5.2 Esperança matemática
Nesta seção vamos definir a esperança de uma variável aleatória qualquer, e estudar suas principais propriedades. Vimos na seção anterior que representa a média dos valores que pode tomar, ponderada por sua probabilidade. A generalização dessa mesma ideia seria, por analogia,
no caso de ser discreta e
no caso de ter densidade.
As fórmulas acima são a forma correta de pensar na esperança como valor médio, mas elas se restringem ao caso de variáveis discretas ou que tenham densidade. Além disso, dificilmente permitiriam comparar uma variável discreta com uma contínua, e não cobrem o caso de variáveis que não são nem de um tipo nem de outro (como será feito na prova da Desigualdade de Tchebyshev). Em particular, uma das propriedades fundamentais da esperança, a linearidade, não pode ser demonstrada a partir das fórmulas acima (de fato, a soma de duas variáveis com densidade pode não ser de nenhum desses dois tipos). Por isso, daremos uma definição unificada de , que não usa nem .
Para motivar a definição, reparemos que a esperança de uma variável aleatória simples é dada pela diferença entre as áreas cinza-clara e cinza-escura no lado esquerdo da Figura 5.2. A esperança de uma variável aleatória qualquer é definida por analogia, como mostrado no lado direito da mesma figura.
Definição 5.19.
Definimos a esperança de uma variável aleatória por
se pelo menos uma das duas integrais impróprias acima for finita. Caso contrário, dizemos que não está definida. Quando ambas as integrais forem finitas, dizemos que a variável aleatória é integrável. Observe que essas integrais impróprias de Riemann sempre estão definidas pois o integrando é uma função monótona e não-negativa (Teorema A.4).
Pela definição acima, é integrável quando é um número real. Entretanto, essa definição permite que assuma os valores ou quando apenas uma das integrais acima for finita, e neste caso não será integrável.
Exemplo 5.20 (Exponencial).
Se , então
Ou seja, é integrável e sua esperança é . ∎
Exemplo 5.21 (Normal).
Seja . Então
Qualquer que seja o valor dessa integral, é um número finito e, por simetria, será igual a . Portanto, é integrável e . ∎
Exemplo 5.22.
Seja com densidade . Este exemplo tem simetria como o anterior, porém não podemos chegar à mesma conclusão pois as integrais não são finitas. Com efeito,
Uma estimativa idêntica mostra que . Assim sendo, a esperança de não está definida, apesar da simetria. ∎
Exemplo 5.23.
Seja com densidade . Como no exemplo acima, para a parte negativa temos . Por outro lado, para a parte positiva,
e, portanto, . Neste exemplo, não é integrável. ∎
Observação 5.24.
A esperança de uma variável aleatória depende apenas da sua distribuição. Mais precisamente, se e têm a mesma distribuição e está definida, então . Em particular, se e está definida, então . ∎
Observação 5.25.
Uma variável aleatória é integrável se, e somente se, , pois
A esperança de uma variável aleatória não-negativa sempre está definida, podendo assumir um valor finito ou . ∎
A seguir veremos as principais propriedades da esperança, fórmulas para calcular no caso de ser discreta ou absolutamente contínua, bem como a esperança de funções de variáveis aleatórias desses tipos.
Teorema 5.26 (Variáveis aleatórias discretas).
Se é discreta, então
caso uma das duas séries convirja. Caso contrário, não está definida.
Demonstração.
Já sabemos que a identidade vale se assume finitos valores. Podemos mostrar que também vale para discreta aproximando-a por variáveis que assumem finitos valores. Uma prova completa será dada na Seção 5.3. ∎
Exemplo 5.27 (Poisson).
Se , então
Portanto, a esperança de uma variável aleatória Poisson com parâmetro é o próprio . ∎
Vejamos agora como calcular a esperança de uma variável com densidade.
Teorema 5.28 (Variáveis aleatórias absolutamente contínuas).
Seja uma variável aleatória absolutamente contínua com densidade . Então
caso uma das duas integrais seja finita. Caso contrário, não está definida.
Demonstração.
A prova completa será dada na Seção 5.5.5, mas aqui damos dois argumentos que ajudam a entender de onde vem a fórmula. O primeiro supõe que podemos inverter as integrais:
Vejamos uma prova mais gráfica supondo que é contínua e vale zero fora de para algum . Integrando por partes, obtemos
A integral é tratada de forma análoga. ∎
Exemplo 5.29 (Uniforme).
Se , então
Isto é, a esperança de uma variável aleatória com distribuição uniforme em um intervalo é o ponto médio deste intervalo. ∎
Teorema 5.30.
Sejam e variáveis aleatórias e . Então valem as seguintes propriedades:
-
(1)
Unitariedade: se para algum , então .
-
(2)
Monotonicidade: se para todo , então .
-
(3)
Linearidade: vale , supondo que seja integrável e esteja definida.
Demonstração.
Para provar (1), observamos que se , então é uma variável aleatória simples, donde . Para (2), basta desenvolver
Já sabemos que (3) vale se e são variáveis aleatórias simples, podemos mostrar que continua válido para e quaisquer aproximando-as por variáveis desse tipo. Uma prova completa será dada na Seção 5.3. ∎
Diversas propriedades da esperança decorrem do teorema acima.
