1.1 Alguns modelos probabilísticos

Antes de darmos qualquer definição formal, vamos tentar analisar algumas situações simples e tentar capturar se há feitos em comum nos exemplos a seguir:

Exemplo 1.1.

Sorteamos uma carta de um baralho comum (52 cartas, numeradas A,2,3,,10,J,Q,KA,2,3,\dots,10,J,Q,K e de naipes ,,,\clubsuit,\heartsuit,\spadesuit,\diamondsuit). Qual a probabilidade de a carta sorteada ser 44\clubsuit, 77\heartsuit, AA\spadesuit ou 77\diamondsuit? Nossa primeira tentativa de formalizar este problema seria reescrever a primeira frase da seguinte maneira: sorteamos um elemento do conjunto Ω={A,2,,K,A,,A,,A,,K}\Omega=\{A\diamondsuit,2\diamondsuit,\dots,K\diamondsuit,A\heartsuit,\dots,A% \spadesuit,\dots,A\clubsuit,\dots,K\clubsuit\}. Assim a pergunta passaria a ser: qual a probabilidade deste elemento pertencer ao subconjunto A={4,7,A,7}A=\{4\clubsuit,7\heartsuit,A\spadesuit,7\diamondsuit\}? Melhor ainda, qual a proporção que o conjunto AA ocupa dentro de Ω\Omega? A princípio, é razoável que esta “proporção” entre os “tamanhos” dos conjuntos seja dada pela razão11 1 Esse raciocínio, hoje considerado mais ou menos óbvio, foi formalizado na célebre troca de cartas entre Pascal e Fermat ocorrida em 1654. Estas cartas são consideradas um marco na história da Probabilidade. entre o número de elementos de AA e de Ω\Omega, isto é:

(A)=#A#Ω=452=113.\mathbb{P}(A)=\frac{\#A}{\#\Omega}=\frac{4}{52}=\frac{1}{13}.\qed

A notação #A\#A se refere à quantidade de elementos que pertencem ao conjunto AA.

Exemplo 1.2.

Um baile ocorre em um grande salão, cujo piso é formado por longas tábuas corridas de madeira, todas elas de largura igual a 20cm20\,\mathrm{cm}. Uma moeda cai do bolso furado de um dos dançarinos. Após a queda, qual a probabilidade de a distância entre o centro da moeda e a linha mais próxima que separa duas das tábuas ser no máximo de 3cm3\,\mathrm{cm}? Como a largura das tábuas é de 20cm20\,\mathrm{cm}, a menor distância entre o centro da moeda e as linhas do piso é um número real não-negativo limitado à metade da largura das tábuas. Portanto, a distância em que estamos interessados corresponde ao sorteio de um número real no intervalo Ω=[0,10]\Omega=[0,10]. Então nossa pergunta pode ser reescrita como: se sortearmos um número real no conjunto Ω=[0,10]\Omega=[0,10], qual a probabilidade de o número sorteado pertencer ao conjunto A=[0,3]A=[0,3]? Novamente voltamos à pergunta: qual proporção que o conjunto AA ocupa dentro de Ω\Omega? Neste caso, nos parece que a melhor resposta seria a razão entre os comprimentos dos intervalos AA e Ω\Omega, ou seja:

(A)=comprimento de Acomprimento de Ω=comprimento de [0,3]comprimento de [0,10]=310.\mathbb{P}(A)=\frac{\text{comprimento de }A}{\text{comprimento de }\Omega}=% \frac{\text{comprimento de }[0,3]}{\text{comprimento de }[0,10]}=\frac{3}{10}.\qed
Exemplo 1.3.

No mês seguinte ao baile anterior, um novo baile é realizado em outro grande salão, cujo piso é formado por azulejos quadrados de 10cm10\,\mathrm{cm} de lado. Todos os azulejos são idênticos e como na Figura 1.2 abaixo.

