7.2 Lema de Borel-Cantelli

Para estudarmos a convergência de variáveis aleatórias, na “maioria” ou em “quase todos” os pontos ωΩ\omega\in\Omega, precisaremos definir certos eventos que nos permitirão representar a convergência XnXX_{n}\to X de modo mais tratável.

Definição 7.15 (Limite superior de uma sequência de conjuntos).

Seja (An)n(A_{n})_{n} uma sequência de subconjuntos de Ω\Omega. Definimos o evento lim supnAn\limsup_{n\to\infty}A_{n}, também denotado por AnA_{n} infinitas vezes, ou simplesmente AnA_{n} i.v. como

lim supnAn=n=1k=nAk.\limsup_{n\to\infty}A_{n}=\bigcap_{n=1}^{\infty}\bigcup_{k=n}^{\infty}A_{k}.

Em palavras, o evento definido acima é o conjunto de todos ω\omega tais que, para todo nn\in\mathbb{N} existe knk\geqslant n para o qual ωAk\omega\in A_{k}, isto é, ωAn\omega\in A_{n} para infinitos eventos da sequência (An)n(A_{n})_{n}, daí a nomenclatura AnA_{n} infinitas vezes.

Vejamos como a noção de uma sequência de eventos ocorrer infinitas vezes se relaciona com a convergência de variáveis aleatórias. Relembremos que uma sequência de números reais (xn)n(x_{n})_{n} converge para o número real xx se, para todo ε>0\varepsilon>0, temos que |xnx|<ε|x_{n}-x|<\varepsilon para todo nn suficientemente grande, ou de modo equivalente |xnx|<ε|x_{n}-x|<\varepsilon para todo nn, exceto para uma quantidade finita de valores de nn. Portanto, xn↛xx_{n}\not\to x se, e somente se, existe ε>0\varepsilon>0 tal que |xnx|ε|x_{n}-x|\geqslant\varepsilon para infinitos valores do índice nn.

Proposição 7.16.

Seja (Xn)n(X_{n})_{n} uma sequência de variáveis aleatórias. Então Xnq.c.XX_{n}\overset{\mathrm{q.c.}}{\rightarrow}X se, e somente se, para todo ε>0\varepsilon>0,

(|XnX|ε infinitas vezes)=0.\mathbb{P}\left(\mathclap{\phantom{\big{|}}}|X_{n}-X|\geqslant\varepsilon\text% { infinitas vezes}\right)=0.
Demonstração.

Observemos inicialmente a seguinte igualdade de eventos

{Xn↛X}={k,|XnX|1k i.v.}=k{|XnX|1k i.v.}.\{X_{n}\not\to X\}=\{\exists k\in\mathbb{N},|X_{n}-X|\geqslant\tfrac{1}{k}% \text{ i.v.}\}=\cup_{k\in\mathbb{N}}\{|X_{n}-X|\geqslant\tfrac{1}{k}\text{ i.v% .}\}.

Portanto, dada a definição de convergência quase certa, dizer que Xnq.c.XX_{n}\overset{\mathrm{q.c.}}{\rightarrow}X é equivalente a afirmar que (k{|XnX|1k i.v.})=0\mathbb{P}(\cup_{k\in\mathbb{N}}\{|X_{n}-X|\geqslant\tfrac{1}{k}\text{ i.v.}\}% )=0, o que por sua vez é equivalente a dizer que (|XnX|1k i.v.)=0\mathbb{P}(|X_{n}-X|\geqslant\tfrac{1}{k}\text{ i.v.})=0 para todo kk\in\mathbb{N}.

Dado qualquer ε>0\varepsilon>0, sempre existe kk\in\mathbb{N} tal que ε1k\varepsilon\geqslant\tfrac{1}{k}. Sendo assim, as afirmações (|XnX|1k i.v.)=0\mathbb{P}(|X_{n}-X|\geqslant\tfrac{1}{k}\text{ i.v.})=0 para todo kk\in\mathbb{N} e (|XnX|ε i.v.)=0\mathbb{P}(|X_{n}-X|\geqslant\varepsilon\text{ i.v.})=0 para todo ε>0\varepsilon>0 são equivalentes, o que completa esta demonstração. ∎

Uma pergunta que surge naturalmente a partir da proposição acima é: como estimar a probabilidade de uma sequência de eventos ocorrer infinitas vezes? O Lema de Borel-Cantelli, que enunciaremos a seguir, fornece respostas precisas para esta pergunta.

