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Harvard brasileira



Fonte: http://vejabrasil.abril.com.br/rio-de-janeiro/editorial/m2356/nossa-pequena-harvard

23/03/2011
Educaç

Nossa pequena Harvard

Caio Barreto Briso 

Escondido em meio àloresta da Tijuca e pouco conhecido atéesmo dos cariocas, o Instituto Nacional de Matemáca Pura e Aplicada rivaliza em excelêia com as melhores universidades americanas

Germano Luders / Fernando Lemos
Welington de Melo, Jacob Palis e Artur Áila, na Biblioteca do Impa (foto do préo principal abaixo): trêgeraçs de talentos

Passada a primeira curva da Estrada Dona Castorina, que leva ao mirante da Vista Chinesa, no bairro do Horto, sobressai a entrada de uma propriedade cercada pelas áores da Floresta da Tijuca. Ali, em um terreno de 15 000 metros quadrados, um vasto préo se esparrama por trêalas. Pelos corredores, o silêio monáico éortado de tempos em tempos por diágos em portuguê inglê francêe espanhol. Nãraro, incorporam-se a essa babel de idiomas expressõem russo e mesmo persa, uma das líuas mais antigas do planeta. Énesse ambiente, mistura de bucolismo e aldeia global, que 226 matemácos desenvolvem estudos complexos e projetos de repercussãinternacional. Embora nãseja muito conhecido entre os próos cariocas, o Instituto Nacional de Matemáca Pura e Aplicada (Impa) énanimemente apontado entre os especialistas como um dos principais centros de pesquisa do mundo. Ancorado em sóa produç cientíca, exibe uma performance surpreendente, ultrapassando íices de departamentos de universidades americanas como Harvard, Princeton e Berkeley. Segundo dados da American Mathematical Society, a instituiç brasileira publica, em méa, 2,03 artigos relevantes por pesquisador ao ano, enquanto Harvard alcanç1,89 e Princeton, 1,83 (veja o acima). “Sempre buscamos a excelêia, e essa performance épenas o resultado desse compromisso”, orgulha-se o diretor Cér Camacho.

Sabe-se que um nú de ensino superior se torna respeitado àedida que consegue atrair talentos dos quatro cantos do globo. Entre os centros americanos, considerados os primeiros do mundo, a presençde acadêcos estrangeiros chega a 30%. No perío áeo do sistema universitáo alemã na déda de 20 e inío dos anos 30, quando a importaç de cébros era incentivada, o paíproduziu 21 prêos Nobel. Portanto, faz parte da vocaç de uma ilha de excelêia reunir grandes cabeç, independentemente de onde elas estejam. Um recente processo para a escolha de dez vagas nos programas de pesquisa e póoutorado dáma ideia da reputaç internacional do Impa. Anunciado o “vestibular”, apareceram 185 candidatos. Da Europa, vieram 66. Da Áia e Améca do Norte, 43 e 26, respectivamente. Os latino-americanos perfaziam 28, enquanto os brasileiros eram 23. Encerrada a seleç, apenas duas posiçs foram ocupadas por estudantes daqui, um cearense e uma gaú Outras sete foram divididas por representantes de naçs diferentes (Inglaterra, Alemanha, Espanha, Itáa, Portugal, Israel e Rú). E detalhe: uma úa vaga permaneceu em aberto por falta de postulante suficientemente qualificado. “Nãtemos cota. Simplesmente escolhemos os melhores”, diz Camacho. Uma vez selecionados, os póoutorandos ganham 7 500 reais mensais, enquanto os pesquisadores têsaláos entre 12 000 e 15 000 reais.

