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Re: Res: RES: [ABE-L]: fé e religião



Car*s,

Achei frutífero o interesse honesto e sincero que muitos dedicaram à recente discussão sobre assuntos de âmago religioso e que tangenciou a ciência e outras facetas da nossa vida cotidiana.

Um vídeo interessante e que invariavelmente nos convida à reflexão é o intitulado "The known universe", que está disponível em

http://www.youtube.com/watch?v=17jymDn0W6U

(desenvolvido pelo American Museum of Natural History). Ele mostra o Universo tal qual o conhecemos. É algo convidativo à reflexão e mais ainda à humildade. Na vastidão do Universo o nosso planeta representa menos do que um grão de areia num imenso oceano. Deixando de lado a dimensão física e passando à dimensão temporal, o Universo tem cerca de 13,7 bilhões de anos. A idade aproximada do nosso planeta é 4,6 bilhões de anos. A nossa espécie (Homo sapiens) existe há cerca de 200 mil anos. Há quem acredite que o nosso imensamente vasto Universo foi criado há quase 14 bilhões de anos apenas para abrigar uma espécie de primatas em um pequeno planeta, espécie essa que evoluiu darwinianamente a partir de formas mais simples de vida, compartilhando um ancestral comum com os chimpanzés. Mais até: acreditam que o criador do universo mantém uma relação especial com essa espécie de primatas evoluídos (e apenas com ela), sendo capaz de ler os pensamentos de cada um de seus membros e de ocasionalmente suspender as leis da natureza em seu favor. É uma crença, certo. Merece respeito. Mas a pergunta inevitável parece ser: será que tudo isso existe mesmo por nós e para nós? Somos tão importantes assim? Somos verdadeiramente o centro e a razão de ser de um vasto equilíbrio cósmico? E aqui crença e descrença colidem. Inevitavelmente. A descrença no fundo se resume a uma humildade cósmica (provavelmente não somos a motivação central por trás de algo tão fenomenal quanto o nosso Universo) e de uma aceitação de ignorância (não sabemos como o Universo veio a existir, como também não sabemos se o Cosmos é formado por vários multiversos, como hoje se especula). Estamos aqui. Hoje e agora. Envoltos por uma estupenda natureza e testemunhando as mais encantadoras leis cósmicas. Apreciando as belas simetrias e também as encantadoras imperfeições de tudo o que nos cerca. Isso não basta? Para alguns sim, para outros não. Viva a diversidade!

Permitam-me tecer alguns comentários finais. Primeiro, nenhum cientista provará a inexistência do deus abraâmico ou de outros deuses. É impossível provar inexistências, o que também vale para duendes e unicórnios. Ademais, como disse Carl Sagan, "extraordinary claims require extraordinary evidence". Assim, o peso da prova recai sobre quem faz as assertivas extraordinárias e não sobre quem lhes reserva doses de ceticismo.

Segundo, a aposta de Pascal embute uma série de suposições implícitas. Por exemplo: (A1) ou não existe deus algum ou existe o deus judaico-cristão, (A2) em existindo, o deus judaico-cristão recompensará quem nele acreditou e o louvou e/ou punirá quem não o fez, (A3) não há custo em descrer da existência de Deus. Essas suposições parecem-me questionáveis. E se existir um deus, mas esse não for o deus judaico-cristão? E se o deus que existir recompensar aqueles que brava e intelectualmente tiveram a coragem de dele descrer? Como coloca o Richard Dawkins, "Deus não respeitaria [Bertrand] Russel por seu ceticismo corajoso (...) bem mais do que Pascal por sua aposta cautelosa e covarde?" Ademais, para levar tal racionalmente a sério, deveríamos escolher a religião que tem o inferno mais aterrorizador, a título preventivo. Em suma, a aposta de Pascal é de pouca iluminação.

Por fim, espero que alguns leitores da ABE-L tenham encontrado terreno fértil nas diversas mensagens que circularam sobre o tema. O propósito de discussões como essa não é fazer pessoas mudarem de opinião, mas sim enriquecer o ambiente intelectual, estimulando reflexões e questionamentos.

Abraços frequentistas, FC

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Francisco Cribari-Neto, cribari@gmail.com, http://sites.google.com/site/cribari