusão social?
Acredito que sim.
A tecnologia orientada pela produtividade só é acessível a quem tem
determinado poder de consumo. As distâncias sociais que deveriam ser
diminuídas por conta da tecnologia começam a aumentar. O crescimento das
diferenças sociais agrava a violência. No fim, a tecnologia, que poderia
ter um papel de inclusão, acaba fazendo o contrário.
? As
tecnologias sociais seriam um possível caminho para contornar esses
problemas?
O Brasil tem uma rede muito boa de tecnologia social.
Ela tem 700 organizações ? a maioria organizações não-governamentais ?,
sendo 400 muito ativas. Todas pensam em confrontar essa idéia da
tecnologia capitalista associada à corporação. Nesse modelo fundamentado
na produtividade, não se pode acessar o conhecimento ? que deve ser
patenteado. O usuário não é dono do meio onde essa tecnologia vai se
produzir e não se pode decidir para onde vai o benefício do
desenvolvimento.
? Essas tecnologias teriam então mais
legitimidade?
As tecnologias sociais têm um papel importante na
democratização do conhecimento, mas elas não chegam a garantir a
legitimidade da forma como a entendemos. É preciso distingui-la da
eficácia. A tecnociência tem eficácia, mas não tem legitimidade social.
Esses dois conceitos muitas vezes são confundidos no próprio discurso do
desenvolvimento tecnológico, que está baseado na ideia de controle. O que
é o controle? Uma coisa é poder controlar a matéria ou a partícula ? como
pode a nanotecnologia ? no espaço e no tempo. Esse é o controle
científico, que é necessário e desejável. Mas não suficiente. Outra coisa
é poder dar legitimidade a esse controle.
? E como dar mais
legitimidade ao controle das práticas científicas?
Para mim, a
legitimidade não está no conteúdo das decisões sobre os rumos
tecnológicos, mas no jeito como essas decisões são tomadas. Se a decisão
foi tomada de maneira coletiva e democrática e daí gerou os rumos e
decisões, isso a legitima, não pelo conteúdo, mas pela forma coletiva. O
que temos que pensar é quais são os atores em cada âmbito que deveriam
participar democraticamente, sendo reconhecidos como diferentes e
igualmente importantes, do rumo mais democrático da enorme capacidade
tecnológica que já temos. Mas se não conseguimos dar a isso um caráter
democrático, então o rumo será tecnocrático e corporativo. A
responsabilidade é nossa. A palavra-chave é participação.
? Há
propostas para melhorar essa participação?
O controle tecnológico,
voltado para o controle da matéria no espaço e no tempo, não tem, em si,
nenhuma legitimidade. Propomos dois novos eixos para pensar essa
legitimidade: o tempo da educação e o espaço da participação política.
Para melhorar essa participação, temos que gerar um espaço de protagonismo
social em que os outros atores possam interagir com os cientistas. O
especialista tem uma função consultiva importante, um compromisso de
indicar as possibilidades, mas não a prerrogativa de ditar os rumos. Com a
ajuda dele, o leigo poderia ter a possibilidade democrática de decidir o
futuro. Mas isso não acontece. Na nossa organização estamos excluídos de
todas as decisões tecnológicas. Não temos o espaço da participação
política.
? E quanto ao tempo da educação?
Levamos tempo
para educar alguém a ser crítico com a tecnologia e a conhecer sua própria
capacidade de decisão e sua autonomia de criatividade. Essa é a dimensão
do tempo da educação. Temos que introduzir essa discussão na escola
inicial, porque ali as crianças já têm celular, videogames e muitas
possibilidades tecnológicas. Seria importante começar a combater cedo a
idéia introjetada de que a ciência é apolítica. Ao superar as idéias de
neutralidade e determinismo do desenvolvimento tecnocientífico, só nos
restará a possibilidade de um desenvolvimento político, democrático, com
participação cidadã. Mas esse cidadão crítico ainda não existe, daí a
importância dessa dimensão da educação.
? Ainda estamos muito
distantes da formação desse cidadão crítico?
Talvez nem tanto.
Podemos pensar no que aconteceu com a cultura ecológica. As crianças e as
novas gerações já colocam o problema ecológico de forma mais prioritária.
Isso ocorreu, entre outros fatores, porque a ecologia começou a ser
apresentada às crianças de forma muito forte, desde a escola inicial. Acho
que poderia acontecer o mesmo com o problema tecnológico. Para isso temos
que começar a refletir com mais clareza sobre lixo tecnológico,
obsolescência planejada, qualidade tecnológica, durabilidade, tecnologias
para o futuro, tecnologias sustentáveis, tecnologias adequadas aos
problemas ? e não apenas ao consumo em massa ? e tecnologias customizadas,
que não impõem uma única solução, como se fôssemos todos iguais.
(Agência Fapesp,
16/1)