D.1 Teorema π-λ\pi\text{-}\lambda de Dynkin

Nesta seção estudaremos o Teorema π-λ\pi\text{-}\lambda de Dynkin e o usaremos para provar o Teorema 3.37 (unicidade de medidas) e o Lema 13.7.

Antes de introduzir os conceitos usados na sua prova, vejamos de onde eles surgem. Suponha que queiramos verificar se duas medidas finitas μ\mu e ν\nu em um espaço mensurável (Ω,)(\Omega,\mathcal{F}) coincidem em uma grande classe de conjuntos, como \mathcal{F}. Suponha também que μ(Ω)=ν(Ω)\mu(\Omega)=\nu(\Omega). Em quantos conjuntos AA precisamos testar que μ(A)=ν(A)\mu(A)=\nu(A)? Testar todos AA\in\mathcal{F} seria demais. Havendo testado para uma sequência de conjuntos disjuntos (An)n(A_{n})_{n}, a propriedade valerá para (Anc)n(A_{n}^{c})_{n} e também para nAn\cup_{n}A_{n}, por propriedades básicas das medidas finitas. Entretanto, havendo testado para um par de conjuntos A,BA,B\in\mathcal{F}, não há garantia de que as duas medidas coincidam em ABA\cap B. Queremos mostrar que a classe

𝒟={A:μ(A)=ν(A)}\mathcal{D}=\{A\in\mathcal{F}:\mu(A)=\nu(A)\} (D.1)

contém muitos conjuntos. Essa classe já tem uma estrutura proveniente da forma como medidas finitas tratam complementos e uniões disjuntas, que formalizamos com a seguinte definição.

Definição D.2 (λ\lambda-sistema).

Seja Ω\Omega um espaço amostral. Uma classe 𝒟\mathcal{D} de subconjuntos de Ω\Omega é um λ\lambda-sistema de Ω\Omega, se 𝒟\mathcal{D} contém Ω\Omega e é fechada por complementos e uniões enumeráveis disjuntas,2626 26 Salientamos que alguns livros usam uma definição diferente de λ\lambda-sistema. É relativamente fácil verificar que as duas as definições são equivalentes. isto é,

  1. (1)

    Ω𝒟\Omega\in\mathcal{D},

  2. (2)

    Se A𝒟A\in\mathcal{D}, então Ac𝒟A^{c}\in\mathcal{D},

  3. (3)

    Se {Ak}k=1𝒟,AkAj=∅︀\{A_{k}\}_{k=1}^{\infty}\subseteq\mathcal{D},\ A_{k}\cap A_{j}=\emptyset para todos kjk\neq j, então k=1Ak𝒟\bigcup_{k=1}^{\infty}A_{k}\in\mathcal{D}.

Formalizamos a discussão anterior em forma de proposição.

Proposição D.3.

Se μ\mu e ν\nu são medidas em um espaço mensurável (Ω,)(\Omega,\mathcal{F}) tais que μ(Ω)=ν(Ω)<\mu(\Omega)=\nu(\Omega)<\infty, então a classe 𝒟\mathcal{D} definida em (D.1) é um λ\lambda-sistema.

Demonstração.

Seja A𝒟A\in\mathcal{D}. Temos μ(Ac)=μ(Ω)μ(A)=ν(Ω)ν(A)=ν(Ac)\mu(A^{c})=\mu(\Omega)-\mu(A)=\nu(\Omega)-\nu(A)=\nu(A^{c}), logo Ac𝒟A^{c}\in\mathcal{D}. Agora considere uma coleção enumerável {An}n𝒟\{A_{n}\}_{n}\subseteq\mathcal{D} de conjuntos disjuntos. Então μ(nAn)=nμ(An)=nν(An)=ν(nAn)\mu(\cup_{n}A_{n})=\sum_{n}\mu(A_{n})=\sum_{n}\nu(A_{n})=\nu(\cup_{n}A_{n}), logo nAn𝒟\cup_{n}A_{n}\in\mathcal{D}. ∎

Agora observamos que, à estrutura da classe definida em (D.1) lhe falta um aspecto: ser fechada por interseções. Essa é a razão da definição de π\pi-sistemas dada na Seção 3.6.

Lema D.4.

Um λ\lambda-sistema fechado por interseções é uma σ\sigma-álgebra.

Demonstração.