Proposição 5.31.
Dada uma variável aleatória e , valem:
-
(1)
Se para todo , então .
-
(2)
Se para todo , então .
-
(3)
Se para todo , então .
-
(4)
Se para todo e , então .
Demonstração.
Vamos mostrar apenas a última, deixando as demais como exercício. Para todo , temos . Por monotonicidade, Logo, para todo , donde , pois . ∎
Há situações em que somente podemos afirmar que algo ocorre com probabilidade , mesmo que não ocorra para todo . Um exemplo é o item (4) da proposição acima. Daqui para frente, diremos que um evento ocorre quase certamente, abreviado por q.c., quando . Usando a Observação 5.24, podemos obter uma versão mais forte da proposição acima, trocando “para todo ” por “quase certamente” em cada item.
Proposição 5.32 (Esperança de variáveis aleatórias independentes).
Se e são independentes e não-negativas, então
A mesma identidade vale supondo e independentes e integráveis.
Demonstração.
Já sabemos que a identidade vale se e assumem finitos valores. Podemos mostrar o caso geral aproximando-as por variáveis desse tipo. Uma prova completa será dada na Seção 5.3. ∎
Proposição 5.33.
Se assume valores em , então
Demonstração.
Basta ver que
e tomar o limite com . ∎
Exemplo 5.34 (Geométrica).
Se então
Proposição 5.35 (Critério de integrabilidade).
Uma variável aleatória é integrável se, e somente se, .
Demonstração.
Sabemos que é integrável se, e somente se, . Seja . Como , segue que . E como assume valores em , segue da Proposição 5.33 que
Observando que , concluímos a demonstração. ∎
Suponha que queiramos calcular a esperança de uma variável aleatória descrita explicitamente como uma função de outra. Mais precisamente, suponha que para alguma função . Certamente, uma forma de obter é calcular para todo , a partir da distribuição de , e depois calcular a esperança usando os Teoremas 5.26 e 5.28 ou a própria Definição 5.19, aplicados a . Entretanto, existe outra maneira, que pode ser mais conveniente.
Teorema 5.36 (Funções de variáveis aleatórias discretas).
Sejam uma variável aleatória discreta e uma função não-negativa. Então
Se toma apenas finitos valores, a identidade acima é a segunda parte do Teorema 5.15. O caso geral será tratado na Seção 5.3.
Exemplo 5.37.
Se , então
Exemplo 5.38.
Seja . Vamos calcular
derivando séries de potência. Para isso, escrevemos e
Admitimos a propriedade de que séries de potência podem ser derivadas termo a termo, dentro do seu raio de convergência, neste caso . ∎
Teorema 5.39 (Funções de variáveis absolutamente contínuas).
Seja uma variável aleatória absolutamente contínua com densidade . Seja uma função não-negativa e contínua por partes. Então
Observe que, pelo Teorema A.5, a função é integrável.
Demonstração.
Provaremos aqui supondo que é uma função-degrau que assume finitos valores. A prova do caso geral será dada na Seção 5.5.5. Sejam os valores assumidos por , e . Assim, podemos escrever , logo . Portanto,
pois para todo . ∎
Exemplo 5.40.
Se , então
Exemplo 5.41.
Se , então
onde usamos o fato de que . Ademais,
Observação 5.42.
O teorema anterior tem seu análogo multidimensional. Se um vetor aleatório possui densidade conjunta e se é uma função não-negativa e contínua, então
Esta fórmula será usada em alguns exemplos e exercícios e será provada no final deste capítulo. ∎
Os Teoremas 5.36 e 5.39 valem supondo que está definida, ao invés de supor não-negativa. Para justificar essa extensão, basta separar os pontos onde é positiva e negativa. A parte positiva e a parte negativa de um número são denotadas por
Com essa definição, e . Da mesma forma, podemos definir e de forma que . Observe que e sempre estão definidas. Ademais,
se uma das duas for finita, e não está definida caso contrário. Em geral, não sabemos de antemão se uma variável aleatória é integrável; assim sendo, a abordagem mais simples é de fato separar as partes positiva e negativa e usar esses dois teoremas tal como foram enunciados.
Existem outras formas de se definir a esperança, todas elas equivalentes. Isso também se reflete em distintas notações, que aparecem em diferentes bibliografias:
A definição que usamos aqui corresponde à primeira, que se refere à integral de Lebesgue no espaço de probabilidade visto como um espaço de medida. A segunda integral também é uma integral de Lebesgue, porém no espaço de probabilidade onde é a lei de . A terceira integral é conhecida como integral de Stieltjes com função integradora dada por .
A fórmula que usamos na Definição 5.19 é um atalho pouco utilizado porém mais curto e acessível para definir a integral de Lebesgue da função com respeito à medida , sem usar esse nome. Essa forma é equivalente à definição mais comum de integral de Lebesgue a partir de funções simples, que será vista na Seção 5.5. A terceira fórmula é equivalente à segunda, porém definida de uma forma mais explícita no caso de integrandos contínuos, o que torna alguns cálculos mais transparentes. A igualdade entre a primeira e a segunda fórmulas acima é assegurada pelo Teorema 5.66.