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aflições noturnas - JUR
- Subject: aflições noturnas - JUR
- From: cpereira@ime.usp.br
- Date: Sun, 18 Nov 2012 23:37:09 -0200
Caros redistas:
A idade vai aumentando e a angustia vem junto com as barreiras que vão
se criando em torno de nossas necessidades.
Muitos nos acariciam com frases como ?velhos, mas sábios?.
O fato é que a gente vai envelhecendo e cada vez mais tem satisfação
quando alguém pede esclarecimentos. Creio que nosso sentimento de
utilidade só aparece nesses momentos.
Antes podíamos sem esforço ajudar na solução de problemas pesados.
Agora evitamos chegar perto desses problemas de pessoas necessitadas.
Não por egoísmo, mas por estar impossibilitado em ajudar.
Pensava eu que eram estes problemas apenas meus. Vejo agora que
nossos mestres literatos também estão chegando ao fim.
Outro dia li de algum de nossos ídolos que existem várias alternativas
para a morte e a pior delas era continuar a viver.
Mas eis o que eu queria trazer para nossa rede mais por humor e menos
por lamento. João Ubaldo semanalmente vem escrevendo sobre o fato de
já estar velhinho. Sua mensagem de hoje é ótima e convido a todos
para apreciarem seu texto e evidentemente sua coluna com textos
anteriores.
Grande semana
Carlinhos
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,aflicoes-noturnas-,961753,0.htm
Aflições noturnas
18 de novembro de 2012 | 2h 10
JOÃO UBALDO RIBEIRO - O Estado de S.Paulo
Vocês também devem ter lido a respeito da utilização de celulares como
forma de pagamento ou transferência de dinheiro. Já está chegando, ou
vai chegar em breve. Quando eu era menino e lia tudo o que podia,
achei lá em casa um livro velho, com ilustrações sombrias, sobre os
males da fraqueza nervosa, que eu não sabia o que era, mas de boa
coisa não se tratava, a julgar pela cara franzida e meio tresvariada
estampada na capa. Impressionava também a visão de um velhote, sentado
de pijama na beira da cama com o cabelo desgrenhado, aparentemente
desperto de um pesadelo. A legenda explicava que, depois de uma certa
idade, muitos indivíduos (e indivíduas, segundo a gramática da
República) padecem de aflições noturnas, ansiedades, dispneias,
disúrias, discinesias, dispepsias e inúmeras outras condições
molestosas, que não raro induzem a fundos estados melancólicos e, por
vezes, até mesmo ao passamento prematuro - os textos de antigamente
eram caprichados.
Faz pouco tempo, eu não tinha queixa, mas acho que estão começando a
pintar umas aflições noturnas, há indícios de que a fraqueza nervosa
já se encontra em processo de instalação. Foi essa notícia do celular
que me chamou a atenção para o problema. Não o celular em si. Não
tenho celular e já me costumei a ser a atração turística da mesa e
objeto de comentários sociofilosóficos. Não só não tenho, como não
quero ter. Não por nada, somente porque é mais uma geringonça de que
na verdade nunca precisei e da qual passarei a depender perdidamente,
depois de alguns dias. Uma repórter encarregada de fazer entrevistas
sobre comunicações resolveu me ouvir e, quando eu lhe disse que não
tinha celular, recusou-se a acreditar. Durante alguns segundos, acho
que ela ficou pensando que, na Bahia, celular tinha outro nome, o
único que eu conhecia, só podia ser. E desligou meio desconfiada, sem
se conformar.
O que me afetou foi o que li a respeito dos celulares e pagamentos, ou
melhor, do que o futuro nos reserva, a nós, terceiridadistas
(resignemo-nos a "terceira idade", pois que não há mais jeito, e
recebamos com um sorriso dúbio "atroz idade" e "indigna idade", mas
reajamos a bengaladas contra "melhor idade" e "feliz idade"). Na
matéria que vi, várias especialistas se manifestavam sobre a novidade.
Operação facílima para pagar qualquer conta, transferir qualquer
quantia. Teclam-se alguns botões no celular e a transação está feita.
A inovação é bem recebida por todos, de consumidores a comerciantes.
Mas, como sempre, há aspectos não tão alvissareiros. As autoridades do
setor manifestaram alguma reserva quanto à adoção talvez precipitada
do mecanismo, pois sua segurança requeria certas cautelas e
habilidades. Em mãos vulneráveis, podia facilmente ser explorado por
hackers criminosos e outros espertalhões. "Nossa preocupação
principal", disse lá o entendido, "são os idosos e as pessoas de baixa
instrução. Esses provavelmente precisarão de cuidados especiais ou
atendimento diferenciado".
Pronto, meu caro coevo, minha distinta coetânea. Estamos ingressando
em nova categoria estatística e administrativa, talvez ainda não
batizada, embora logo deva aparecer o eufemismo oficial adequado.
Deficientes cognitivos diversos? Geroanalfabetos? Excluídos por
critérios etarioeducacionais? Não sei, mas, com a falta do que fazer
que parece grassar em alguns dos incontáveis órgãos que cada vez mais
nos dizem como devemos nos comportar, não somente em público como em
casa, em que devemos acreditar, do que devemos gostar, como devemos
falar e até como devemos entender o que lemos, acho que precisamos
estar preparados para receber mais proteção por parte do Estado.
Talvez, se o idoso e o analfabeto quiserem usar o celular para
transações financeiras, precisem, para seu próprio bem, tomar um curso
especial para a categoria e, depois disso, mediante requerimento ao
Ministério da Fazenda, obter a Carteira Nacional de Movimentação
Financeira para Idosos e Analfabetos, que os habilitará à realização
de pagamentos simples.
Tudo razão para aflições noturnas. Agora compreendo aquele livro
profético e até gostaria de tê-lo aqui, para uma consulta. Ainda não
me levantei sobressaltado no meio da noite, mas não é preciso, é fácil
fazer previsões assombradas sobre o que está por vir. Os idosos, como
adverte todo dia algum comentarista de entonações sinistras, cada vez
aumentam em número e já começam a causar uma série de problemas.
Deixá-los trabalhar mais tempo antes da aposentadoria não resolve,
porque atravanca o mercado de trabalho para os jovens. Sustentá-los é
uma carga cada vez maior para a previdência social. O sistema de saúde
também sofre, sobrecarregado por uma demanda que não para de crescer.
Não é impossível que se conclua que representam um custo impossível de
pagar e o correto é morrerem pela pátria, como está nos hinos.
Além disso, surgem boatos alarmistas inquietantes. Zecamunista, ele
mesmo também da confraria idosa, andou denunciando uma conspiração
multinacional para matar a velharia, através de estratagemas
diabólicos, como epidemias artificiais. E, o que é pior, tudo para
abastecer de matéria-prima o mercado de comida de cachorro dos Estados
Unidos, da Europa e do próprio Brasil. Não botei fé, embora tenha
ficado meio cabreiro, pois nunca se sabe de nada, neste mundo de hoje.
Mas ele acabou me tranquilizando.
- Esqueça aquilo que eu falei - disse ele. - Não vão mais armar o
esquema da comida de cachorro.
- Ah, eu sabia que era invenção, não iam fazer isso com os velhos.
- Não é por causa dos velhos - disse ele. - É por causa dos cachorros.
As sociedades protetoras de animais declararam que essa comida ia
fazer mal aos cachorros e ameaçaram boicote.
Mas aguardemos os acontecimentos.
<cpereira@ime.usp.br>