Muito interessante a análise do Prof. Valdemar Setzer a respeito
da palestra
do sociólogo Manuel Castells.
Há muitos pontos que merecem discussão permanente.
Talvez fosse uma boa oportunidade de organizar nesta lista um
conjunto de tópicos para debate.
Um abraço a todos,
Raymundo Soares de
Azevedo Neto
Disciplinas de Patologia Clínica, Informática Médica
e Telemedicina
Departamento de Patologia - Faculdade de Medicina da USP
Valdemar W. Setzer wrote:
Oi a todo(a)s,AM disse em mail para o g-mac (ou foi para mim?) que gostaria de ver
minhas impressões sobre as palestras do Castells e do De Masi. Com isso,
não posso me furtar de escrever algo. Aproveito para enviar para a lista
edic. É preciso ficar bem claro que essas impressões baseiam-se
exclusivamente nas respectivas palestras. Só poderei citar e comentar
algumas frases pinçadas de minhas notas. Comecemos pelo Castells.A palestra dele foi de uma densidade exagerada. Tentei tomar nota do que
ele dizia, mas como ele praticamente nunca repetia nada, se eu perdia
uma frase não conseguia refazer seu conteúdo. E certas idéias estavam
contidas em uma única frase. Até parecia que ele estava falando por
obrigação, sem se preocupar se a audiência conseguia seguir os pontos
que expunha."A revolução tecnológica não determina a sociedade, ela _é_ a
sociedade." Não estou totalmente de acordo, pois não se pergunta à
sociedade se ela está interessada em uma nova tecnologia, e muito menos
se apresentam a ela os efeitos positivos e negativos da novidade, para
que ela possa decidir se a quer ou não. O que acontece hoje em dia é de
um lado o impingir de produtos, convencendo-se o consumidor através de
propaganda que ele deve comprar o que não precisa por um preço mais
caro. Em segundo lugar, existe uma obsolescência forçada. Produtos que
poderiam durar mais são substituídos por novos devido a custos de
manutenção ou obsolescência forçada (não fazem tudo o que os novos
produtos fazem). Na informática, provavelmente há um acordo entre Intel
e Microsoft, de modo que esta esbanja mais recursos em cada nova versão
do soft para que a primeira possa vender processadores essenciais para
processar o excesso de recursos requeridos.Estou parcialmente de acordo, pois é preciso ter um fascínio pela
tecnologia (que os europeus em geral têm relativamente pouco - não se vê
por lá outdoors com endereços da www como aqui e nos EEUU) para embarcar
nela com tanto fanatismo e achar que ela vai trazer a felicidade geral."Temos uma nova economia, fundamentada em 3 aspectos: economia
informacional, globalizada e em redes."Acho muito curioso essa história de economia informacional. Daqui a
pouco seremos obrigados a nos alimentar de bits e bytes... A China está
em todas não com informação, e não com invenções (que ele disse ser a
grande fonte de renda de países avançados), mas com produtos em sua
maior parte não-informacionais.Ninguém - nem ele - está dizendo que a globalização da produção é uma
deturpação da positiva universalização cultural. Em lugar de atender a
necessidades sociais ela atende à maximização dos lucros. E,
contrariamente a Adam Smith, esse egoísmo vai levando a mais miséria (a
"mão invisível" está totalmente invisível mesmo...).Essa história de redes é uma realidade. Mas é de informações (fora as
das drogas). Ninguém come informações. Há redes de bolsas de valores,
mas novamente não se trata de produção."Não houve aumento na produtividade com a informatização e automação
pois ainda não houve tempo para isso e não houve organização das forças
de trabalho. Não sabemos por que as pessoas trabalham." Ele citou que o
aumento de produtividade nos EEUU foi o dobro (4%) do que no período
anterior (um ano?).Só que não adianta examinar um só país (ele também citou o Japão). Vejam
a concentração de novidades tecnológicas vindas dos EEUU. Obviamente é
preciso um monte de gente para criá-las e produzi-las. Justamente devido
à globalização, é necessário examinar vários países para se chegar à
conclusão de que a automação acabou produzindo mais ou menos empregos.
