D.5 Teorema de Radon-Nikodým

Nesta seção provaremos o Teorema de Radon-Nikodým.

Começamos motivando a ideia da prova. Suponha que μ\mu e ν\nu são medidas finitas e νμ\nu\ll\mu. Estamos à busca de uma função mensurável ff tal que

ν(A)=AfdμA.\nu(A)=\int_{A}f\,\mathrm{d}\mu\quad\forall A\in\mathcal{F}. (D.15)

Descrever ff é o mesmo que descrever os subconjuntos de Ω\Omega onde ff assume determinados valores. Seja Da,b={ω:af(ω)b}D_{a,b}=\{\omega:a\leqslant f(\omega)\leqslant b\}. Por (D.15),

aμ(ADa,b)ν(ADa,b)bμ(ADa,b)A.a\cdot\mu(A\cap D_{a,b})\leqslant\nu(A\cap D_{a,b})\leqslant b\cdot\mu(A\cap D% _{a,b})\quad\forall A\in\mathcal{F}.

Observe que a relação acima não faz referência explícita a ff. Para percorrer o caminho oposto, gostaríamos de ir fatiando Ω\Omega em conjuntos da forma Da,bD_{a,b} com essa propriedade, e usar esses conjuntos para ir construindo ff. O primeiro passo seria decompor Ω=NaNac\Omega=N_{a}\cup N_{a}^{c} de forma que

ν(ANa)aμ(ANa) e ν(ANac)aμ(ANac)A.\nu(A\cap N_{a})\leqslant a\cdot\mu(A\cap N_{a})\text{ e }\nu(A\cap N_{a}^{c})% \geqslant a\cdot\mu(A\cap N_{a}^{c})\quad\forall A\in\mathcal{F}. (D.16)

Para isso, vamos estudar a função λ:\lambda:\mathcal{F}\to\mathbb{R} dada por

λ(A)=ν(A)aμ(A).\lambda(A)=\nu(A)-a\mu(A).

Uma carga (ou medida com sinal) em (Ω,)(\Omega,\mathcal{F}) é uma função λ:[,+]\lambda:\mathcal{F}\to[-\infty,+\infty] tal que λ(∅︀)=0\lambda(\emptyset)=0 e, para toda sequência de conjuntos (An)n(A_{n})_{n} em \mathcal{F} disjuntos, pelo menos uma das somas nλ(An)+\sum_{n}\lambda(A_{n})^{+} e nλ(An)\sum_{n}\lambda(A_{n})^{-} é finita, e λ(nAn)=nλ(An)\lambda(\cup_{n}A_{n})=\sum_{n}\lambda(A_{n}). Dizemos que NN\in\mathcal{F} é um conjunto negativo para λ\lambda se λ(AN)0\lambda(A\cap N)\leqslant 0 para todo AA\in\mathcal{F}. O conjunto vazio é um exemplo trivial de conjunto negativo.

Lema D.17.

Seja λ\lambda uma carga em (Ω,)(\Omega,\mathcal{F}). Para todo DD\in\mathcal{F}, existe AA\in\mathcal{F} tal que AA é negativo, ADA\subseteq D e λ(A)λ(D)\lambda(A)\leqslant\lambda(D).

Demonstração.

Podemos supor que λ(D)<0\lambda(D)<0, pois caso contrário podemos tomar A=∅︀A=\emptyset. Vamos definir uma sequência decrescente (An)n(A_{n})_{n} e verificar que A=nAnA=\cap_{n}A_{n} é o conjunto procurado. Definimos inicialmente A0=DA_{0}=D. Se AnA_{n} já foi definido, tome tn=sup{λ(B):B,BAn}t_{n}=\sup\{\lambda(B):B\in\mathcal{F},B\subseteq A_{n}\} e note que tnλ(∅︀)=0t_{n}\geqslant\lambda(\emptyset)=0. Seja εn=min{tn2,1}\varepsilon_{n}=\min\{\frac{t_{n}}{2},1\} (precisamos do mínimo para assegurar-nos de que εn<tn\varepsilon_{n}<t_{n} no caso tn=+t_{n}=+\infty) e tome BnB_{n}\in\mathcal{F} tal que BnAnB_{n}\subseteq A_{n} e λ(Bn)εn\lambda(B_{n})\geqslant\varepsilon_{n}. Defina An+1=AnBnA_{n+1}=A_{n}\setminus B_{n} e A=nAnDA=\cap_{n}A_{n}\subseteq D.

