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Artigo do Marcelo Gleiser
Caros Redistas,
Interessante artigo abaixo publicado neste domingo pela Folha de
São Paulo. Saudações, Gauss
*Marcelo Gleiser
Será Deus um matemático?
A geometria vem de um cérebro adaptado ao mundo em que existe
O título desta coluna vem de um livro recém-lançado nos EUA, de
autoria do astrofísico Mario Livio. Nele, Livio examina a origem da
matemática. Será ela obra da mente humana, uma invenção? Ou será que
descobrimos a matemática que já existe, uma espécie de superestrutura
conceitual que define o Universo e suas leis? Os que acreditam que
seja esse o caso gostam da metáfora (atenção!) de que a matemática é a
expressão da mente de Deus: Deus é o grande geômetra, o arquiteto
universal.
O grande físico teórico Eugene Wigner, que ganhou o Prêmio Nobel pelos
seus estudos das simetrias matemáticas que regem o comportamento
atômico, achava a eficácia da matemática na descrição dos fenômenos
naturais surpreendente. Por que ela funciona tão bem a ponto de nos
permitir prever coisas que nem sabíamos que poderiam existir? Por
exemplo, quando o escocês James Clerk Maxwell mostrou que todos os
fenômenos elétricos e magnéticos podem ser descritos por apenas quatro
equações, não poderia imaginar que dessa união viria a descoberta de
que a luz é uma onda eletromagnética e que outras existem, invisíveis
aos nossos olhos, como os raios X ou as micro-ondas. Várias partículas
elementares da matéria foram descobertas usando apenas princípios de
simetria. Será que a natureza é mesmo uma estrutura matemática?
Livio descreve argumentos a favor dessa hipótese e contra ela, optando
por uma solução de compromisso: parte é descoberta e parte inventada.
A favor, ele mostra como, de fato, a matemática tem uma permanência
diversa da das ciências naturais: um teorema matemático, uma vez
demonstrado, é correto para sempre. Já em física ou química,
explicações que parecem razoáveis numa época às vezes se provam
erradas, ou aproximações de explicações mais sofisticadas.
Será, então, que uma civilização extraterrestre redescobriria os
mesmos resultados matemáticos do que nós, como se fossem uma espécie
de código da natureza? Pitágoras, Platão, Galileu, Newton, Einstein,
muitos matemáticos (mas não todos) e os físicos que hoje trabalham em
teorias de supercordas diriam que sim. Talvez mudem os símbolos, mas a
essência dos resultados seria a mesma.
Um astrofísico do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), Max
Tegmark, chega a afirmar que o Universo é matemática e que infinitos
outros universos existem, replicando todas as combinações lógicas e
geométricas possíveis. Acho que Tegmark confundiu a ficção de Jorge
Luis Borges com a realidade. Sua posição é, para mim, religiosa.
Não há dúvida de que certos resultados matemáticos, como 2 + 2 = 4,
são verdadeiros independentemente de como sejam descritos. Mesmo
assim, vou além de Livio e afirmo que a matemática é uma invenção
humana, uma linguagem criada para descrever a nossa realidade. Somos
produtos de milhões de anos de evolução, adaptados ao mundo em que
vivemos.
Na superfície da Terra vemos árvores, pedras e animais, unidades que
naturalmente definem os números inteiros, que usamos para contar. No
céu vemos estrelas e imaginamos constelações. Uma criatura marinha
inteligente e solitária, vivendo nas profundezas e sem luz ou outras
formas de vida por perto, provavelmente desenvolveria uma outra
matemática.
Nossa geometria descreve aproximadamente as formas que vemos à nossa
volta; esferas, quadrados, cubos, círculos, linhas. Ela vem de um
cérebro adaptado ao mundo em que existe. Se uma civilização
extraterrestre tiver desenvolvido linguagem equivalente, é porque
existe numa realidade semelhante. O único Deus matemático é aquele que
inventamos.
MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em
Hanover (EUA), e autor do livro "A Harmonia do Mundo"