ENTREVISTA MARCELO SCHAFRANSKI
Medicina baseia suas condutas em pesquisas
feitas com método falho
Reumatologista lança livro em que critica
distorções trazidas pela dominação da medicina baseada em evidências
Divulgação
Marcelo Schafranski, em seu consultório, no
Paraná
DÉBORA MISMETTI
EDITORA-ASSISTENTE DE “SAÚDE”
O vaivém das pesquisas médicas irrita muita
gente. Um dia, é proibido comer ovo. No outro, ovo faz bem. Mas os problemas
inerentes ao uso dos estudos estatísticos na medicina vão muito além disso.
Remédios um dia vistos como uma evolução são
tirados do mercado depois que os pacientes começam a sofrer efeitos colaterais
graves. Foi o caso do anti-inflamatório rofecoxibe, o Vioxx, vetado após causar
mortes. Como é que as pesquisas realizadas para aprovar a venda da droga não
captaram esse efeito?
É esse tipo de pergunta que o médico
reumatologista Marcelo Derbli Schafranski, 36, tenta responder no livro
"Medicina - Fragilidades de um Modelo Ainda Imperfeito" (Ed. Schoba,
R$ 50).
Ele falou à Folha, por telefone, de Ponta Grossa
(PR).
Folha - Por que as pesquisas se contradizem
tanto?
Marcelo Schafranski - O grande problema é o modo
como chegamos às conclusões. Por exemplo, como vamos saber se sal ou ovos fazem
bem ou mal à saúde? O ideal seria fazer uma pesquisa com uma população enorme
de gêmeos, no mesmo ambiente, parte recebendo sal ou ovo e parte não. Mas nunca
vamos conseguir isso.
Baseamos nossas conclusões em estudos falhos. A
maioria das pesquisas que aborda esse tipo de fator de risco é de coorte, em
que se observa uma população, ou de caso-controle, em que se parte do fim [da
pessoa já doente] para o começo. Estudos mais precisos, em que as pessoas são
separadas em grupos e recebem uma intervenção (comer ou não ovo, por exemplo)
são caros e, em geral, feitos por laboratórios para testar drogas e ter lucro.
Ninguém gastaria dinheiro para fazer isso com ovo.
Quais são os principais problemas conceituais
que aparecem nas pesquisas?
São questões que fazem a pesquisa começar errado
já na origem. Uma delas é o chamado "p", a probabilidade de a
hipótese estar certa ou errada. Para um estudo ser aceito, o estabelecido é que
a probabilidade de a hipótese provada estar errada deve ser menor do que 5%.
Mas de onde vem esse valor? Isso não está escrito em lugar nenhum. A medicina
baseada em evidências, na verdade, mistura duas teorias estatísticas
diferentes. Outro problema é o número de hipóteses. O ideal é ter só uma. Um
estudo publicado no Canadá em 2006 cruzou causas de internação e dados demográficos,
até signo. Descobriram que pessoas de Touro têm mais doença diverticular do
cólon. O que isso significa? Nada. Quanto mais comparações, maior é o risco de
descobrirmos coisas que não têm nada a ver.
O sr. critica estudos sobre remédios que medem só
se eles melhoram resultados de exames em vez de se reduzem mortalidade. Isso
leva a condutas erradas?
Isso é feito para economizar e ter respostas
rápidas. Temos remédios contra hipertensão no mercado que não provaram se
reduzem mortalidade ou ocorrência de derrame. Eles controlam a hipertensão,
ótimo. Mas e se depois a droga começa a matar os consumidores por intoxicação?
Se o estudo tivesse analisado a mortalidade, não aconteceria isso.
O sr. diz que isso acaba levando a uma medicina
centrada no médico em vez de no paciente. Como é isso?
O exemplo clássico é a osteoporose. O paciente
chega com uma densitometria óssea indicando osteoporose, o médico receita uma
droga e a pessoa, depois, refaz o exame. Aí o médico diz: "Sua
densitometria melhorou, sua osteoporose está indo bem". Mas a osteoporose
está indo bem no exame, essa é uma variável centrada no médico. O que importa
para o paciente é quebrar ou não um osso. Isso não depende só do resultado do
exame, mas de outros fatores, como iluminação do ambiente, se ele está
enxergando bem etc.
O sr. diz que a publicidade excessiva para
certas doenças, como a criação de dias temáticos, pode causar um viés nos
diagnósticos. Por quê?
Se um psiquiatra começa a ir a muitos congressos
sobre depressão, a receber visitas de representantes de laboratórios com
remédios para depressão, a ler artigos sobre isso, a tendência é que ele
diagnostique mais depressão. O paciente que recebe essas informações também
pode começar a se enquadrar nos sintomas.
Outra questão são as campanhas com exames de
rastreamento. Num rastreamento de diabetes, você vai achar pré-diabéticos. Mas
pré-diabetes aumenta mortalidade? Não está provado que isso realmente acontece.
Muitos desses pacientes limítrofes vão acabar tomando remédios sem que haja evidências
de que isso vai ajudá-los.
O que poderia ser feito para combater os vieses
da medicina baseada em evidências?
Estudos populacionais independentes, que são
caros e só podem ser feitos pelo governo. Em vez de pegar mil pessoas que usam
um medicamento, seria possível pegar o país todo, para saber, por exemplo, se
certa droga reduz a mortalidade.
Defendo também que os estudos venham com os
dados básicos, sem os cálculos estatísticos mais complexos. Quem está lendo que
faça os cálculos que julgar necessário. O problema é que os estudos ficariam
sem conclusão, ficaria a cargo do leitor, do médico, que teria de saber
estatística para interpretar isso. É mais fácil ler o resumo da pesquisa e
acreditar nele.
RAIO-X MARCELO SCHAFRANSKI
IDADE E ORIGEM
36 anos, de Ponta Grossa (PR)
FORMAÇÃO E ATUAÇÃO
Reumatologista, doutor em medicina interna pela
Univ. Federal do Paraná e professor na Universidade Estadual de Ponta Grossa
--
Celso Rômulo B. Cabral
Prof. Associado
Departamento de Estatística
Universidade Federal do Amazonas