Observando que nBnD\cup_{n}B_{n}\subseteq D e que esta última união é disjunta,

λ(D)=λ(A)+nλ(Bn)λ(A)+nεnλ(A).\lambda(D)=\lambda(A)+\sum_{n}\lambda(B_{n})\geqslant\lambda(A)+\sum_{n}% \varepsilon_{n}\geqslant\lambda(A).

Falta mostrar que AA é negativo. Observe que nλ(Bn)<+\sum_{n}\lambda(B_{n})<+\infty, pois caso contrário teríamos λ(D)=+\lambda(D)=+\infty. Portanto, λ(Bn)0\lambda(B_{n})\to 0 quando nn\to\infty e, por conseguinte, tn0t_{n}\to 0. Agora seja CC\in\mathcal{F} tal que CA=nAnC\subseteq A=\cap_{n}A_{n}. Como CAnC\subseteq A_{n}, pela definição de tnt_{n}, temos λ(C)tn\lambda(C)\leqslant t_{n} para todo nn\in\mathbb{N}. Portanto, λ(C)infntn=0\lambda(C)\leqslant\inf_{n}t_{n}=0, o que mostra que AA é um conjunto negativo. ∎

Teorema D.18 (Teorema de Decomposição de Hahn).

Seja λ\lambda uma carga em (Ω,)(\Omega,\mathcal{F}). Então existe um conjunto NN\in\mathcal{F} tal que λ(BN)0\lambda(B\cap N)\leqslant 0 e λ(BNc)0\lambda(B\cap N^{c})\geqslant 0 para todo BB\in\mathcal{F}.

Demonstração.

Como preliminar, observamos que λ\lambda não pode assumir ambos os valores -\infty e ++\infty. Com efeito, se λ(A)=\lambda(A)=-\infty para algum AA\in\mathcal{F}, segue que λ(Ω)=λ(A)+λ(Ac)=\lambda(\Omega)=\lambda(A)+\lambda(A^{c})=-\infty e, analogamente, se λ(B)=+\lambda(B)=+\infty para algum BB\in\mathcal{F}, então λ(Ω)=+\lambda(\Omega)=+\infty. Portanto, podemos supor, sem perda de generalidade, que λ(A)\lambda(A)\neq-\infty para todo AA\in\mathcal{F} (caso contrário bastaria considerar λ-\lambda ao invés de λ\lambda e tomar NcN^{c} no lugar de NN).

Seja α=inf{λ(A):A é um conjunto negativo para λ}\alpha=\inf\{\lambda(A):A\in\mathcal{F}\text{ \'{e} um conjunto negativo para % }\lambda\} e note que αλ(∅︀)=0\alpha\leqslant\lambda(\emptyset)=0. Tome uma sequência (An)n(A_{n})_{n} de conjuntos negativos tal que λ(An)α\lambda(A_{n})\to\alpha, e defina N=nAnN=\cup_{n}A_{n}. Como a união enumerável de conjuntos negativos é negativa (exercício!), segue que NN é um conjunto negativo.

Afirmamos que α=λ(N)\alpha=\lambda(N) e, em particular, α\alpha\neq-\infty. Com efeito,

αλ(N)=λ(An)+λ(NAn)λ(An)α,\alpha\leqslant\lambda(N)=\lambda(A_{n})+\lambda(N\setminus A_{n})\leqslant% \lambda(A_{n})\to\alpha,

onde as desigualdades seguem da definição de α\alpha e da negatividade de NN.