Teorema 7.17 (Lema de Borel-Cantelli).

Sejam (Ω,,)(\Omega,\mathcal{F},\mathbb{P}) um espaço de probabilidade e (An)n(A_{n})_{n} uma sequência de eventos.

  1. (a)

    Se n=1(An)<,\sum_{n=1}^{\infty}\mathbb{P}(A_{n})<\infty, então (An i.v.)=0.\mathbb{P}\big{(}A_{n}\text{ i.v.}\big{)}=0.

  2. (b)

    Se n=1(An)=+\sum_{n=1}^{\infty}\mathbb{P}(A_{n})=+\infty e os eventos (An)n(A_{n})_{n} são independentes, então (An i.v.)=1.\mathbb{P}\big{(}A_{n}\text{ i.v.}\big{)}=1.

Demonstração.

Para a primeira parte, observe inicialmente que (k=nAk){Ani.v.}\left(\cup_{k=n}^{\infty}A_{k}\right)\downarrow\{A_{n}\ \text{i.v.}\}. Portanto,

({Ani.v.})\displaystyle\mathbb{P}(\{A_{n}\ \text{i.v.}\}) =(n=1k=nAk)\displaystyle=\mathbb{P}\left(\bigcap_{n=1}^{\infty}\bigcup_{k=n}^{\infty}A_{k% }\right)
=limn(k=nAk)\displaystyle=\lim_{n\to\infty}\mathbb{P}\left(\bigcup_{k=n}^{\infty}A_{k}\right)
limnk=n(Ak)=0.\displaystyle\leqslant\lim_{n\to\infty}\sum_{k=n}^{\infty}\mathbb{P}(A_{k})=0.

O último limite é zero devido à convergência da série n=1(An)\sum_{n=1}^{\infty}\mathbb{P}(A_{n}).

Para a segunda parte, consideremos o evento {Ani.v.}c\{A_{n}\ \textit{i.v.}\}^{c}. Pela Lei de De Morgan,

{Ani.v.}c=(n=1k=nAk)c=n=1k=nAkc.\{A_{n}\ \text{i.v.}\}^{c}=\left(\bigcap_{n=1}^{\infty}\bigcup_{k=n}^{\infty}A% _{k}\right)^{c}=\bigcup_{n=1}^{\infty}\bigcap_{k=n}^{\infty}A_{k}^{c}.

Observe inicialmente que (k=nAkc){Ani.v.}c\left(\cap_{k=n}^{\infty}A_{k}^{c}\right)\uparrow\{A_{n}\ \text{i.v.}\}^{c}, logo

({Ani.v.}c)\displaystyle\mathbb{P}(\{A_{n}\ \text{i.v.}\}^{c}) =(n=1k=nAkc)=limn(k=nAkc)\displaystyle=\mathbb{P}\left(\bigcup_{n=1}^{\infty}\bigcap_{k=n}^{\infty}A_{k% }^{c}\right)=\lim_{n\to\infty}\mathbb{P}\left(\bigcap_{k=n}^{\infty}A_{k}^{c}\right)
=limnlimm(k=nmAkc)=limnlimmk=nm(1(Ak))\displaystyle=\lim_{n\to\infty}\lim_{m\to\infty}\mathbb{P}\left(\bigcap_{k=n}^% {m}A_{k}^{c}\right)=\lim_{n\to\infty}\lim_{m\to\infty}\prod_{k=n}^{m}(1-% \mathbb{P}(A_{k}))
limnlimmk=nme(Ak)=limnlimmek=nm(Ak)=0,\displaystyle\leqslant\lim_{n\to\infty}\lim_{m\to\infty}\prod_{k=n}^{m}e^{-% \mathbb{P}(A_{k})}=\lim_{n\to\infty}\lim_{m\to\infty}e^{-\sum_{k=n}^{m}\mathbb% {P}(A_{k})}=0,

onde a quarta igualdade é devida à independência de (An)n(A_{n})_{n}, e por conseguinte de (Anc)n(A_{n}^{c})_{n}, a cota superior segue da desigualdade 1xex1-x\leqslant e^{-x} para todo xx\in\mathbb{R} e a igualdade final segue da hipótese n=1(An)=+\sum_{n=1}^{\infty}\mathbb{P}(A_{n})=+\infty.∎

Corolário 7.18 (Lei 0-1 de Borel).