Novamente, nosso distraído dançarino deixa outra moeda cair de seu bolso furado. Qual a probabilidade de o centro da moeda cair sobre um ponto preto de um dos azulejos? Já que agora temos uma compreensão melhor, podemos intuir que uma boa resposta seria a proporção que a região de pontos pretos ocupa em um azulejo, isto é, a razão entre essas áreas. Denotemos por Ω\Omega o conjunto dos pontos do quadrado que representa um azulejo e por AA o subconjunto de pontos de cor preta. Sendo assim,

(A)=área de Aárea de Ω=49.\mathbb{P}(A)=\frac{\text{\'{a}rea de }A}{\text{\'{a}rea de }\Omega}=\frac{4}{% 9}.\qed
Modelo do azulejo usado no Exemplo 
Figura 1.2: Modelo do azulejo usado no Exemplo 1.3.

Um fato comum nos três exemplos acima é que a ideia de probabilidade de um conjunto passa pela ideia de proporção, medida que o conjunto AA ocupa dentro de um conjunto maior Ω\Omega, conjunto este que congrega todos os resultados possíveis no nosso experimento aleatório.

A questão é que em cada um destes exemplos foi diferente o conceito que utilizamos para “medir” o quanto o conjunto AA ocupa dentro do conjunto Ω\Omega. Nos exemplos acima, nossas medidas foram as razões entre o número de elementos, o comprimento e a área. Definir probabilidade será um modo de medir conjuntos.

Um modelo probabilístico tem três componentes básicas:

  1. (a)

    Um conjunto Ω\Omega formado por todos os resultados possíveis do experimento, chamado espaço amostral.

  2. (b)

    Uma coleção apropriada \mathcal{F} de subconjuntos do espaço amostral, chamados eventos aleatórios. São os conjuntos desta coleção que gostaríamos de “medir”, ou atribuir probabilidade, e também realizar operações elementares de conjuntos.

  3. (c)

    Uma função \mathbb{P} que associa a cada evento aleatório um número real, que representa a ideia de chance, verossimilhança, confiança, ou credibilidade. Esta função é chamada de probabilidade ou medida de probabilidade.

No restante desta seção, discutiremos com mais detalhes cada um dos três objetos que definem os espaços de probabilidade.

1.1.1 Espaço amostral

Um conjunto não-vazio Ω\Omega, cujos elementos representam todos os resultados possíveis de um determinado experimento, é chamado de espaço amostral. Uma realização do experimento é representada pela escolha de algum dos possíveis ωΩ\omega\in\Omega, e às vezes nos referimos ao próprio ω\omega como sendo a realização do experimento.

Exemplo 1.4.

Se o experimento consiste em lançar uma moeda, então Ω={Cara,Coroa}\Omega=\{\text{Cara},\ \text{Coroa}\} ou Ω={0,1}\Omega=\{0,1\}, se convencionarmos que 11 representa a face “cara” e 0 representa a face “coroa”. ∎

Exemplo 1.5.

Se o experimento consiste em lançar um dado e observar a face superior, então

Ω={1,2,3,4,5,6},\Omega=\{1,2,3,4,5,6\},

onde cada número representa o possível valor da face observada. ∎

Exemplo 1.6.

Se o experimento consiste em lançar uma moeda duas vezes, então

Ω={0,1}2={0,1}×{0,1}={(0,0),(0,1),(1,0),(1,1)},\Omega=\{0,1\}^{2}=\{0,1\}\times\{0,1\}=\{(0,0),(0,1),(1,0),(1,1)\},

onde a primeira coordenada representa o valor observado no primeiro lançamento, e a segunda coordenada, o do segundo lançamento. ∎

Exemplo 1.7.

Se o experimento consiste em lançar um dado duas vezes e observar a face superior, então

Ω={1,2,3,4,5,6}2={ω=(ω1,ω2):ω1,ω2{1,2,3,4,5,6}}.\Omega=\{1,2,3,4,5,6\}^{2}=\left\{\mathclap{\phantom{\big{|}}}\omega=(\omega_{% 1},\omega_{2}):\omega_{1},\omega_{2}\in\{1,2,3,4,5,6\}\right\}.\qed
Exemplo 1.8.