Finalmente, seja BB\in\mathcal{F}. Como NN é negativo, segue que λ(BN)0\lambda(B\cap N)\leqslant 0, e resta mostrar que λ(BNc)0\lambda(B\cap N^{c})\geqslant 0. Pelo Lema D.17, existe AA\in\mathcal{F} tal que ABNcA\subseteq B\cap N^{c}, AA é negativo e λ(A)λ(BNc)\lambda(A)\leqslant\lambda(B\cap N^{c}). Para mostrar que λ(A)0\lambda(A)\geqslant 0, observamos que, como ANA\cup N é um conjunto negativo,

αλ(AN)=λ(A)+λ(N)=λ(A)+α,\alpha\leqslant\lambda(A\cup N)=\lambda(A)+\lambda(N)=\lambda(A)+\alpha,

e podemos subtrair α\alpha pois <α0-\infty<\alpha\leqslant 0, completando a prova. ∎

Prova do Teorema de Radon-Nikodým.

Vamos supor inicialmente que ν\nu e μ\mu sejam medidas finitas, e posteriormente extrapolar para o caso geral.

Para cada a>0a>0, pelo Teorema de Decomposição de Hahn existe NaN_{a}\in\mathcal{F} satisfazendo (D.16). Definimos D0,1=N1D_{0,1}=N_{1}, D1,2=N2N1cD_{1,2}=N_{2}\cap N_{1}^{c}, D2,3=N3N1cN2cD_{2,3}=N_{3}\cap N_{1}^{c}\cap N_{2}^{c}, e assim por diante. Observe que esses conjuntos são disjuntos e kDk1,k=kNk\cup_{k}D_{k-1,k}=\cup_{k}N_{k}. Defina S=ΩkNkS=\Omega\setminus\cup_{k}N_{k}.

Observamos que S,D0,1,D1,2,D2,3,S,D_{0,1},D_{1,2},D_{2,3},\dots formam uma partição de Ω\Omega. Além disso, como SNkcS\subseteq N_{k}^{c} temos por (D.16) que ν(S)kμ(S)\nu(S)\geqslant k\mu(S) e, como isso vale para todo kk e ν(S)<\nu(S)<\infty, temos μ(S)=0\mu(S)=0. Como νμ\nu\ll\mu, segue que ν(S)=0\nu(S)=0. Como observação à parte, sem a hipótese de νμ\nu\ll\mu, poderíamos decompor ν=ν|S+ν|Sc\nu=\nu_{|_{S}}+\nu_{|_{S^{c}}} e encontrar a derivada de ν|Sc\nu_{|_{S^{c}}} com respeito a μ\mu.

Nossa primeira aproximação para ff será dada por

f0(ω)=jj𝟙Dj,j+1(ω).f_{0}(\omega)=\sum_{j}j\cdot\mathds{1}_{D_{j,j+1}}(\omega).

De (D.16), obtemos, para todo AA\in\mathcal{F} e todo jj\in\mathbb{N},

ν(ADj,j+1)jμ(ADj,j+1)=ADj,j+1f0dμ\nu(A\cap D_{j,j+1})\geqslant j\mu(A\cap D_{j,j+1})=\int_{A\cap D_{j,j+1}}f_{0% }\,\mathrm{d}\mu

e

ν(ADj,j+1)(j+1)μ(ADj,j+1)=ADj,j+1(f0+1)dμ.\nu(A\cap D_{j,j+1})\leqslant(j+1)\mu(A\cap D_{j,j+1})=\int_{A\cap D_{j,j+1}}(% f_{0}+1)\,\mathrm{d}\mu.

Somando sobre jj, temos

Af0dμν(A)Af0dμ+μ(A)A.\int_{A}f_{0}\,\mathrm{d}\mu\leqslant\nu(A)\leqslant\int_{A}f_{0}\,\mathrm{d}% \mu+\mu(A)\quad\forall A\in\mathcal{F}.

