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Artigo de Reinaldo Azevedo



O dia em que Battisti foi solto, e Palocci, aplaudido de pÃ

O terrorista homicida Cesare Battisti jà està hospedado num hotel de BrasÃlia. Seis ministros do Supremo Tribunal Federal â Luiz Fux, Carmen LÃcia, Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski, Ayres Britto e Marco AurÃlio de Mello â assim decidiram. Condenado à prisÃo perpÃtua na ItÃlia em julgamento legÃtimo, na vigÃncia de todas as prerrogativas prÃprias a um estado democrÃtico e de direito, ele fugiu, teve negado o seu apelo à Corte EuropÃia de Direitos Humanos e encontrou, finalmente, abrigo no Brasil. Volto ao tema no post abaixo deste. Quase ao mesmo tempo, naquela mesma PraÃa dos TrÃs Poderes, Antonio Palocci se despedia da chefia da Casa Civil, e Gleisi Hoffmann assumia o seu lugar. Ao chegar à solenidade de posse da nova ministra, os presentes se levantaram e aplaudiram de pà o jà ex-ministro. Era mais do que o simples reconhecimento pelo seu trabalho. Ali estava tambÃm um desagravo. Dilma Rousseff, a presidente da RepÃblica, nÃo teve comportamento mais prudente, como se verÃ.

E quem havia agravado o ministro? A verdade! Ao menos o que se sabe dela, jà que parte diz respeito ao que Palocci pretende seja âsigilo profissionalâ. Afinal, como lembrou com ironia eloqÃente Michel Temer, vice-presidente da RepÃblica, âPalocci demonstrou lealdade a seus clientesâ. Por isso mesmo, a lista das empresas Ãs quais ele prestou serviÃo permanecerà secreta. NÃo à da conta dos brasileiros; coisa do empresÃrio Palocci.

A polÃtica brasileira tem, sim, muitos vÃcios, alguns bem antigos, que antecedem a chegada do PT ao poder. Eram e sÃo males profundos, que nÃo se removem facilmente. Basta, no entanto, que a sociedade se eduque no cumprimento da lei e na exigÃncia do seu cumprimento, e haverà sensÃvel melhora. Apelemos a personagens para que o assunto ganhe concretude. Vejam o caso de Paulo Maluf, que ainda està por aÃ, exercendo uma influÃncia nÃo mais do que marginal no processo polÃtico. Criou-se na ditadura, ganhou sobrevida na democracia, mas nÃo chegou a constituir um projeto de poder, uma quase escola de pensamento, uma âÃticaâ. O homem era um romÃntico naquela arte em que o PT se tornaria um especialista. Maluf à uma espÃcie de âherÃiâ solitÃrio naquela sua âprofissÃoâ, nÃo a polÃtica. O PT jà à u m sistema.

Notem: sempre que Maluf foi acusado de alguma coisa, mesmo diante da evidÃncia escancarada do malfeito, a sua reaÃÃo inevitÃvel era esta: âNÃo fui eu!â Aparecia grana na SuÃÃa em seu nome? âSe tiver dinheiro là em nome de Paulo Maluf, podem retirarâ. Vale dizer: em seu estonteante mau gosto polÃtico, Ãtico e moral, ele teve o bom senso ao menos de nunca tentar nos convencer de que o crime à uma virtude. Ele sabe que o errado à errado e que o certo à certo. E sabe que a gente sabe. EntÃo eleâ nega! Sem que a JustiÃa lhe tenha dado, certamente, o tratamento merecido, o fato à que se tornou um polÃtico marginal, reduzido à expressÃo quase folclÃrica. Se os juÃzes nÃo conseguiram tirar de circulaÃÃo, os eleitores o fizeram, restando alguns poucos fiÃis, suficientes para elegÃ-lo deputado, mas nÃo para lhe dar o poder. Quando morrer, levarà consigo uma tÃcnica e uma âtecnologiaâ, intransferÃvel em muitos aspectos.