Lançar uma moeda infinitas vezes, em sequência. Se ω1{0,1}\omega_{1}\in\{0,1\} denota o resultado do primeiro lançamento da moeda, ω2{0,1}\omega_{2}\in\{0,1\} o da segunda, e assim por diante, então uma realização desse experimento equivale a sortear um ω=(ω1,ω2,ω3,)\omega=(\omega_{1},\omega_{2},\omega_{3},\dots) do conjunto

Ω={0,1}\displaystyle\Omega=\{0,1\}^{\mathbb{N}} ={ω=(ωn)n:ωn{0,1} para todo n}.\displaystyle=\left\{\mathclap{\phantom{\big{|}}}\omega=(\omega_{n})_{n\in% \mathbb{N}}:\omega_{n}\in\{0,1\}\text{ para todo }n\right\}.\qed

A propósito, neste livro, ={1,2,3,}\mathbb{N}=\{1,2,3,\dots\} e 0={0,1,2,3,}\mathbb{N}_{0}=\{0,1,2,3,\dots\}.

Exemplo 1.9.

Se o experimento consiste em medir a duração de uma lâmpada, então um possível espaço amostral é dado por Ω=[0,)\Omega=[0,\infty). ∎

1.1.2 Eventos aleatórios

Eventos são caracterizados por condições que podem ser cumpridas ou não. Nos exemplos vistos no início deste capítulo, o observador sempre era capaz de responder às seguintes perguntas. A carta sorteada foi uma dentre 44\clubsuit, 77\heartsuit, AA\spadesuit ou 77\diamondsuit? A moeda caiu a menos de 3cm3\,\mathrm{cm} de distância das linhas do chão? A moeda caiu sobre a parte do azulejo pintada de preto? Em um modelo probabilístico, a condição a ser observada é representada pelo conjunto AA dos elementos ω\omega para os quais a condição é cumprida.

Um evento aleatório, ou simplesmente evento, é um conjunto AΩA\subseteq\Omega tal que o observador sempre é capaz de dizer, ao final do experimento, se ωA\omega\in A ou ωA\omega\not\in A. Denotaremos por \mathcal{F} a coleção formada pelos eventos aleatórios, chamada espaço de eventos. Na Seção 1.3 iremos pedir que a coleção \mathcal{F} satisfaça certas propriedades de modo a nos permitir realizar operações com os conjuntos pertencentes a \mathcal{F}.

Dizemos que o evento AA ocorre se a realização ω\omega é tal que ωA\omega\in A. Vamos traduzir algumas operações sobre conjuntos para a linguagem de eventos.

A união ABA\cup B é o conjunto {ωΩ:ωA ou ωB}\{\omega\in\Omega:\omega\in A\text{ ou }\omega\in B\}, ou seja, é o conjunto das realizações ω\omega tais que pelo menos um dos eventos AA ou BB ocorre, portanto ABA\cup B é o evento “AA ou BB”.

Exemplo 1.10.

No lançamento de um dado (Ω={1,2,3,4,5,6}\Omega=\{1,2,3,4,5,6\}) considere os eventos A=“par”={2,4,6}A=\text{``par''}=\{2,4,6\} e B=“múltiplo de 3={3,6}B=\text{``m\'{u}ltiplo de $3$''}=\{3,6\}. O evento “AA ou BB” contém todos os resultados que sejam pares ou múltiplos de 33 (ou ambos!), e é dado por C=AB={2,3,4,6}C=A\cup B=\{2,3,4,6\}. ∎

Analogamente, a interseção ABA\cap B, que é dada por {ωΩ:ωA e ωB}\{\omega\in\Omega:\omega\in A\text{ e }\omega\in B\}, é o conjunto das realizações ω\omega tais que ambos os eventos AA e BB ocorrem, portanto ABA\cap B é o evento “AA e BB”.

Exemplo 1.11.

Considerando os mesmo eventos do Exemplo 1.10, o evento “AA e BB” contém todos os resultados que sejam ao mesmo tempo pares e múltiplos de 33, e é dado por AB={6}A\cap B=\{6\}. ∎

Denotamos por AcA^{c} o complementar do conjunto AA, dado por Ac={ωΩ:ωA}A^{c}=\{\omega\in\Omega:\omega\notin A\}, ou seja, o conjunto das realizações ω\omega para as quais o evento AA não ocorre, portanto AcA^{c} é o evento “não AA”. Geralmente é óbvio no contexto qual é o espaço amostral Ω\Omega, e por isso optamos por AcA^{c} como notação mais compacta que ΩA\Omega\setminus A.

Exemplo 1.12.

