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Deu na Folha de SP de 17/7



(muito bom artigo com pano de fundo o descaso com a saúde no País)


TENDÊNCIAS/DEBATES

Hospital das Clínicas, sempre incomparável

MIGUEL SROUGI

Embora às vezes o HC seja imperfeito, asseguro que a grande maioria dos
seus membros se compromete a tornar a nação menos desigual


Recentemente, jornalistas, promotora e até um médico mais distante
denunciaram imperfeições rondando o Hospital das Clínicas de São Paulo
(HC), o que ecoou intensamente, dada a lucidez ou a notoriedade desse
grupo.
Entre outras coisas, apontaram um pretenso plano de seus gestores e do
governo do Estado para privatizar o HC, transformando-o em centro de
assistência para clientes particulares ou conveniados, em detrimento da
saúde da população mais carente do SUS.
Também satanizaram o dr. Marcos Fumio Koyama, superintendente do HC, que,
mal interpretado, foi acusado de planejar aumento de 3% para 12% o número
de leitos destinados aos convênios.
Mesmo reconhecendo a pertinência dessas preocupações numa nação tomada
pela ganância, fiquei desconcertado com as acusações. Em primeiro lugar,
quero ser enfático. Não existe sequer um membro da instituição, incluindo
seus gestores, que tenha defendido, ontem ou hoje, a transformação do HC
em local para atendimento preferencial de pacientes da rede privada ou
conveniada.
A verdade é que, pela sua excelência médica, convergem para o HC, a cada
mês, centenas de milhares de brasileiros vivendo nos limites extremos do
sofrimento e que lá são resgatados para a vida.
Por esse motivo, o HC transformou-se em razão existencial para a maioria
de seus membros. Maioria que atua sem interesses materiais (um médico
recebe no início da carreira R$ 1.548 por meio dia de trabalho) e que lá
permanece pelo orgulho de fazer parte da instituição.
Em segundo lugar, existe um reconhecido subfinanciamento da saúde no
Brasil, o que penaliza os hospitais públicos. Enquanto os países mais
decentes destinam entre 8% e 14% do seu PIB para a saúde, o governo
brasileiro investe nessa área menos de 3%. Para agravar, os parcos
recursos são frequentemente desviados pela má-fé de grupos predadores no
poder.
Alguns números ilustram a tragédia. Numa cirurgia de apendicite e três
dias de internação, o HC despende R$ 2.605, mas recebe R$ 414,02 do SUS.
Por causa dessa distorção, e carregando quase 2.400 leitos, o HC encerra
cada ano com deficit de mais de R$ 100 milhões.
Convivendo com a carência e com uma demanda incontrolável de pacientes, os
membros da instituição passam a protagonizar uma coreografia insana.
Somente no setor de urologia do HC há 892 pacientes aguardando cirurgia,
incluindo 153 crianças.
Em terceiro lugar, não há nenhum plano para aumentar o número de leitos
destinados a convênios. Entre 8% e 20% dos pacientes atendidos têm direito
a convênios e a ele recorrem pela sua excelência.
Aproveitando-se desse sentimento, os convênios despejam no HC os doentes
mais complexos e onerosos. Em atitude oportunista e injusta, ressarcem o
hospital em menos de 3% dos casos.
O que o dr. Marcos Fumio tem defendido é a formalização de convênios, de
modo a propiciar ao HC os recursos que lhe são devidos e que poderiam
amenizar a injustiça.
Termino referindo-me a uma realidade que Riobaldo, o jagunço-filósofo de
Guimarães Rosa, soube descortinar: "Um sentir é o do sentente, mas outro é
o do sentidor".
Reconheço que as inquietações expressas recentemente são justificadas para
quem sente de fora.
Mas, como um dos que sente de dentro, asseguro que a grande maioria dos
membros do HC está comprometida com o respeito à condição humana e com a
construção de uma nação menos desigual.
E quero enfatizar que dirigir ao HC acusações injustas pode produzir
desalento irremediável numa instituição que representa uma das últimas
esperanças de atendimento digno e competente para os mais desprotegidos da
nossa sociedade.

MIGUEL SROUGI, médico, pós-graduado em urologia pela Harvard Medical
School (EUA), é professor titular de urologia da Faculdade de Medicina da
USP e presidente do conselho do Instituto Criança é Vida.