Nãéál reproduzir em palavras todo tipo de trabalho desenvolvido no câus do Horto — para isso, seria melhor fazer uso de equaçs e algoritmos. Alguns projetos, poré sãde fál entendimento. Existem aplicativos para iPhone, simuladores de realidade virtual e atém recorde mundial alcanço em 2010: uma imagem com a maior resoluç gráca do planeta (veja o quadro aqui). Tamanha produtividade, pouco comum entre nópode ser explicada por diversas razõ Mas a principal delas é capacidade dos que ali estã O Impa tem formado sucessivas geraçs de gente que faz diferenç O mais reconhecido éacob Palis, 71 anos, tido como gêo mundial dos sistemas dinâcos. No ano passado, Palis, doutor por Berkeley, nos Estados Unidos, foi agraciado com o Prêo Balzan, uma das principais distinçs europeias. Aléde ser o primeiro brasileiro a receber a honraria — e o 1,2 milhãde reais que a acompanha — , Palis tornou-se o sémo matemáco a entrar para o grupo de agraciados. Empenhado em transmitir seus conhecimentos, ele se emociona ao relembrar que orientou 41 teses de doutorado ao longo da carreira. Desde entã esses mesmos doutores jáormaram outros 150 matemácos do instituto. “Essa é essêia do conhecimento, em que os mais experientes formam os mais jovens, sucessivamente”, resume.

Fernando Lemos
Os pesquisadores Diego Nehab e Carolina Araúambos de 34 anos: volta ao Brasil depois de cursarem doutorado em Princeton, uma das universidades mais importantes do mundo

Tal filosofia, fortemente baseada na meritocracia, deu origem a uma linhagem de superpesquisadores como Marcelo Viana, Ricardo Mañ Welington de Melo, reconhecidos no Brasil e no exterior pela notó desenvoltura com nús. E desaguou em prodíos como Artur Áila, de 31 anos. Ele éonsiderado o mais forte candidato a ganhar a medalha Fields, uma espée de Prêo Nobel de Matemáca, entregue a cada quatro anos. Seria o primeiro brasileiro a conquistáa. Háma déda, antes mesmo de ter um diploma de graduaç, ele havia concluí seu doutorado no Impa. Famoso no exterior pela capacidade de resolver os problemas mais complexos, ele se divide hoje entre Paris, onde ém dos diretores do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), e o Rio de Janeiro. “A maioria das pessoas sónhece o tema nos tempos de escola e ignora o vasto horizonte nessa áa”, diz. Áila, de fato, respira o assunto. Nãraro, acorda no meio da noite com ideias e novos caminhos para suas teses. Durante o banho, nas caminhadas e atéo metrôs equaçs lhe vêàabeç Costuma dizer que prefere nãdirigir porque, devido a sua capacidade de abstraç, poderia perder a concentraç e bater o carro.

Fernando Lemos
Sala de estudos do câus, no Horto: atmosfera ao mesmo tempo informal e cosmopolita

Por qualquer âulo que se olhe, a educaç brasileira estáonge do ideal. Em seu ranking mais recente sobre o ensino fundamental, a Unesco atribuiu ao paía 88ª posiç entre as 127 naçs analisadas — atráde Bolía e Namía. Outra lista, sobre as 200 melhores universidades do mundo, feita pela revista inglesa Times Higher Education, nãincluiu nenhuma das nossas. Ou seja: estamos mal em cima e em baixo. Por nãter cursos de graduaç e se dedicar unicamente àatemáca, o Impa nãévaliado nesse tipo de levantamento. Mas sua trajetó poderia servir de exemplo e inspiraç. Criado pelo governo federal em 1952, o instituto surgiu antes de outros correlatos — como o de Pesquisas Espaciais em SãJoséos Campos (SP) e o da Amazô, em Manaus. Com o tempo, graç àdoç de um sistema de gestãdiferenciado, foi se descolando de seus pares. Trata-se de uma organizaç que recebe repasses púos, mas tem independêia administrativa. Com isso, as contrataçs e os investimentos sãmais áis. Se a direç julgar procedente, os acadêcos poderãser punidos com a demissã “Isso faz uma enorme diferenç pois dáutonomia. Pesquisa nãse faz no improviso”, afirma o economista Claudio de Moura Castro, especialista e consultor na áa.