Vamos agora subdividir cada intervalo ao meio. Para cada j0j\in\mathbb{N}_{0}, definimos Dj,j+1/2=Dj,j+1Nj+1/2D_{j,j+1/2}=D_{j,j+1}\cap N_{j+1/2} e Dj+1/2,j+1=Dj,j+1Nj+1/2cD_{j+1/2,j+1}=D_{j,j+1}\cap N_{j+1/2}^{c}. Novamente, a família (Dj/2,(j+1)/2)j0(D_{j/2,(j+1)/2})_{j\in\mathbb{N}_{0}} forma uma partição de ΩS\Omega\setminus S. Definimos

f1(ω)=j21j𝟙D21j,21(j+1)(ω).f_{1}(\omega)=\sum_{j}2^{-1}j\cdot\mathds{1}_{D_{2^{-1}j,2^{-1}(j+1)}}(\omega).

Com essa definição, temos f1f00f_{1}\geqslant f_{0}\geqslant 0 e, de forma análoga à relação anterior,

Af1dμν(A)Af1dμ+21μ(A)A.\int_{A}f_{1}\,\mathrm{d}\mu\leqslant\nu(A)\leqslant\int_{A}f_{1}\,\mathrm{d}% \mu+2^{-1}\mu(A)\quad\forall A\in\mathcal{F}.

Partindo novamente os intervalos ao meio, construímos f2f1f_{2}\geqslant f_{1} tal que

Af2dμν(A)Af2dμ+22μ(A)A,\int_{A}f_{2}\,\mathrm{d}\mu\leqslant\nu(A)\leqslant\int_{A}f_{2}\,\mathrm{d}% \mu+2^{-2}\mu(A)\quad\forall A\in\mathcal{F},

e assim por diante obtemos fkfk1f_{k}\geqslant f_{k-1} tal que

Afkdμν(A)Afkdμ+2kμ(A)A.\int_{A}f_{k}\,\mathrm{d}\mu\leqslant\nu(A)\leqslant\int_{A}f_{k}\,\mathrm{d}% \mu+2^{-k}\mu(A)\quad\forall A\in\mathcal{F}.

Tomando f=limkfkf=\lim_{k}f_{k}, pelo Teorema da Convergência Monótona temos (D.15) pois μ(A)<\mu(A)<\infty, o que prova o teorema no caso de μ\mu e ν\nu finitas.

Mostraremos agora o caso geral, ou seja, quando μ\mu e ν\nu são σ\sigma-finitas. Neste caso, existe uma partição (An)n(A_{n})_{n\in\mathbb{N}} de Ω\Omega tal que μn=μ|An\mu_{n}=\mu_{|_{A_{n}}} e νn=ν|An\nu_{n}=\nu_{|_{A_{n}}} são medidas finitas e νnμn\nu_{n}\ll\mu_{n}. Tome fn=dνndμnf_{n}=\frac{\mathrm{d}\nu_{n}}{\mathrm{d}\mu_{n}}, e defina f=nfn𝟙Anf=\sum_{n}f_{n}\mathds{1}_{A_{n}}. Verificar que f=dνdμf=\frac{\mathrm{d}\nu}{\mathrm{d}\mu} é imediato:

ν(A)=nνn(A)=nAfndμn=nAfn𝟙Andμ=Anfn𝟙Andμ.\nu(A)=\sum_{n}\nu_{n}(A)=\sum_{n}\int_{A}f_{n}\,\mathrm{d}\mu_{n}=\sum_{n}% \int_{A}f_{n}\mathds{1}_{A_{n}}\,\mathrm{d}\mu=\int_{A}\sum_{n}f_{n}\mathds{1}% _{A_{n}}\,\mathrm{d}\mu.

Isso conclui a prova do teorema. ∎