Continuando o Exemplo 1.11, considere o evento A=“par”={2,4,6}A=\text{``par''}=\{2,4,6\}. O evento “não AA” contém todos os resultados que não sejam pares, ou seja, que são ímpares, e é dado por C=Ac={1,3,5}C=A^{c}=\{1,3,5\}. ∎

O conjunto vazio ∅︀\emptyset é denominado evento impossível. O conjunto Ω\Omega também é um evento, denominado evento certo. Dois eventos AA e BB são ditos mutuamente exclusivos, incompatíveis ou disjuntos se AB=∅︀A\cap B=\emptyset, isto é, se o evento “AA e BB” for impossível. De forma mais geral, dizemos que (An)n(A_{n})_{n} são disjuntos se AjA_{j} e AkA_{k} são disjuntos para todos jkj\neq k.

Exemplo 1.13.

Continuando o exemplo anterior, considere os eventos A=“par”={2,4,6}A=\text{``par''}=\{2,4,6\} e B=“ímpar”={1,3,5}B=\text{``\'{\i}mpar''}=\{1,3,5\}. O evento “AA e BB” é o evento impossível porque nenhum número é par e ímpar ao mesmo tempo. Em termos de conjuntos, AB=∅︀A\cap B=\emptyset. O evento “AA ou BB” é o evento certo, porque todo número é par ou ímpar. Em termos de conjuntos, AB=ΩA\cup B=\Omega. ∎

A relação ABA\subseteq B significa que ωA\omega\in A sempre implica ωB\omega\in B, ou seja, para qualquer realização ω\omega, se o evento AA ocorre então necessariamente o evento BB ocorre. Portanto, ABA\subseteq B significa que a ocorrência do evento AA implica a ocorrência do evento BB.

Mencionamos uma questão técnica. Em princípio gostaríamos de atribuir probabilidade a qualquer subconjunto de Ω\Omega, o que equivale a tomar =𝒫(Ω)\mathcal{F}=\mathcal{P}(\Omega), isto é, o conjunto de todos os subconjuntos de Ω\Omega, chamado de conjunto das partes de Ω\Omega. Geralmente, isso é possível quando o espaço amostral Ω\Omega é um conjunto enumerável.22 2 Um conjunto Ω\Omega é dito enumerável se existe uma função injetiva de Ω\Omega em \mathbb{N}. Isso quer dizer que os elementos de Ω\Omega podem ser indexados por \mathbb{N}, ou seja, listados em uma sequência. Por exemplo, ={1,2,3,}\mathbb{N}=\{1,2,3,\dots\}, ={0,1,1,2,2,}\mathbb{Z}=\{0,1,-1,2,-2,\dots\}, números pares {0,2,4,6,8,}\{0,2,4,6,8,\dots\}, primos {2,3,5,7,11,13,}\{2,3,5,7,11,13,\dots\}, e ={0,11,11,12,12,21,21,13,13,22,22,31,31,14,}\mathbb{Q}=\{0,\frac{1}{1},\frac{-1}{1},\frac{1}{2},\frac{-1}{2},\frac{2}{1},% \frac{-2}{1},\frac{1}{3},-\frac{1}{3},\frac{2}{2},-\frac{2}{2},\frac{3}{1},% \frac{-3}{1},\frac{1}{4},\dots\}. O conjunto dos números reais não é enumerável, pois dada qualquer sequência (xn)n=1,2,3,(x_{n})_{n=1,2,3,\dots} de números reais, sempre existirá um número zz\in\mathbb{R} que não estará nessa sequência. Entretanto, existem subconjuntos de \mathbb{R}, 2\mathbb{R}^{2}, 3\mathbb{R}^{3} aos quais não é possível atribuir uma medida de comprimento, área ou volume. A solução para esse problema envolve considerar um espaço de eventos \mathcal{F} que, apesar de não conter todos os subconjuntos de Ω\Omega, contém todos os subconjuntos nos quais estaremos interessados.

1.1.3 Medida de probabilidade

Para um determinado experimento aleatório, após definidos o espaço amostral Ω\Omega e a coleção \mathcal{F} de subconjuntos de Ω\Omega aos quais gostaríamos de atribuir uma probabilidade, falta definir a medida de probabilidade propriamente dita. Isto é, precisamos especificar uma função :\mathbb{P}:\mathcal{F}\to\mathbb{R} que atribua a cada evento AA\in\mathcal{F} a sua respectiva probabilidade (A)\mathbb{P}(A).

