Desde agosto de 2007, onze pés humanos desarticulados foram
encontrados na região fronteiriça de British Columbia, Canadá, e
Washington, EUA. São pés soltos, sem corpos, embora, no que é ainda mais
bizarro, todos calçassem tênis esportivos. Alguns ainda vestiam meia.
Especialistas consultados pela imprensa classificaram o mistério de “surpreendente” e “quase impossível de explicar”.
Teorias inusitadas foram sugeridas, indo desde um naufrágio ou acidente
de avião, dos quais os corpos nunca haviam sido recuperados, até que os
pés poderiam ter vindo do Tsunami na distante Indonésia em 2004. De
fato, um dos pés vestia um tênis vendido principalmente na Índia, e
quase todos os tênis haviam sido fabricados antes de 2004.
Havia ainda o temor de que um psicopata com alguma fixação por cortar pés com tênis esportivos estivesse em ação. A resposta a este mistério, na continuação.
Para desvendar os pés decepados, é preciso conhecer um pouco da história de Abraham Wald.
Ele foi um peculiar matemático judeu nascido na Europa que emigrou para
os EUA fugindo da perseguição nazista. Wald aplicou sua mente a uma
tarefa aparentemente simples: estimar a vulnerabilidade de aviões. Para
isso, observou os aviões cheios de buracos que retornavam do front.
Simples, não?
Depois de elaborar sofisticadas técnicas de análise, contudo, sua
recomendação pode soar absurda. Ele recomendou que as partes dos aviões
que não haviam recebido tiros eram as mais vulneráveis,
e deviam ser reforçadas. Algo como colocar um curativo onde não há um
machucado. Por quê?
A resposta está nos aviões que ele analisou – eram os aviões que haviam retornado
do front. Wald levou em conta que os aviões que retornavam, ainda que
cheios de buracos, haviam resistido às avarias o suficiente para fazer a
viagem de volta. Os buracos indicavam os locais mais robustos, que
podiam resistir a avaria, não os mais frágeis. Ao contrário, as áreas
intactas apontavam as zonas que não podiam ser atingidas, pois se o
fossem, os aviões seriam perdidos em combate. Os que retornavam com elas intactas haviam tido sorte.
A análise de Wald considerou o que se chama de viés de seleção:
o conjunto de dados analisado já foi selecionado de alguma forma, e uma
análise apropriada deve levar isto em conta. Aqui está outro exemplo:
você já parou para se perguntar por que nunca dá ocupado quando você
liga para o número errado?
Em verdade, o que ocorre é que geralmente percebemos que
ligamos para o número errado apenas quando a pessoa do outro lado atende
à ligação. Guardamos em nossa memória
uma seleção muito peculiar de dados. Do contrário escutamos o sinal de
ocupado sem nunca percebermos que ligamos para a pessoa errada. Um
mistério aparente surge se não considerarmos que os dados que
consideramos estão enviesados.
O que nos leva de volta ao mistério dos pés decepados. A solução ao
mistério não envolve nenhum grande acidente, nenhum Tsunami levando pés
por milhares de quilômetros, nem mesmo um maníaco com uma serra na mão.
A resposta simples é que os pés pertencem a pessoas que se suicidaram
jogando-se nas águas nas proximidades da região. Aqueles que puderam
ser identificados foram associados a vítimas com um histórico de
depressão que haviam sido dadas como desaparecidas. Não havia nenhum
sinal de que os membros tivessem sido separados com o uso de qualquer
ferramenta, pelo contrário, estas extremidades se separam como parte da
decomposição natural dos corpos e o pé mais recente foi encontrado ainda
conectado a parte dos ossos da perna.
Mas por quê todos usavam tênis? Certamente não deve ser mera
coincidência, e de fato não foi. Ocorre que tênis esportivos, projetados
para serem leves, costumam boiar. Os suicidas que usam sapatos mais
pesados acabam tendo seus pés, ainda que separados pelas correntes,
depositados no fundo das águas. Já os que usavam tênis, podem tê-los
flutuando por alguma distância até chegar à costa. O responsável por
selecionar apenas os pés com tênis não é um psicopata, é apenas a força
de flutuação da água.
Exatamente como os aviões atingidos, exatamente como o telefone
ocupado, o mistério dos pés decepados é fruto de um inusitado, e um
tanto mórbido, viés de seleção. Pode soar um tanto deprimente, porque o
que ele significa é que há muito mais pés de suicidas nas águas por aí.
Aqueles que usam sapatos dificilmente serão encontrados.
Para não encerrar neste tom sombrio, vale lembrar que mesmo esta
coluna sofre de um viés de seleção. Apenas uma história chamativa como
pés decepados acaba merecendo um post que você, por curiosidade, leu até
aqui. Funcionou, não? Como todos os noticiários, é mais fácil vender
histórias trágicas, mas isso não significa que o mundo seja um lugar
cada vez mais tenebroso.
Há uma imensidão de boas notícias, de pequenos gestos e felicidades que nunca irão aparecer no Jornal Nacional.
Qualquer análise, ainda que não seja estatística, deve levá-los em
conta, e espero que conhecer algo sobre o viés de seleção ajude você a
encarar as coisas de uma forma diferente. [via Marginal Revolution, BoingBoing]