Outra natureza
O petismo à de outra natureza, e agora caracterizo melhor o que considero a sua contribuiÃÃo original ao estoque de vÃcios antigos. O PT, desde sempre, apresentou-se como um partido da ordem, porÃm hostil a ela. Mesmo no poder, decide quais leis sÃo postas em prÃtica e quais nÃo sÃo; quais merecem a atenÃÃo diligente do estado e quais nÃo merecem. E como foi que o partido logrou Ãxito nesse empreendimento? Distinguindo, no ambiente pÃblico, as âverdades que sÃo da leiâ das âverdades que sÃo da polÃticaâ, de sorte que esta abrigaria prÃticas que, embora nÃo consagradas naquela, devem ser mais do que toleradas; devem mesmo ser consagradas.

NÃo à por outro motivo que todos â eu disse âTODOSâ â os mensaleiros e aloprados estÃo de volta ao partido, recebidos com festa e deferÃncia. Eles fizeram coisas que, para o petismo, sÃo condenÃveis apenas na esfera legal, mas nÃo na esfera polÃtica. AlguÃm poderia indagar: âMas por que isso à diferente de Maluf? à a mesma coisa!â NÃo! Para os petistas, a infraÃÃo legal à uma necessidade imperiosa do jogo; à ela que rompe o cÃrculo do conservadorismo cultivado por seus inimigos, todos comprometidos com o atraso, entenderam? Um Maluf nega que tenha transgredido a lei; um petista tentarà provar que sà o fez para o bem do Brasil e dos brasileiros e em nome de um futuro glorioso. NÃo existe, em suma, interdiÃÃo legal, moral ou Ãtica para um petista. A necessidade do partido dita a sua aÃÃo.< /span>

Em seu discurso de despedida, depois de aplaudido de pà logo à chegada, Palocci evocou a recusa de Roberto Gurgel, procurador-geral da RepÃblica (personagem muito saliente tambÃm no caso Battisti; jà falo a respeito), de determinar a abertura de inquÃrito para investigar seu sÃbito enriquecimento. Tomou aquele texto como evidÃncia de que nÃo transgrediu nenhuma regra. Nesse particular, apelava ao procurador-geral para se sair à moda Maluf: âNÃo fiz nada; nÃo fui euâ. Mas soltou a frase fatal, que, afinal, evidenciava que ali estava um petista algo diferenciado â bonachÃo, boa-praÃa, bom papo, âde mercadoâ â, mas petista ainda assim. Mandou ver:
âO mundo jurÃdico nÃo trabalh a no mesmo diapasÃo do mundo polÃticoâ. Bingo!

Se, tradicionalmente, os petistas se criam sustentando a legitimidade polÃtica de certas aÃÃes, ainda que elas sejam ilegais, Palocci submetia essa oposiÃÃo a uma ligeira torÃÃo, mas mantendo sempre a suposta contradiÃÃo: estaria deixando a Casa Civil porque, embora nada houvesse de legal contra ele (o âmundo jurÃdicoâ), havia uma interdiÃÃo de natureza polÃtica. Que gente formidÃvel! Se, tradicionalmente, o PT sempre usou a legitimidade para apontar o carÃter falÃvel da ordem jurÃdica, Palocci usava a ordem jurÃdica para apontar o carÃter falÃvel da polÃtica. De hÃbito, o PT se mostra hostil à lei em nome da verdade polÃtica; ontem, Palocci se mostrava hostil à polÃtica em nome da verdade da lei. A muitos nÃo terà escapado que o que chamava de âmundo jurÃdicoâ era sà a decisÃo do pr ocurador-geral a RepÃblica, polÃmica para dizer o mÃnimo. Afinal, dela se extrai como corolÃrio que um corrupto que pague impostos â estou falando em tese â pode se criar no moto-contÃnuo da corrupÃÃo: nada se investiga porque nÃo hà indÃcios, e nÃo hà indÃcios porque nada se investiga.

