14.1 Transformações que preservam medida
Nesta seção introduzimos conceitos básicos que serão usados no restante deste capítulo, e apresentaremos o Teorema de Recorrência de Poincaré.
Definição 14.1 (Sequência aleatória e operador deslocamento).
No espaço das sequências de números reais, definimos o operador deslocamento , dado por . Se é uma sequência aleatória, é a sequência deslocada .
Definição 14.2 (Sequência estacionária).
A sequência é dita estacionária se . Isto é, é estacionária se
para todo , onde a -álgebra foi definida na Seção 13.1.
Vejamos alguns exemplos de sequências estacionárias, com algumas observações preliminares sobre o comportamento de sua média observada.
Exemplo 14.3.
Toda sequência i.i.d. é estacionária. Se é integrável, pela Lei Forte dos Grandes Números, , ou seja, a média observada converge a um valor determinístico. ∎
Exemplo 14.4 (Sequência estacionária com correlações não-nulas).
Sejam variáveis aleatórias i.i.d. com distribuição e independente de . Defina . Essa sequência é estacionária mas para todos distintos. Este é um exemplo de sequência que tem “muita memória”. Veja que , ou seja, o limite é aleatório. ∎
Exemplo 14.5 (Sequência estacionária com correlações não-nulas).
Defina de forma que e com probabilidade cada. Essa sequência é estacionária mas para todos . Veja que, apesar de que essa sequência tem “muita memória”, , que é determinístico. ∎
Observação 14.6.
Uma forma de produzir várias sequências estacionárias (ou de verificar que uma dada sequência é estacionária) é a seguinte. Dada uma sequência estacionária e uma função mensurável tal que , a sequência aleatória é estacionária. Por exemplo, se é estacionária, então a sequência dada por é estacionária. ∎
O estudo de sequências estacionárias pode servir-se da Teoria Ergódica a partir da conexão que agora passamos a descrever.
Seja um espaço de probabilidade que modela um certo experimento aleatório. Seja uma sequência de variáveis aleatórias que são observadas ao longo desse experimento. Podemos ver como uma função definida em , que toma valores no espaço , mensurável com respeito às -álgebras em e em . (Alguns livros dizem que nada mais é do que uma variável aleatória que toma valores em ao invés de , mas é mais comum dizer que é um “elemento aleatório” e reservar o termo “variável aleatória” para o caso em que tomam-se valores em .)
Voltemos a falar de . Definindo a medida em , temos que é um espaço de probabilidade. Chamemos de o operador de deslocamento nesse espaço. Observe que é um operador -mensurável. Além disso, é uma sequência estacionária se, e somente se, para todo .
Neste capítulo, vamos estudar operadores determinísticos definidos em espaços de probabilidade , sem perder de vista que tudo o que fizermos com essa notação e terminologia terá suas consequências no estudo de sequências de variáveis aleatórias.
Definição 14.7 (Transformação que preserva medida).
Dado um espaço de probabilidade e um operador mensurável , dizemos que é uma transformação que preserva medida se , isto é, para todo .
Exemplo 14.8.
Sejam , e , então toda bijeção é uma transformação que preserva medida. ∎
A proposição abaixo segue do Teorema 3.37 (unicidade de medidas).
Proposição 14.9.
Sejam um espaço de probabilidade e um operador mensurável. Se para todo em algum -sistema que gera , então é uma transformação que preserva medida.
Exemplo 14.10 (Rotação do círculo).
Sejam , e a medida de Lebesgue em . Dado , defina . Se interpretamos o espaço como sendo um círculo (“colando” os extremos do intervalo), essa transformação é equivalente a uma rotação de radianos. Observe que para todo . Pela Proposição 14.9, podemos concluir que preserva medida. ∎
Exemplo 14.11.
Sejam , e a medida de Lebesgue em . Fixe , e defina . Novamente, para todo . Pela Proposição 14.9, podemos concluir que é uma transformação que preserva medida. ∎
Em geral estaremos interessados em estudar o comportamento da trajetória definida através de iterações sucessivas de uma transformação que preserva medida a partir de um ponto do espaço . De modo mais preciso, dados e uma transformação que preserva medida, definimos a órbita de como a sequência . O teorema a seguir nos diz que, dado qualquer conjunto , a órbita de quase todo ponto de deve regressar ao conjunto infinitas vezes.
Teorema 14.12 (Teorema de Recorrência de Poincaré).
Sejam um espaço de probabilidade e uma transformação que preserva medida. Dado , tomando , temos .
Demonstração.
Para cada , seja
Neste caso podemos escrever . Como
e é mensurável, para todo e, por conseguinte, . Logo, basta mostrar que para todo . Como é uma medida finita e preserva a medida ,
concluindo a prova. ∎
Observe que o fato de ser uma medida finita foi crucial nessa demonstração, pois nesse caso sempre que . Intuitivamente, como o espaço tem medida finita, as órbitas que começam em não têm para onde fugir, restando-lhes apenas a alternativa de retornar ao conjunto . Como contra-exemplo, considere , , . Veja que é uma translação, logo preserva a medida de Lebesgue, mas a órbita de todo ponto do intervalo foge para a direita sem nunca retornar.
Em termos de sequências estacionárias, o Teorema de Recorrência de Poincaré diz que, se uma dada condição é observada em alguma região de índices de um processo estocástico estacionário, então essa mesma condição será cumprida em infinitas outras regiões de índices.