Na Seção 1.3, definiremos de modo preciso quais propriedades a função de probabilidade :\mathbb{P}:\mathcal{F}\to\mathbb{R} deve satisfazer. Porém, antes de tratarmos este problema em total generalidade, gostaríamos de apresentar abaixo algumas situações relativamente simples onde podemos especificar a medida de probabilidade explicitamente.

Caso equiprovável

Em alguns experimentos, há um número finito de resultados possíveis e estes são todos idênticos no sentido de que trocar a forma como objetos são etiquetados não afeta as chances de cada um deles. Havendo esse tipo de simetria, vale a hipótese de equiprobabilidade, isto é, todos os elementos ωΩ\omega\in\Omega têm a mesma chance de ocorrer. Neste caso, a probabilidade de um evento AA é simplesmente a razão entre o número de elementos de AA e o número de elementos do espaço amostral Ω\Omega:

(A)=#A#Ω.\mathbb{P}(A)=\frac{\#A}{\#\Omega}.

Foi exatamente isto que fizemos no Exemplo 1.1. Ou seja, quando há equiprobabilidade, a tarefa de calcular a probabilidade resume-se a um problema de contagem: quantos são os elementos de AA e de Ω\Omega? Abordaremos a questão de contagem com mais profundidade na próxima seção.

Exemplo 1.14.

Um dado comum é lançado. Qual a probabilidade de o valor exibido na face superior ser múltiplo de 3? Podemos modelar esse experimento tomando Ω={1,2,3,4,5,6}\Omega=\{1,2,3,4,5,6\}, e o evento de interesse é B={3,6}B=\{3,6\}. Como as faces do dado podem ser reetiquetadas sem que isso afete as chances de cada resultado, vale a hipótese de equiprobabilidade e, portanto,

(B)=#B#Ω=26=13.\mathbb{P}(B)=\frac{\#B}{\#\Omega}=\frac{2}{6}=\frac{1}{3}.\qed
Exemplo 1.15.

Lançamos dois dados, um azul e um branco. Qual a probabilidade de que a soma dos valores observados seja igual a 33? Neste caso, podemos tomar Ω={1,2,3,4,5,6}2\Omega=\{1,2,3,4,5,6\}^{2} e A={(1,2),(2,1)}A=\{(1,2),(2,1)\}. Como as faces de cada dado podem ser reetiquetadas sem que isso afete as chances de cada resultado, vale a hipótese de equiprobabilidade neste espaço, e

(A)=#A#Ω=236=118.\mathbb{P}(A)=\frac{\#A}{\#\Omega}=\frac{2}{36}=\frac{1}{18}.\qed
Exemplo 1.16.

Retiramos uma carta de um baralho comum, observamos sua face e a retornamos ao baralho, que é novamente embaralhado. Em seguida retiramos outra carta. Qual a probabilidade de as cartas retiradas serem um rei e uma dama do mesmo naipe? Neste caso, podemos tomar

Ω={A,2,,K,A,,A,,A,,K}2\Omega=\{A\diamondsuit,2\diamondsuit,\dots,K\diamondsuit,A\heartsuit,\dots,A% \spadesuit,\dots,A\clubsuit,\dots,K\clubsuit\}^{2}

e

A={(Q,K),(Q,K),(Q,K),(Q,K),\displaystyle A=\{(Q\diamondsuit,K\diamondsuit),(Q\heartsuit,K\heartsuit),(Q% \spadesuit,K\spadesuit),(Q\clubsuit,K\clubsuit),\ \
(K,Q),(K,Q),(K,Q),(K,Q)}.\displaystyle(K\diamondsuit,Q\diamondsuit),(K\heartsuit,Q\heartsuit),(K% \spadesuit,Q\spadesuit),(K\clubsuit,Q\clubsuit)\}.

Como as cartas podem ser reetiquetadas cada vez que embaralhamos o maço, sem que isso afete as chances de cada possível resultado, vale a hipótese de equiprobabilidade nesse espaço Ω\Omega. Logo,

(A)=#A#Ω=8522=1338.\mathbb{P}(A)=\frac{\#A}{\#\Omega}=\frac{8}{52^{2}}=\frac{1}{338}.\qed

Espaços amostrais enumeráveis

Um contexto que vai além do caso equiprovável e que podemos tratar sem mais complicações técnicas, é quando o espaço amostral Ω\Omega é um conjunto enumerável.