Mas, digamos que os tenha produzido. Certamente muita gente teve que
mudar de profissão (os engenheiros daqui que estão vendendo cachorro
quente, por exemplo). Qual o custo social disso, por exemplo em termos
psicológicos, e as depressões e doenças daí advindas? Economistas não se
interessam por esse aspecto..."As redes são flexíveis, mas têm o inconveniente de concentrar
recursos." Redes flexíveis são só as de informação... Uma rede de
produção leva muitos meses para ser alterada."Na arquitetura da economia global gera-se emprego qualificado e se
destrói emprego desqualificado." Conversei com o motorista Amauri da
Fundação Anchieta, que veio me pegar para levar à transmissão do Opinião
Nacional de 6a. Feira. Ele mora em Perus. Perguntei se há muito
desemprego por lá. Ponha muito nisso. Perguntei se alguém estava
passando fome. Ninguém está passando fome, pois sempre há alguém
empregado em cada família, e além disso todos estão se virando com
bicos. Eu também estou fazendo vários bicos, entre eles um (na PROMON)
em área sobre a qual não entendia nada antes de começar há alguns meses.
Quem sabe vai sobreviver que for capaz de improvisar rapidamente vários
bicos diferentes??? Aliás, o Amauri tem computador (a filha de 16 anos
usa para trabalhos da escola) mas não está ligado à Internet. A esposa é
técnica de laboratório de análises clínicas e está fazendo Biologia
noturno numa faculdade particular de um nome que eu nunca tinha ouvido,
para ganhar mais. Eles têm um dormitório só, de modo que a filha dorme
atrás do armário. Não há mutirões e as famílias não se ajudam mais para
ele construir mais um cômodo."Hoje em dia o trabalhador tem que ser auto-programável, para mudar com
as mudanças do ambiente. A aprendizagem tradicional (saber manejar uma
máquina) não vale nada." Ótimo, o ensino tem que ser básico e não
profissionalizante."Há uma explosão da desigualdade social e da pobreza. 40% da população
mundial sobrevive com menos do que US$2 por dia." Já está na hora de
repensarmos toda a sociedade. O Amauri disse que vai haver uma revolução
social aqui, pois vai chegar um ponto em que vai estourar. O campo já
está estourando."O meio que tem mais crédito é a TV, pois se acredita no que se vê."
Acho que não é crença, é condicionamento subliminar."Os meios de comunicação não determinam a política." Um querido amigo
americano, de mais de 80 anos, ex-professor de matemática, escreveu-me
que os meios de comunicação americanos estão dominados pela direita
radical (Murdoch, Moon, - sic - etc.). Ele diz que há lá tão pouca
liberdade de imprensa quanto na antiga União Soviética. Papagaio, não
pensei que chegasse a tanto. Mas procurem algum artigo na Veja, cujos
repórteres são independentes da diretoria financeira, que seja contra a
opinião do Civitta (que, aliás, é americano). Ou no Estadão algo que
seja contrário à visão dos Mesquita. (Bom, até que eles se dão ao luxo
de deixar aparecer algumas opiniões esquerdistas de articulistas - não
de repórteres - para dar a impressão de liberdade de opinião.)Ele mesmo formulou um aspecto interessante: os meios de comunicação são
tão importantes que estamos na "política dos escândalos" (feitos pelos
meios de comunicação, uai!). Nos países anglo-saxões são os escândalos
sexuais, nos latinos são os financeiros, pois sabemos ser mais discretos
na área mais baixa (do corpo)."As enquetes mostram uma crise de credibilidade - o prestígio dos
políticos vem em último lugar." Vejam só como o Brasil foi avançado há
muitos anos: de há muito não acreditamos nos políticos. (Mmmm, todas a
camadas sócio-culturais? Talvez...)"O tempo está se convertendo em tempo a-temporal, devido à sua
compressão e à ruptura de seqüências." Óbvio ululante. Um dos resultados
é que estão todos pirando..."Teoricamente, houve o aparecimento do _espaço dos fluxos_: meios
financeiros, comunicação, Internet. Não existem cidades globais - as
grandes cidades são altamente localizadas em bairros ou regiões." Sim,
pois não dá mais para se locomover nelas..."Está se produzindo uma segregação social: há concentração de riqueza e
