Artigo de Cássio Leite
Vieira para o Jornal da Ciência
Pós-graduando, se você pretende fazer um doutorado em história da
ciência para seguir carreira acadêmica, pense duas vezes. Meu conselho:
não faça.
No Brasil, departamentos de história e filosofia são, em geral,
refratários a essa cultura chamada ciência - a regra tem as exceções que a
justificam. Em número variável, encontramos, nessas instituições,
especialistas em religião, artes, música etc. Porém, raramente, em
ciência.
Num mundo ideal, cada departamento (ou faculdade, ou instituto) de
física, química, biologia e matemática no país teria um historiador da
ciência, cuja função seria, além de fazer pesquisa e publicar, dar aos
graduandos e pós-graduandos conhecimento da história da área em que eles
vão atuar. Ou seja, prover cultura, por meio de uma formação
humanística.
Mas, hoje, as chances de aparecer uma vaga dessas são praticamente
nulas - afinal, como convencer um diretor ou conselho técnico-científico
de que uma das (em geral, poucas) vagas da instituição deve ser para um
historiador da ciência? Nos departamentos de história, a ausência de
historiadores da ciência parecer soar como temor ao desconhecido.
Um historiador da química brasileiro costumava dar a seus
pós-graduandos a seguinte definição: "Nem é história, nem é ciência. É
história da ciência." Um modo de ler essa definição: história da ciência é
uma área autônoma do conhecimento.
No entanto, essa autonomia - quando mal interpretada - leva a um sério
revés: já escutei historiadores dizendo que a pesquisa em história da
ciência deveria ser feita nas instituições de ciência. E ouvi de
pesquisadores de exatas e biológicas que o local adequado seriam os
departamentos de história. [Em tempo: a departamentalização do
conhecimento - nas palavras de uma colega historiadora - cria "situações
absurdas como essa"].
Cabe, então, perguntar: por que ter um historiador da ciência naqueles
dois tipos de instituição, como é comum no exterior? Dois entre vários
motivos: i) é praticamente impossível entender o século 19 e,
especialmente, o século 20 sem essa cultura - para o historiador marxista
britânico Eric Hobsbawm (1917-2012), a mais importante do século passado;
ii) ciência é bem mais do que números, símbolos, fórmulas, experimentos,
modelos e teorias e, portanto, só pode ser entendida em sua totalidade,
como cultura, quando associada à sua história e à sua filosofia.
Dada a inexistência de concursos, doutores em história da ciência, nos
últimos anos, têm adentrado as universidades por meio de vagas voltadas
para a pesquisa em ensino de ciências. Isso os obriga a fazer também (ou
apenas, em muitos casos) pesquisa numa área para a qual não foram
treinados.
Outra agravante: o campo da história da ciência tem que conviver com os
que julgam que qualquer um pode se tornar historiador da ciência sem longo
preparo prévio e sem ter que entrar em arquivos, buscar cartas, imagens ou
documentos, fazer entrevistas, pesquisar jornais e revistas, se atualizar
na bibliografia da área etc. Bastaria ler alguns livros. O que o leitor
pensaria se um jornalista, decepcionado com a profissão ou improdutivo no
trabalho, resolvesse virar 'biólogo molecular'?
A assimetria acima ilustra uma das várias atitudes arrogantes das
ciências em relação às humanidades - o leitor encontra artigo que esbarra
nessa questão aqui: http://bit.ly/1ba4J8x
Cerca de 60 anos depois da palestra em que o físico e escritor
britânico C. P. Snow (1905-1980) apontou a falta de comunicação entre o
que ele denominou 'as duas culturas' (ciências e humanidades), continuamos
formando gente como se esses conhecimentos fossem obrigatoriamente
excludentes. Infelizmente, como regra, nossas pós-graduações em exatas e
biológicas continuam a formar 'técnicos com PhD'; e as de humanidades,
profissionais sem praticamente conhecimento científico - e que, por vezes,
orgulham-se disso.
Enfim, no Brasil, o cenário não é promissor para um jovem doutor em
história da ciência. Mas, para aqueles sem pretensões acadêmicas, ansiosos
por ampla formação humanística, deixo aqui outro conselho: história da
ciência é uma das áreas mais fascinantes do conhecimento, pois, por ser
necessariamente multidisciplinar, obriga aquele que a ela se dedica a
entender, por meio da pesquisa e análise, uma forma de cultura (ciência)
em interação constante com o complexo tecido social, político, econômico
e, claro, cultural.
Nos últimos anos, o Brasil tem produzido teses de alta qualidade em
história da ciência e publicado artigos em periódicos de prestígio no
exterior. Muitos recém-doutores são jovens talentosos que, ao entrar na
pós-graduação, tinham como meta seguir uma carreira acadêmica.
Infelizmente, para a esmagadora maioria deles, esse objetivo é, por
enquanto, improvável. E isso me parece um desperdício, para dizer o
mínimo.
Cássio Leite Vieira é jornalista do
Instituto Ciência
Hoje