Se Ω={ω1,ω2,ω3,}\Omega=\{\omega_{1},\omega_{2},\omega_{3},\dots\}, então a cada possível resultado ωn\omega_{n} é associada uma probabilidade p(ωn)p(\omega_{n}) de forma que

n=1p(ωn)=1.\sum_{n=1}^{\infty}p(\omega_{n})=1.

Para um subconjunto BΩB\subseteq\Omega definimos

(B)=ωBp(ω).\mathbb{P}(B)=\sum_{\omega\in B}p(\omega). (1.17)
Exemplo 1.18.

Lançamos um dado sucessivamente e contamos o número de lançamentos necessários até obtermos o número 33 pela primeira vez. Então podemos tomar como espaço amostral Ω=\Omega=\mathbb{N} e p(n)=16(56)n1p(n)=\frac{1}{6}\,(\frac{5}{6})^{n-1}. Se A=A= “obter um 33 em no máximo 55 tentativas” e B=B= “não se obter o 33 nas primeiras 1010 tentativas”, então

(A)=16+16×56++16×(56)4=16(56)516156=1(56)50,598.\mathbb{P}(A)=\tfrac{1}{6}+\tfrac{1}{6}\times\tfrac{5}{6}+\cdots+\tfrac{1}{6}% \times(\tfrac{5}{6})^{4}=\frac{\tfrac{1}{6}-(\tfrac{5}{6})^{5}\tfrac{1}{6}}{1-% \tfrac{5}{6}}=1-(\tfrac{5}{6})^{5}\approx 0{,}598.

e

(B)=16(56)10+16(56)11+16(56)12+=16(56)101(56)=(56)100,161.\mathbb{P}(B)=\tfrac{1}{6}(\tfrac{5}{6})^{10}+\tfrac{1}{6}(\tfrac{5}{6})^{11}+% \tfrac{1}{6}(\tfrac{5}{6})^{12}+\cdots=\frac{\tfrac{1}{6}(\tfrac{5}{6})^{10}}{% 1-(\tfrac{5}{6})}=(\tfrac{5}{6})^{10}\approx 0{,}161.\qed

A agulha de Buffon

Piso indicando várias agulhas de Buffon e as coordenadas
Figura 1.3: Piso indicando várias agulhas de Buffon e as coordenadas θ\theta e xx.

Uma agulha é lançada de modo aleatório para cima e cai sobre um piso que é cortado por um feixe de retas paralelas, todas elas espaçadas por uma mesma distância igual ao comprimento da agulha. Qual a probabilidade de a agulha cruzar uma das retas do piso?

Seja \ell o comprimento da agulha. Inspecionando a Figura 1.3, podemos verificar que a agulha está perfeitamente localizada em relação às retas do piso se conhecermos as variáveis

θ=menor ângulo formado entre a agulha e as retas do piso\theta=\text{menor \^{a}ngulo formado entre a agulha e as retas do piso}

e

x=distância entre o ponto médio da agulha e a reta mais próxima.x=\text{dist\^{a}ncia entre o ponto m\'{e}dio da agulha e a reta mais pr\'{o}% xima}.

Observe que 0x20\leqslant x\leqslant\tfrac{\ell}{2} e 0θπ20\leqslant\theta\leqslant\frac{\pi}{2}, ou seja, o lançamento da agulha corresponde a um sorteio de um ponto no retângulo Ω=[0,π2]×[0,2]\Omega=[0,\tfrac{\pi}{2}]\times[0,\tfrac{\ell}{2}]. Recorrendo novamente à Figura 1.3, podemos verificar que a agulha cruza uma das retas do piso se, e somente se, é satisfeita a condição x<2senθx<\frac{\ell}{2}\mathop{\mathrm{sen}}\nolimits\theta. Sendo assim, nossa pergunta agora é quanto vale (A)\mathbb{P}(A), onde A={(θ,x)Ω:x<2senθ}A=\{(\theta,x)\in\Omega:x<\frac{\ell}{2}\mathop{\mathrm{sen}}\nolimits\theta\}. Assim como agimos intuitivamente no Exemplo 1.3, por uma questão de simetria (invariância por rotação e translação), a probabilidade do conjunto AA deve ser a razão entre as áreas dos conjuntos AA e Ω\Omega:

(A)=Área AÁrea Ω=0π22senθdθπ4=2π.\mathbb{P}(A)=\frac{\text{\'{A}rea }A}{\text{\'{A}rea }\Omega}=\frac{\int_{0}^% {\frac{\pi}{2}}\frac{\ell}{2}\mathop{\mathrm{sen}}\nolimits\theta\ \mathrm{d}% \theta}{\frac{\ell\pi}{4}}=\frac{2}{\pi}.

Lançando a agulha muitas vezes, esperamos que a proporção de lançamentos em que a agulha intersecta as linhas do piso se aproxime de 2π\frac{2}{\pi}. Este é, pois, um método probabilístico para calcular as casas decimais de π\pi! Na verdade não é um método muito eficiente, mas impressiona pela audácia.

Espaços contínuos

Observamos que, no exemplo acima, o espaço amostral Ω=[0,π2]×[0,2]\Omega=[0,\tfrac{\pi}{2}]\times[0,\tfrac{\ell}{2}] não é enumerável. Por isso, precisamos de uma medida de probabilidade diferente da dos casos anteriores. Intuitivamente, dissemos que a probabilidade do evento AA era a razão entre as áreas de AA e Ω\Omega. Mas quais são os conjuntos aos quais podemos atribuir área? Como se calcula a área nestes casos?

Neste mesmo problema, qual é a probabilidade de a agulha cair paralela às retas do piso? Ou seja, queremos saber quanto vale (B0)\mathbb{P}(B_{0}), onde B0={0}×[0,2]B_{0}=\{0\}\times[0,\tfrac{\ell}{2}]. Como B0B_{0} é um segmento de reta dentro do retângulo Ω\Omega, a área de B0B_{0} é zero, logo (B0)=0\mathbb{P}(B_{0})=0.

De modo análogo, o evento Bα={α}×[0,2]B_{\alpha}=\{\alpha\}\times[0,\tfrac{\ell}{2}] em que a agulha forma um ângulo exatamente igual a α\alpha com o feixe de retas do piso, também tem a propriedade de que (Bα)=0\mathbb{P}(B_{\alpha})=0, e isso vale para todo α[0,π2]\alpha\in[0,\tfrac{\pi}{2}]. Em particular, ({ω})=0\mathbb{P}(\{\omega\})=0 para todo ωΩ\omega\in\Omega.

Acabamos de ver algo bastante curioso: há eventos de probabilidade zero que não são o evento impossível! Mais do que isso, cada ponto do espaço amostral tem probabilidade zero. Mas isso quer dizer que qualquer evento é composto por eventos menores, cada um com probabilidade zero, incluindo o evento AA estudado acima (a agulha cortar uma das retas do piso). Daí vemos que

(A)ωA({ω}),\mathbb{P}(A)\neq\sum_{\omega\in A}\mathbb{P}(\{\omega\}),

pois (A)=2π e ωA({ω})=0\mathbb{P}(A)=\frac{2}{\pi}\text{ e }\sum_{\omega\in A}\mathbb{P}(\{\omega\})=0. Observe o contraste com (1.17). Quando um evento pode ser decomposto em uma coleção enumerável de partes menores, o uso de somatórios é adequado. Quando a decomposição não é enumerável, necessitamos modelos em que a passagem da parte ao todo se faz através de integração ao invés de soma.

Simetria e equiprobabilidade

Concluímos esta seção com uma discussão mais minuciosa a respeito da hipótese de equiprobabilidade.

Um dado pode ter suas faces etiquetadas com {1,2,3,4,5,6}\{1,2,3,4,5,6\} ou {2,3,4,5,6,1}\{2,3,4,5,6,1\}. As chances de se observar a etiqueta “2” são as mesmas para ambos os casos, pois as faces do dado que seriam etiquetadas com “2” são idênticas e, uma vez que o dado tenha girado ao redor de seus eixos várias vezes, não há resquícios da posição inicial que possam fazer com que uma das faces tenha mais chances que as outras. Por outro lado, sair “2” no segundo caso é o mesmo que sair “1” no primeiro caso, e portanto a probabilidade de se observar a face “2” é a mesma que a de se observar a face “1”. Seguindo o mesmo argumento, a chance de sair “2” é a mesma que de sair “3” e assim por diante.

