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Artigo na Folha de SÃo Paulo



Folha de SÃo Paulo, 24 de janeiro de 2011
LUIZ FELIPE PONDÃ

Casa Grande


Para alguns, universidade à coisa de elite e pronto, e sà assim realiza bem sua funÃÃo. Sou um desses

SOU UM acadÃmico. Adoro dar aula, estudar, participar de seminÃrios. O milagre de ver os olhos de um aluno transparecer a experiÃncia do conhecimento à um prazer imenso. Todo dia agradeÃo a Deus pela coragem de ter trocado a medicina pela filosofia, ainda que, no fundo, continue vendo o mundo com os olhos do mÃdico. A medicina impregna a alma com a percepÃÃo da fragilidade da fronteira entre fisiologia e patologia.
Mas nem por isso deixo de ver que minha tribo padece de contradiÃÃes especÃficas, e que, em nosso caso, podem ser bem dramÃticas, uma vez que somos responsÃveis pela produÃÃo de grande parte do conhecimento pÃblico.
Uma dessas contradiÃÃes à a relaÃÃo entre universidade e elite. Para alguns, universidade à elite e pronto, e sà assim realiza bem sua funÃÃo. Sou um desses. Jà na Idade MÃdia, fosse Paris, Oxford ou Salamanca, era coisa de elite.
O pensador conservador e historiador das ideias americano Russel Kirk, jà nos anos 50 (recomendo fortemente a leitura do seu livro "Academic Freedom", de 1955), advertia-nos acerca da "proletarizaÃÃo" das universidades, na medida em que ela passava a ser uma opÃÃo de ascensÃo social para a classe mÃdia e "gente sem posses".
Hoje, isso à fato. A forma como "carreira salarial" e "produÃÃo acadÃmica" se relacionam e se confundem no cotidiano da gestÃo universitÃria na forma de "critÃrio de qualidade" à uma prova cabal do argumento de Kirk. O fato à que quase sempre a discussÃo sobre "reconhecimento da produtividade" sà vale se for materializado em ganho salarial, apesar das tentativas de maquiarmos o fato. No fundo, à quase tudo uma polÃmica sobre folha de pagamento.
Mas nÃo à disso que quero falar. A relaÃÃo entre universidade e elite tem outras nuances que apontam para as contradiÃÃes do mundo contemporÃneo e sua relaÃÃo com a ideia de "democratizaÃÃo do ensino". A vocaÃÃo da universidade no cenÃrio da democracia se confunde com a ideia de universalizar a formaÃÃo superior ao mesmo tempo em que deve formar quadros tÃcnicos de gestÃo da sociedade, da ciÃncia e da cultura superior.
Daà que seja comum minha tribo tomar a palavra pÃblica em favor da "democratizaÃÃo do ensino" e da "democracia nas instÃncias internas da universidade". Aqui surgem duas das contradiÃÃes Ãs quais me refiro.
A primeira tem a ver, no Brasil, com a abertura de universidades Ãs centenas e em quase toda esquina, quase sempre com qualidade duvidosa. "Universidades a R$ 399,90 por mÃs."
Contra essa tendÃncia, colegas gritam, com razÃo, denunciando a mà formaÃÃo em questÃo. Mas o fato à que democratizaÃÃo significa quase sempre "barateamento do produto". Para muita gente pobre cursar universidades pÃblicas ou particulares de renome e tradiÃÃo à impossÃvel, seja pelo restrito nÃmero de vagas, seja pelo alto custo financeiro.
A verdade à que o carÃter e litista travestido de "democrÃtico" da minha tribo revela aqui a falsidade de sua natureza e a alienaÃÃo tÃpica de quem vive regado a leite de pato na casa grande. NÃo se pode democratizar garantindo "vinho francÃs pra todo mundo". Basta vermos o barateamento do voto à medida que a democracia brasileira assimila suas classes C e D. Universidade boa à coisa cara e brasileiro nÃo tem dinheiro.
A segunda à pior ainda. Muitos de nÃs mentimos sobre a "democracia" e a transparÃncia interna da universidade.
Devido muito ao hÃbito oligÃrquico de nosso paÃs, "estrelas" da elite das grandes universidades, publicamente "implicadas" com democracia e transparÃncia, no cotidiano da universidade agem como o mais comum "senhor da casa grande", buscando garantir geraÃÃes futuras do quadro docente dentro do seu grupo de discÃpulos, realizando um verdadeiro "bullying" contra integrantes de grupos institucionalmente mais frÃgeis.
A universidade à dilacerada por lobbies internos que fazem dela um exemplo tÃpico das oligarquias da "casa grande e senzala". O uso da burocracia interna faria qualquer "peemedebista" chorar de inveja. Quem for inocente que atire a primeira pedra.

ponde.folha@uol.com.br






"There is no branch of mathematics, however abstract, which may not some day be applied to phenomena of the real world" (Lobachevsky).



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