Se (An)n(A_{n})_{n} é uma sequência de eventos independentes, então ({Ani.v.})=0\mathbb{P}(\{A_{n}\ \text{i.v.}\})=0 ou 11.

Observação 7.19.

A hipótese de independência é crucial na segunda parte do Lema de Borel-Cantelli. Com efeito, seja AA um evento qualquer com (A)(0,1)\mathbb{P}(A)\in(0,1) e defina An=AA_{n}=A para cada nn\in\mathbb{N}. Neste caso, n=1(An)=+\sum_{n=1}^{\infty}\mathbb{P}(A_{n})=+\infty e (An i.v.)=(A)<1\mathbb{P}\big{(}A_{n}\text{ i.v.}\big{)}=\mathbb{P}(A)<1. ∎

Exemplo 7.20.

Helena começa com um baralho comum (52 cartas), ela retira de modo equiprovável uma carta do baralho, observa sua face, repõe a carta retirada e acrescenta mais outra carta com um coringa na face. Tal procedimento é repetido indefinidamente: embaralham-se as cartas, uma carta é retirada, sua face é observada, esta retorna ao baralho juntamente com um coringa. De modo que o baralho passa a ter uma carta a mais a cada rodada. Sejam (An)n1(A_{n})_{n\geqslant 1} e (Bn)n2(B_{n})_{n\geqslant 2}, sequências de eventos definidos como

An={Helena tira o 4 na n-ésima rodada} e Bn=AnAn1;A_{n}=\{\text{Helena tira o }4\clubsuit\mbox{ na $n$-\'{e}sima rodada}\}\mbox{% e }B_{n}=A_{n}\cap A_{n-1};

observe que (An)=151+n\mathbb{P}(A_{n})=\frac{1}{51+n} e (Bn)=1(50+n)(51+n)\mathbb{P}(B_{n})=\frac{1}{(50+n)(51+n)}. Pelo Lema de Borel-Cantelli,

(An i.v.)=1 e (Bn i.v.)=0\mathbb{P}(A_{n}\text{ i.v.})=1\quad\text{ e }\quad\mathbb{P}(B_{n}\text{ i.v.% })=0

Isto é, apesar de Helena retirar o 44\clubsuit infinitas vezes com probabilidade um, ela irá retirá-lo duas vezes consecutivas no máximo finitas vezes com probabilidade um. Observe que foi necessário que os eventos (An)n(A_{n})_{n} fossem independentes, embora os eventos (Bn)n(B_{n})_{n} não possuam tal propriedade. ∎

O uso mais frequente que faremos do Lema de Borel-Cantelli será para obter a convergência quase certa. Se conseguirmos mostrar que

n=1(|XnX|ε)<\sum_{n=1}^{\infty}\mathbb{P}\big{(}|X_{n}-X|\geqslant\varepsilon\big{)}<\infty

para todo ε>0\varepsilon>0, podemos concluir, pela Proposição 7.16, que Xnq.c.XX_{n}\overset{\mathrm{q.c.}}{\rightarrow}X.

Exemplo 7.21.

Sejam (Ω,,)(\Omega,\mathcal{F},\mathbb{P}) um espaço de probabilidade e (Xn)n(X_{n})_{n} uma sequência de variáveis aleatórias i.i.d, com distribuição uniforme em [0,1][0,1]. Defina a sequência de variáveis aleatórias (Yn)n(Y_{n})_{n} como

Yn=min{X1,,Xn},n1.Y_{n}=\min\{X_{1},\dots,X_{n}\},\ n\geqslant 1.

Mostraremos que Ynq.c.0Y_{n}\overset{\mathrm{q.c.}}{\rightarrow}0. Para todos nn\in\mathbb{N} e ε(0,1)\varepsilon\in(0,1) temos

(|Yn|>ε)\displaystyle\mathbb{P}(|Y_{n}|>\varepsilon) =(X1>ε,,Xn>ε)\displaystyle=\mathbb{P}(X_{1}>\varepsilon,\dots,X_{n}>\varepsilon)
=k=1n(Xk>ε)\displaystyle=\prod_{k=1}^{n}\mathbb{P}(X_{k}>\varepsilon)
=(X1>ε)n\displaystyle=\mathbb{P}(X_{1}>\varepsilon)^{n}
=(1ε)n,\displaystyle=(1-\varepsilon)^{n},

onde as quatro igualdades acima seguem da definição de YnY_{n} e do fato de que as (Xn)n(X_{n})_{n} são independentes e identicamente distribuídas com distribuição 𝒰[0,1]\mathcal{U}[0,1]. Somando as probabilidades,

n=1(|Yn|ε)=n=1(1ε)n<.\sum_{n=1}^{\infty}\mathbb{P}(|Y_{n}|\geqslant\varepsilon)=\sum_{n=1}^{\infty}% (1-\varepsilon)^{n}<\infty.