E por que Palocci caiu? Como Roberto Gurgel nÃo se interessou pelo seu caso, ele, entÃo, chama de coisa do âmundo da polÃticaâ o fato de ter se tornado um robusto milionÃrio em quatro anos, tendo recebido parte da fortuna â R$ 20 milhÃes â em ano eleitoral, R$ 10 milhÃes dessa bolada quando jà organizava o futuro governo. COISA DO MUNDO DA POLÃTICA, A SER APLAUDIDA DE PÃ!

O mau passo de Dilma
Depois de ter demonstrado um comportamento omisso e errÃtico na crise â e que se expÃe, a meu ver, na escolha de Gleisi Hoffmann para a Casa Civil â; depois de ter permitido que Lula irrompesse na cena polÃtica como condestÃvel da RepÃblica; depois de ver seu prÃprio partido refugar no apoio Ãquele que era, na prÃtica, o seu primeiro-ministro, Dilma toma uma decisÃo. Nesta quarta-feira, ao se despedir de Palocci, afirmou:
âEu estaria mentido se dissesse que nÃo estou triste. Tenho muitos motivos para lamentar a saÃda de Palocci. Motiv os de ordem polÃtica, pelo papel que desempenhou na minha campanha, administrativa pelo papel que tinha e teria no meu governo. Motivo de ordem pessoal pela amizade que construÃmos.â

As palavras fazem sentido. Nos discursos, fazem histÃria. Ao afirmar âeu estaria mentindo seââ, Dilma està admitindo que, dado o que Palocci fez, ela nÃo deveria estar triste coisa nenhuma. Ali estava uma demissÃo por mÃrito. Muito humana, no entanto, ela se entristecia. E sua voz ficou embargada, o que foi destacado nos telejornais. Como notei aqui, depois de assistir à reportagem do Jornal Nacional, nÃo tive dÃvida: vÃamos tombar um herÃi. Parecia cair porque virtuoso demais!

A emoÃÃo de Dilma levou os presentes a um segundo desagravo. Mais uma vez, levantaram-se todos e aplaudiram de pÃ! E, aÃ, Dilma deu o grande mau passo: olhando para Palocci, com as mÃos ligeiramente estendidas em sua direÃÃo, ela tambÃm o aplaudiu. E ISSO, DEFINITIVAMENTE, DEPÃS CONTRA A PRESIDENTE DA REPÃBLICA.

Poderia, em privado, aplaudir Palocci âpoliticamente, administrativamente e pessoalmenteâ, mas jamais em pÃblico. Presidentes nÃo sÃo macacas de auditÃrio; presidentes nÃo sÃo claque; presidentes nÃo fazem desagravos pessoais a subordinados que estÃo deixando o cargo porque nÃo tÃm condiÃÃes Ãticas de continuar. Ao fazÃ-lo, Dilma estava aplaudindo mais do que um homem; aplaudiu tambÃm um mÃtodo, que, como se percebe, nÃo pode ser trazido à luz da RepÃblica.

Palocci se faz, assim, um homem singular dentro daquela singularidade petista que caracterizei aqui. Envolvido num crime contra uma garantia constitucional â a quebra do sigilo do caseiro Francenildo Costa â, foi reabilitado, ganhou alguns milhÃes e se tornou a principal figura do governo Dilma. Tendo caÃdo uma segunda vez, parte do mundo polÃtico e da imprensa, de novo, prestou-lhe reverÃncia, como se, antes e agora, sua queda nÃo tivesse sido determinada por escolhas que ele prÃprio fez.

A corrupÃÃo do PT vai muito alÃm de questÃes que dizem respeito aos cofres pÃblicos. Corrompem-se os costumes. Corrompe-se a prÃpria noÃÃo do certo e do errado. E por isso muitos aplaudiram o ministro de pÃ, inclusive a presidente da RepÃblica.

Por Reinaldo Azevedo




"There is no branch of mathematics, however abstract, which may not some day be applied to phenomena of the real world" (Lobachevsky).



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