Seja \mathcal{F} um λ\lambda-sistema fechado por interseções. Como \mathcal{F} é não-vazio e fechado por complementos, basta mostrar que é fechado por uniões enumeráveis. Seja {An}n\{A_{n}\}_{n}\subseteq\mathcal{F}. Defina B1=A1B_{1}=A_{1} e Bn=A1cAn1cAnB_{n}=A_{1}^{c}\cap\dots\cap A_{n-1}^{c}\cap A_{n} para todo n2n\geqslant 2. Observe que BnB_{n}\in\mathcal{F} para todo nn, pois \mathcal{F} é fechado por interseções e complemento, e que nAn=nBn\cup_{n}A_{n}=\cup_{n}B_{n}, sendo esta última uma união disjunta. Como \mathcal{F} é fechado por uniões enumeráveis disjuntas, nAn=nBn\cup_{n}A_{n}=\cup_{n}B_{n}\in\mathcal{F}. Isso conclui a prova. ∎

Os conceitos de π\pi-sistemas e λ\lambda-sistemas são úteis quando, por um lado, a classe 𝒟\mathcal{D} (grande e complicada) de conjuntos satisfazendo determinada propriedade formam naturalmente um λ\lambda-sistema e, por outro lado, podemos encontrar uma subclasse 𝒞\mathcal{C} (menor e mais simples) que forma um π\pi-sistema e gera a σ\sigma-álgebra desejada. Este é o caso do Teorema 3.37 (unicidade de medidas). Para aplicar esses conceitos, usamos uma poderosa ferramenta.

Teorema D.5 (Teorema π-λ\pi\text{-}\lambda de Dynkin).

Seja Ω\Omega um espaço amostral. Suponha que 𝒞\mathcal{C} é um π\pi-sistema de subconjuntos de Ω\Omega e 𝒟\mathcal{D} é um λ\lambda-sistema em Ω\Omega. Se 𝒟\mathcal{D} contém 𝒞\mathcal{C}, então 𝒟\mathcal{D} contém σ(𝒞)\sigma(\mathcal{C}).

Demonstração.

Definimos 𝒢\mathcal{G} como o menor λ\lambda-sistema2727 27 Isso é definido da mesma forma que a menor σ\sigma-álgebra que contém uma dada classe. que contém o π\pi-sistema 𝒞\mathcal{C}, e vamos mostrar que 𝒢\mathcal{G} também é um π\pi-sistema.

A ideia principal é considerar, para cada B𝒢B\in\mathcal{G}, a classe

B={A𝒢:AB𝒢}.\mathcal{F}_{B}=\{A\in\mathcal{G}:A\cap B\in\mathcal{G}\}.

Podemos ver que B\mathcal{F}_{B} é um λ\lambda-sistema usando AcB=((AB)Bc)cA^{c}\cap B=((A\cap B)\cup B^{c})^{c}.

Agora, seja B𝒞B\in\mathcal{C}. Como 𝒞\mathcal{C} é um π\pi-sistema, 𝒞B\mathcal{C}\subseteq\mathcal{F}_{B}. Mas 𝒢\mathcal{G} é o menor λ\lambda-sistema que contém 𝒞\mathcal{C}, logo B=𝒢\mathcal{F}_{B}=\mathcal{G}.

Finalmente, seja D𝒢D\in\mathcal{G}. Dado B𝒞B\in\mathcal{C}, temos DBD\in\mathcal{F}_{B}, o que é equivalente a BDB\in\mathcal{F}_{D}. Portanto, 𝒞D\mathcal{C}\subseteq\mathcal{F}_{D}. Mas 𝒢\mathcal{G} é o menor λ\lambda-sistema que contém 𝒞\mathcal{C}, donde D=𝒢\mathcal{F}_{D}=\mathcal{G}. Como isso vale para todo D𝒢D\in\mathcal{G}, concluímos que 𝒢\mathcal{G} é um π\pi-sistema. Pelo Lema D.4, 𝒢\mathcal{G} é uma σ\sigma-álgebra, logo 𝒞σ(𝒞)𝒢𝒟\mathcal{C}\subseteq\sigma(\mathcal{C})\subseteq\mathcal{G}\subseteq\mathcal{D}, provando o teorema. ∎

Demonstração do Teorema 3.37 (unicidade de medidas).

Suponha momentaneamente que μ(Ω)=ν(Ω)<\mu(\Omega)=\nu(\Omega)<\infty. Defina a classe 𝒟\mathcal{D} como em (D.1). Pela Proposição D.3, 𝒟\mathcal{D} é um λ\lambda-sistema. Pelo Teorema π-λ\pi\text{-}\lambda, σ(𝒞)𝒟\sigma(\mathcal{C})\subseteq\mathcal{D}, o que quer dizer precisamente que μ=ν\mu=\nu em σ(𝒞)\sigma(\mathcal{C}), como queríamos demonstrar.