Logo, para cada ε(0,1)\varepsilon\in(0,1), segue do Lema de Borel-Cantelli que

({|Yn|>εi.v.})=0,\mathbb{P}(\{|Y_{n}|>\varepsilon\ \text{i.v.}\})=0,

e consequentemente Ynq.c.0Y_{n}\overset{\mathrm{q.c.}}{\rightarrow}0 devido à Proposição 7.16. ∎

Exemplo 7.22.

Sejam (an)n(a_{n})_{n} e (pn)n(p_{n})_{n} sequências tais que ana_{n}\uparrow\infty, pn0p_{n}\downarrow 0 e npn=\sum_{n}p_{n}=\infty, e seja (Xn)n(X_{n})_{n} uma sequência de variáveis aleatórias independentes, distribuídas como

(Xn=an)=pne(Xn=0)=1pn,n1.\mathbb{P}(X_{n}=a_{n})=p_{n}\quad\text{e}\quad\mathbb{P}(X_{n}=0)=1-p_{n},% \quad n\geqslant 1.

Pelo Lema de Borel-Cantelli, (Xn0)=0\mathbb{P}(X_{n}\to 0)=0, o que contrasta com o fato de que Xn0X_{n}\overset{\mathbb{P}}{\rightarrow}0 quando nn\to\infty. ∎

Como já vimos anteriormente, devemos ser sempre cautelosos ao utilizar a segunda parte do Lema de Borel-Cantelli. A hipótese de independência deve sempre ser verificada, conforme ilustrado no próximo exemplo.

Exemplo 7.23.

Sejam UU e (Xn)n(X_{n})_{n} variáveis aleatórias definidas como U𝒰[0,1]U\sim\mathcal{U}[0,1] e Xn=𝟙{U1n}X_{n}=\mathds{1}_{\{U\leqslant\frac{1}{n}\}} para n1n\geqslant 1. Observe que Xnq.c.0X_{n}\overset{\mathrm{q.c.}}{\rightarrow}0, pois (Xn0)=(U(0,1])=1\mathbb{P}(X_{n}\to 0)=\mathbb{P}(U\in(0,1])=1. Entretanto, como (Xn=1)=1n\mathbb{P}(X_{n}=1)=\frac{1}{n} e n=11n\sum_{n=1}^{\infty}\frac{1}{n} diverge, poderíamos ser tentados a utilizar a segunda parte do Lema de Borel-Cantelli como no exemplo anterior e concluir que (Xn0)=0\mathbb{P}(X_{n}\to 0)=0, o que obviamente não é verdadeiro. Defina os eventos An={Xn=1}A_{n}=\{X_{n}=1\} para todo nn. Observe que os eventos (An)n(A_{n})_{n} não são independentes, logo não podemos utilizar a segunda parte do Lema de Borel-Cantelli. ∎

Pela segunda parte do Lema de Borel-Cantelli, quando os eventos (An)n(A_{n})_{n} são independentes, (An i.v.)=0\mathbb{P}(A_{n}\text{ i.v.})=0 implica n(An)<\sum_{n}\mathbb{P}(A_{n})<\infty. Na ausência de independência isso pode ser falso, mas ainda vale que (An)0\mathbb{P}(A_{n})\to 0.

Proposição 7.24.

Se (An i.v.)=0\mathbb{P}(A_{n}\text{ i.v.})=0, então (An)0\mathbb{P}(A_{n})\to 0 quando nn\to\infty.

Demonstração.

Tome Bn=knAkB_{n}=\cup_{k\geqslant n}A_{k}. Assim, Bn{An i.v.}B_{n}\downarrow\{A_{n}\text{ i.v.}\} quando nn\to\infty. Como BnAnB_{n}\supseteq A_{n}, vale que (An)(Bn)(An i.v.)=0\mathbb{P}(A_{n})\leqslant\mathbb{P}(B_{n})\to\mathbb{P}(A_{n}\text{ i.v.})=0. ∎