Certamente, há exemplos com finitos resultados possíveis em que a hipótese de equiprobabilidade não é válida. Considere o lançamento simultâneo de dois dados de mesma cor (mais precisamente, idênticos, se é que isso é possível) sobre o mesmo tabuleiro. Qual a probabilidade de que a soma dos valores exibidos em cada face seja 33? Um erro sutil, que inclusive grandes matemáticos já cometeram no passado, é usar um modelo equiprovável sobre os 2121 pares não-ordenados possíveis. Neste caso, teríamos a mesma probabilidade de que a soma seja 22 ou 33, pois 22 somente pode ser obtido de uma forma (com um par de “11”s) e 33 também pode ser obtido apenas de uma forma (com um “11” e um “22”). A ideia de considerar os dados como sendo idênticos e definir um espaço amostral com apenas 2121 elementos, ao invés de ajudar, atrapalhou. Isso porque não há simetria (isto é, invariância pela forma como as faces são etiquetadas) que nos permita justificar que ω={1,1}\omega=\{1,1\} e ω={1,2}\omega=\{1,2\} tenham a mesma chance. Pelo contrário, podemos pensar que dois dados nunca são idênticos e, ainda que fossem, um deles vai cair mais à esquerda e, ainda que caiam perfeitamente alinhados, é possível escolher um dos dois dados no início e seguir sua trajetória de forma a diferenciá-lo do outro. Felizmente, mesmo que o observador insista na sua incapacidade de distinguir os dados, já sabemos que o modelo com 3636 resultados possíveis nos permitiu resolver o problema usando simetria. Portanto, se queremos muito modelar o experimento com um espaço amostral de 2121 elementos, a medida de probabilidade deve atribuir peso 136\tfrac{1}{36} a cada um dos 66 pares de números idênticos e 236\tfrac{2}{36} a cada um dos 1515 pares de números diferentes, totalizando 3636\tfrac{36}{36}, como esperado.33 3 Quem disse que dois dados podem somar 22 ou 33 com a mesma probabilidade foi ninguém menos que G. Leibniz (o co-inventor do Cálculo) em 1666. Claramente, Leibniz não tinha muita experiência prática lançando dados. Meio século antes, teve lugar uma versão um pouco mais complicada desse problema, o Problema do Grão-Duque da Toscana. Considere o lançamento de três dados, e observe que a soma 99 pode ser obtida como {1,2,6},{1,3,5},{1,4,4},{2,2,5}\{1,2,6\},\{1,3,5\},\{1,4,4\},\{2,2,5\}, {2,3,4}\{2,3,4\} ou {3,3,3}\{3,3,3\}, enquanto a soma 1010 pode ser obtida como {1,3,6}\{1,3,6\}, {1,4,5}\{1,4,5\}, {2,2,6}\{2,2,6\}, {2,3,5}\{2,3,5\}, {2,4,4}\{2,4,4\} ou {3,3,4}\{3,3,4\}. Apesar de que tanto 99 quanto 1010 podem ser obtidos a partir de seis listas diferentes, por que somas 1010 são mais frequentes que somas 99? Indagado por seu patrono, Galileu responde de modo correto que essas seis listas não são equiprováveis. Analogamente ao lançamento de dois dados, a lista {3,3,3}\{3,3,3\} é menos provável que {3,3,4}\{3,3,4\}, que por sua vez é menos provável que {2,3,5}\{2,3,5\}. A escolha correta para a medida de probabilidade deve atribuir peso 1/2161/216 a cada uma das triplas com números idênticos, 3/2163/216 a cada tripla formada por dois números idênticos e outro distinto e 6/2166/216 a cada tripla de três números distintos. Portanto, a soma 99 ocorre com probabilidade 25/21625/216, enquanto uma soma 1010 ocorre com probabilidade 27/21627/216. É muito curioso que o Grão-Duque tenha tido tanta experiência com lançamentos de dados a ponto de perceber empiricamente uma diferença relativa entre as probabilidades inferior a um décimo!