de pobreza em espaços. Os ricos estão construindo guetos de ricos, estão
saindo das cidades." Qualquer um vê isso, principalmente entre nós. Mas
quem foi para Alphaville estrepou-se pois não consegue mais nem sair nem
entrar devido aos congestionamentos da C.Branco..."A religião é o movimento mundial mais importante." Reação contra
excesso de materialismo? Pena que tanta gente está embarcando em um
espiritualismo totalmente falso (no fundo trata-se de um materialismo
lascado). De qualquer modo, o ensino essencialmente científico e
tecnológico está dando uma reação contrária à esperada..."O Estado está se reorganizando: trata de reconstruir a legitimidade com
descentralização. O estado-nação passa a ser um nó dessa rede. É mais
eficaz como gestor, mas leva a uma crise de legitimidade." Interessante,
antigamente a tendência dos Estados era serem unitários... De qualquer
modo, a mistura de política com interesses econômicos continua levando
às aberrações de sempre, vejam-se as Regionais. Enquanto existir essa
aberração vai continuar destruindo a sociedade.Durante as perguntas, ele disse algo interessante: "A competitividade
sem integração humana é auto-destrutiva." O que será que ele quis dizer
com isso? Deve haver competitividade entre grupos integrados? Ou
integrar os competidores? Para mim, o que precisa é acabar com a
competitividade, pois ela é anti-social.E por falar em perguntas, eu fiz as primeiras, mas antes fiz uma
observação: que a palestra dele tinha sido um diagnóstico, e que
esperaria uma outra palestra pelas soluções que ele propõe. Senti um
frêmito na platéia quando fiz essa observação. Pois o interessante é que
ele ficou meio bravo, disse que não era diagnóstico, mas sim análise
(acho que ele identificou "diagnóstico" com doença - mas ele mesmo disse
no início que a sociedade estava em crise). Mas confirmou totalmente que
não tinha dado nenhuma solução. Como intelectual, ele acha que deve
apenas expor o que observa, e associar observações e descrições. Os
manifestos de intelectuais franceses são ridículos.Aí vem minha observação mais interessante sobre a palestra: achei
fantástica a postura dele. Se tivesse feito uma palestra sobre
Matemática, eu compreenderia que ele tivesse que ser puramente
intelectual, transmitindo objetivamente observações (no caso dela, do
mundo das idéias abstratas) e suas associações. Mas de um sociólogo eu
esperava outra atitude (que foi 100% o caso do De Masi, que ficará para
outra ocasião). Não fiquei sabendo quem é Castells como pessoa humana,
pois não ouvi suas opiniões, isto é, se gostava ou não do que tinha
observado e estava descrevendo, e muito menos quais soluções ele propõe.
Essas duas é que são subjetivas e caracterizam a individualidade. As
observações que ele transmitiu foram super-interessantes, mas ficaram no
intelecto. O fruto do intelecto é universal e pode ser repartido com
qualquer um (se bem que muito poucos conseguem observar e descrever como
ele, certamente). Por ser universal não caracteriza o indivíduo - a
menos de sua capacidade intelectual. Em outras palavras, tivemos a
palestra de uma mente - não, de um cérebro - ambulante, sem nada por
baixo. Achei fantástico estar vendo, em um sociólogo, um legítimo
representante da observação e descrição científicas frias e lógicas.
Aquele que poderia dizer a partir de uma observação correta e de um
raciocínio sem coração: temos excesso de população no mundo, de modo que
vamos deixar que uns matem os outros para diminuí-la. Desculpem, ele não
chegou a tanto, pois aí nessa frase há uma pelo menos uma solução para
um problema. Ele só expôs os problemas - sem mesmo chamá-los como tais.
Para uma pessoa assim, tanto faz se a audiência é capaz de captar tudo
ou muito pouco do que ela expõe.Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa, Val.
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Valdemar W. Setzer - Dept. of Computer Science, University of São Paulo,
Brazil vwsetzer@ime.usp.br http://www.ime.usp.br/~vwsetzer