Costurados com carinho, os laç com a iniciativa privada têse mostrado outro importante diferencial. A cada ano, o instituto recebe 18 milhõde reais em repasses do Ministéo da Ciêia e Tecnologia. Mas, aléde administrar tais recursos com rigor, busca tambéfinanciadores externos, seja atravéde parcerias, seja por meio de simples filantropia. Desde 2007, por exemplo, o economista e ex-presidente do Banco Central Arminio Fraga doou 1,6 milhãde dóes para seus cofres. O dinheiro foi destinado àriaç de um posto permanente de pesquisador. Em seguida, foi a vez de o banqueiro Pedro Moreira Salles e seu irmã o cineasta JoãMoreira Salles, destinarem 660 000 reais para a manutenç de duas vagas de doutorado e mais duas de póoutorado. O úo a entrar na lista foi o cébre matemáco americano James Simons, dono de uma fortuna de 10,6 bilhõde dóes e o 74º homem mais rico do mundo. No inío do ano, ele se comprometeu a aplicar 1,6 milhãde dóes. “A matemáca éundamental para a boa educaç, e o Impa ém centro de padrãmámo global, talvez a instituiç brasileira de maior prestío internacional”, explica Fraga. “De láaem pessoas que espalham pelo Brasil ideias e padrõessenciais, vitoriosos.”

Fernando Lemos
O inglêMorris, o iraniano Movasati e o argentino Heloani: saláos compatíis com os dos melhores centros e excelentes condiçs de pesquisa atraem matemácos de váos país

Nas grandes universidades do mundo, os pesquisadores de ponta gozam de uma invejál independêia, seja para dispor de seu tempo, seja para escolher os rumos de seu trabalho. O mesmo acontece com os matemácos da ilha de excelêia carioca. O fato de nãterem de dar aulas para graduaç lhes permite uma maior dedicaç a seus próos projetos. Écurioso observar que, frequentemente, um estudante de determinada áa nãentende absolutamente nada das outras. “Eu sou da computaç gráca e as outras especialidades sãpraticamente outra líua para mim”, confessa Diego Nehab. Aos 34 anos, ele éepresentante da nova geraç de estudiosos do instituto. Doutorou-se em Princeton e passou pelo centro de inovaç da Microsoft, na costa oeste americana. Com tantas credenciais, Nehab poderia ter continuado nos Estados Unidos, mas, quando soube da vaga, decidiu que era a hora de voltar. “Aqui tudo funciona. Os equipamentos sãóos”, diz ele. Trajetó semelhante teve Carolina Araúde 34 anos. Como Nehab, ela fez doutorado em Princeton. Lásua sala ficava no mesmo andar do escritó de John Forbes Nash, ganhador do Nobel de Economia em 1994 — e inspirador do filme Uma Mente Brilhante. “Ele ia diariamente àniversidade. Sempre nos cumprimentámos”, recorda. A perspectiva de desenvolver projetos na áa de geometria algéica a animou a trocar os Estados Unidos pelo Rio. Com isso, tornou-se tambéa ú mulher a ocupar um posto na elite do Impa.

Presenç marcantes no belo câus do Horto, os estrangeiros parecem se sentir em casa. Adepto de um uniforme pouco usual entre as estrelas acadêcas de seu paí o argentino Reimundo Heloani, de 33 anos, percorre os amplos corredores do instituto de camiseta, bermuda e chinelo de dedo, aliáum visual comum por ali, principalmente entre os expatriados. Com especializaç no Massachusetts Institute of Technology (MIT) e em Berkeley, escolheu o Brasil para fazer suas pesquisas em uma áa aqui ainda pouco explorada, a fíca matemáca. O inglêRobert Morris, de 30 anos, segue o mesmo estilo. Graduado na Universidade de Cambridge, o maior celeiro de prêos Nobel do planeta (82 no total), ele se diz apaixonado pelo Rio: “O saláo étimo, muito parecido com o que se paga na Europa. Alédisso, os colegas sãmais abertos para a troca de conhecimento”. Com sua mistura de rigor acadêco e informalidade, o Impa atrai atéepresentantes de culturas longíuas, como o iraniano Hossein Movasati. Háuatro anos na cidade, apóma experiêia na Alemanha e no Japã ele foi o primeiro de seu paía estudar na nossa pequena Harvard. Agora, espera que conterrâos sigam seus passos. “Outros virã, avisa Movasati. As portas estãabertas. Mas apenas para os melhores.