Agora abandonamos a suposição inicial, e supomos apenas que μ(An)=ν(An)<\mu(A_{n})=\nu(A_{n})<\infty para alguma sequência AnΩA_{n}\uparrow\Omega de conjuntos em 𝒞\mathcal{C}, tal como enunciado. Para cada nn\in\mathbb{N}, defina as medidas μn\mu_{n} e νn\nu_{n} por μn(A)=μ(AAn)\mu_{n}(A)=\mu(A\cap A_{n}) e νn(A)=ν(AAn)\nu_{n}(A)=\nu(A\cap A_{n}). Com essa definição, μn(Ω)=μ(An)=ν(An)=νn(Ω)<\mu_{n}(\Omega)=\mu(A_{n})=\nu(A_{n})=\nu_{n}(\Omega)<\infty. Repare que, para cada C𝒞C\in\mathcal{C}, temos CAn𝒞C\cap A_{n}\in\mathcal{C} porque 𝒞\mathcal{C} é um π\pi-sistema. Logo, μn(C)=μ(CAn)=ν(CAn)=νn(C)\mu_{n}(C)=\mu(C\cap A_{n})=\nu(C\cap A_{n})=\nu_{n}(C) para todo C𝒞C\in\mathcal{C}.

Portanto, para cada nn, as medidas μn\mu_{n} e νn\nu_{n} estão no caso anterior e, para todo Aσ(𝒞)A\in\sigma(\mathcal{C}), temos μn(A)=νn(A)\mu_{n}(A)=\nu_{n}(A). Usando continuidade por baixo de μ\mu e ν\nu, temos

μ(A)=limnμ(AAn)=limnμn(A)=limnνn(A)=limnν(AAn)=ν(A),\mu(A)=\lim_{n}\mu(A\cap A_{n})=\lim_{n}\mu_{n}(A)=\lim_{n}\nu_{n}(A)=\lim_{n}% \nu(A\cap A_{n})=\nu(A),

o que conclui a prova. ∎

Demonstraçãodo Lema 13.7.

Sem perda de generalidade, podemos supor que Ω𝒞α\Omega\in\mathcal{C}_{\alpha} para todo αΛ\alpha\in\Lambda. Consideramos inicialmente o caso em que Λ={1,,n}\Lambda=\{1,\dots,n\} para algum nn\in\mathbb{N}. Fixe B2𝒞2,,𝒞n𝒞nB_{2}\in\mathcal{C}_{2},\dots,\mathcal{C}_{n}\in\mathcal{C}_{n}. Defina

𝒟={A1:(AB2Bn)=(A)(B2)(Bn)}.\mathcal{D}=\{A\in\mathcal{F}_{1}:\mathbb{P}(A\cap B_{2}\cap\dots\cap B_{n})=% \mathbb{P}(A)\mathbb{P}(B_{2})\cdots\mathbb{P}(B_{n})\}.

Observe que 𝒟\mathcal{D} é um λ\lambda-sistema (exercício!). Como, por hipótese, 𝒞1𝒟\mathcal{C}_{1}\subseteq\mathcal{D}, pelo Teorema π\pi-λ\lambda, concluímos que 𝒟=1\mathcal{D}=\mathcal{F}_{1}. Ou seja, (AB2Bn)=(A)(B2)(Bn)\mathbb{P}(A\cap B_{2}\cap\dots\cap B_{n})=\mathbb{P}(A)\mathbb{P}(B_{2})% \cdots\mathbb{P}(B_{n}) para todo A1A\in\mathcal{F}_{1}. Como B2𝒞2,,𝒞n𝒞nB_{2}\in\mathcal{C}_{2},\dots,\mathcal{C}_{n}\in\mathcal{C}_{n} são arbitrários, segue que 1,𝒞2,,𝒞n\mathcal{F}_{1},\mathcal{C}_{2},\dots,\mathcal{C}_{n} são classes independentes. Por um argumento idêntico, 1,2,𝒞3,,𝒞n\mathcal{F}_{1},\mathcal{F}_{2},\mathcal{C}_{3},\dots,\mathcal{C}_{n} são classes independentes. Aplicando o mesmo argumento nn vezes, concluímos que 1,n\mathcal{F}_{1}\dots,\mathcal{F}_{n} são classes independentes.

Consideramos agora o caso geral. Sejam kk\in\mathbb{N}, α1,,αkΛ\alpha_{1},\dots,\alpha_{k}\in\Lambda distintos, e A1α1,,AkαkA_{1}\in\mathcal{F}_{\alpha_{1}},\dots,A_{k}\in\mathcal{F}_{\alpha_{k}}. Como 𝒞α1,,𝒞αk\mathcal{C}_{\alpha_{1}},\dots,\mathcal{C}_{\alpha_{k}} são independentes por hipótese, pelo caso anterior α1,,αk\mathcal{F}_{\alpha_{1}},\dots,\mathcal{F}_{\alpha_{k}} são independentes, logo (A1,,Ak)=(A1)(Ak)\mathbb{P}(A_{1},\dots,A_{k})=\mathbb{P}(A_{1})\cdots\mathbb{P}(A_{k}), provando o lema. ∎