Nosso colega Zé Martins fez uma excelente reflexão sobre nossos
problemas em sua coluna de hoje do estadão. Creio que escreveu para
as pessoas de todas as cores políticas.
Saudações e um bom domingo
carlinhos
PS: Antes de terminar gostaria de comentar sobre o tamanho da
Biometrics que recebi nesta semana. Será que há alguém com tamanho
vigor científico para ler apenas a metade do que ali está? O Nosso
Zé tem razão, seria melhor a gente pagar só para ter a revista on
line.
Vamos ao outro grande Zé.
As fronteiras da ação policial:
A greve na Bahia e o despejo no Pinheirinho expressam as
imperfeições da ordem e o desprezo elitista pelo Brasil da margem
12 de fevereiro de 2012 | 3h 09
JOSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO, PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE
FILOSOFIA DA USP, AUTOR, ENTRE OUTROS, DE A POLÍTICA DO BRASIL
LÚMPEN, MÍSTICO (CONTEXTO, 2011) - O Estado de S.Paulo
A greve da Polícia Militar da Bahia ocorre na mesma conjuntura da
intervenção da Polícia Militar de São Paulo no despejo dos ocupantes
do Pinheirinho, em São José dos Campos. As motivações são opostas e
os silêncios também. Mas os sujeitos não diferem. Na greve da Bahia,
a PM priva a sociedade da segurança da ordem e, por meio da coação,
força o governo petista a atender suas pressões. A PM de São Paulo,
para cumprir ordem judicial e impor o primado da lei e da ordem,
viu-se instrumento do que parecia e é uma injustiça praticada em
nome do direito.
Apesar do fato de que as duas ocorrências se deem em territórios de
governos de partidos antagônicos, elas oferecem a oportunidade de um
exame das questões além do limitado horizonte do partidário. O país
tem sido refém de um pendularismo ideológico que dificulta a
compreensão de anomalias políticas, como essas. É que são elas
expressões das estruturas profundas de uma sociedade carregada de
heranças do pretérito e do atraso pré-político. A história não é
petista nem tucana.
A greve da Bahia violou os direitos humanos da população baiana ao
pô-la em situação de risco, concretizado nos decorrentes
assassinatos e saques. E na violência generalizada do terror do
amotinamento dos agentes de uma instituição essencial à manutenção
da ordem. Encerrar a greve, como se os mortos vitimados pela omissão
da PM baiana fossem apenas produtos defeituosos e descartáveis da
linha de produção de uma fábrica, seria confissão de criminoso
desprezo pela vida do outro. Em princípio, cúmplice de homicídio,
mesmo decorrente de uma greve, tem seu crime capitulado no Código
Penal, e não na legislação trabalhista. A greve na Bahia desandou,
ainda, para o deboche, que lhe revelou o sentido último, ao aliciar
a simpatia do general comandante da operação de imposição da lei,
subornando-lhe as lágrimas com um bolo de aniversário.
Às pressas, a presidente da República desenterra projeto de
regulamentação do direito de greve no serviço público, o que abrange
as polícias. É medida que se torna urgente. Quando a liberalidade da
lei é fator de abuso, violência e anulação das próprias condições de
afirmação do direito, a regulação torna-se necessária. A greve é
historicamente a indicação de um limite, não um direito de abuso.
É significativo que o atual governador, que foi um dia experimentado
líder sindical, tivesse sido surpreendido, em visita a Cuba, por uma
greve que correu fora dos canais sindicais de convenção e fora das
expectativas da reivindicação negociável. Crianças e mães e o bolo
do general são indicativos de reclamo pautado longe da racionalidade
própria das relações de trabalho. Toda a população do Estado foi
feita refém de uma chantagem. A reivindicação salarial justa deixou
de sê-lo quando veiculada por meio de técnicas de intimidação e de
extorsão.
As mudanças que vem ocorrendo no País no último meio século indicam
claramente que o eixo da reivindicação de classe foi deslocado pela
própria dinâmica da economia moderna e, sobretudo, pela dinâmica da
sociedade. A sociedade se fragmentou e já não há fatores que deem
unidade, visibilidade e eficácia política ao pressuposto da classe
social como agente das demandas sociais. Hoje, as entidades e
movimentos de reivindicação, mesmo os profissionais, estão mutilados
pela interveniência de subjacentes demandas estranhas à situação de
classe, como as raciais, religiosas e corporativas.
Os grupos desfavorecidos falam como grupos de interesse que
expressam demandas informadas pela rusticidade das ideias da
economia moral, como fazem os PMs da Bahia e como faz o MST,
arrastando para o cenário de seus conflitos mulheres e crianças,
aquém do sindicato e do partido e, portanto, aquém do neoliberalismo
de negociação que os preside. Ou seja, a família como sujeito
pré-político de carências. O que o historiador inglês E. P. Thompson
chamou de economia moral retorna do fundo dos tempos, dando nova e
diferente entonação às lutas sociais. Esse é o ponto que junta os
problemas impostos aos respectivos governos pelas PMs na Bahia e em
São Paulo.
Numa entrevista infeliz a Débora Bergamasco, a secretária da Justiça
de São Paulo alinhavou argumentos de radical legalismo para
justificar a ordem judicial do despejo no Pinheirinho e o emprego da
PM para executá-la. O país da bem-vinda Constituição liberalizante
de 1988 omitiu-se em relação a questões essenciais, como a dos
limites morais na execução da lei. A própria ditadura militar, no
governo Costa e Silva, em face da violência dos despejos de
posseiros na Amazônia, baixara ato complementar instituindo a
audiência prévia do Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária na decretação de despejos pela Justiça, antepondo o primado
social da reforma agrária às formalidades da lei, dada a
possibilidade da desapropriação e da regularização fundiária. O caso
da Bahia e o caso de Pinheirinho expressam as imperfeições da ordem
e o desprezo elitista pelo Brasil da margem.
Carlos Alberto de Braganca Pereira <cpereira@ime.usp.br>